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22/12/2020

Retrospectiva: direitos humanos em tempos de pandemia

Em 2020 a Conectas esteve atuante em diversas pautas que influenciaram os rumos da política nacional e dos direitos humanos. Relembre os mais importantes em nossa retrospectiva



O ano de 2020 será lembrado na história da humanidade pela crise sanitária e econômica global gerada pela pandemia de Covid-19 e pela necessidade urgente de se adaptar a uma nova forma de sociabilidade, mais digital.

No Brasil, este processo ganhou camadas extras de complexidade diante do contexto político nacional. O governo do presidente Jair Bolsonaro minimizou os riscos da pandemia, priorizou a economia em detrimento das vidas, estimulou aglomerações, brigou com governadores e promoveu o uso de medicações sem comprovação científica como solução milagrosa de combate ao vírus. 

O resultado desta gestão negligente e irresponsável está nas cerca de 190 mil vidas perdidas em decorrência da Covid-19 até o momento, com impacto principal em populações marginalizadas — negras, periféricas, pobres, indígenas, entre outras — que já têm seus direitos historicamente violados ou negados. 

Este foi o ano em que as organizações de direitos humanos precisaram adaptar suas estratégias de atuação à realidade do distanciamento social e se articular para impor limites à sanha conservadora e autoritária do governo Jair Bolsonaro.

A persistência também foi uma marca da atuação da entidade em 2020. Para além da agenda desafiadora trazida ou intensificada pela pandemia, seguimos atuando em frentes de trabalho no enfrentamento a situações persistentes de abusos..

Na retrospectiva a seguir, acompanhe os temas em que a atuação da Conectas fez a diferença na proteção de direitos:

Suspensão de operações policiais no Rio

Rio de Janeiro Military Police helicopter hovers over the Alemão favela complex in an operation carried out in 2010 (Vladimir Platonov/ABr)

Em maio, João Pedro Mattos, de 14 anos, brincava em sua casa, em São Gonçalo (RJ), quando a PM invadiu o lugar em busca de supostos traficantes. O menino foi morto com um tiro na barriga. O caso chocou o país, mas foi apenas uma de uma série de incursões violentas da polícia do Rio de Janeiro ocorrida em plena pandemia em favelas e comunidades periféricas do estado. 

Por isso, uma coalizão de entidades — todas amicus curiae na ADPF-635 (ADPF das Favelas) – ingressou com um pedido cautelar no STF para que fossem suspensas operações policiais no Rio de Janeiro durante a emergência sanitária da Covid-19. Uma semana depois, em decisão histórica, o ministro Edson Fachin atendeu ao pedido, mais adiante referendado pelo plenário da Corte.

Ainda no âmbito da ADPF das Favelas, em agosto o Supremo impôs novas restrições à política de segurança pública fluminense, proibindo o  uso de helicópteros blindados — os chamados “caveirões aéreos” — como plataforma de tiros, além de restringir operações policiais em perímetros escolares e hospitalares.

A reação dos povos indígenas

Yanomami in a procession at a meeting of Yanomami and Yek’wana leaders in
November 2019. Photo: Victor Moriyama/ISA

A pandemia de Covid-19 escancarou as vulnerabilidades das populações indígenas brasileiras e as violações a seus direitos. Uma campanha liderada pelos povos Yanomami e Ye’kwana, que contou com o apoio de diversas entidades da sociedade civil incluindo a Conectas, pediu a desintrusão de mais de 20 mil garimpeiros de seus territórios. Conhecida como “Fora Garimpo, Fora Covid”, a campanha se encerrou em dezembro com a adesão de mais 439 mil assinaturas e um ato em Brasília que iluminou a fachada do Congresso Nacional. 

Para além da mobilização pública, a proteção dos indígenas também chegou ao STF. O plenário da Corte referendou uma decisão liminar do ministro Luís Roberto Barroso que obrigou o governo federal a adotar medidas urgentes para conter o avanço da pandemia nos territórios indígenas. De forma inédita, o STF reconheceu a  Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) como entidade representante de classe com legitimidade para propor ações de inconstitucionalidade. A ADPF 709 -ação em que Conectas foi admitida como amicus curie –  reivindicava que o Judiciário determinasse a adoção de medidas urgentes para garantir proteção aos povos indígenas durante a pandemia. Em entrevista à Conectas, Luiz Eloy Terena, assessor jurídico da entidade, explicou o impacto da decisão. 

A decisão do STF não foi o único revés do governo na questão indígena. A CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) emitiu em julho uma resolução que outorgou medidas cautelares a favor da proteção dos povos indígenas Yanomami e Ye’kwana. Para a CIDH, estas populações estão em situação grave e correm risco de danos irreparáveis.

Covid-19 nas prisões

Com a terceira maior população prisional do mundo e uma superlotação superior a 50% das vagas existentes, as prisões brasileiras são um foco de preocupação para a disseminação descontrolada da Covid-19. Em março, uma recomendação emitida pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) apontou diversas medidas para conter a epidemia no sistema prisional, entre elas a revisão de prisões provisórias. 

Ao longo do ano, o descaso das autoridades diante das condições de saúde da população carcerária foi motivo para uma série de ações da sociedade civil. Em março, a Rede Justiça Criminal, da qual a Conectas faz parte, apontou suas recomendações para evitar a transmissão do novo coronavírus nos presídios brasileiros, entre elas a redução das prisões provisórias e o desencarceramento de pessoas em grupo de risco. 

Em nota conjunta, o CNPCT (Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura), MNPCT e CNDH (Conselho Nacional de Direitos Humanos) manifestaram preocupação em relação ao controle da pandemia no sistema prisional enquanto mais de 200 entidades de todo o país apresentaram à ONU e à OEA uma denúncia contra a gestão da Covid-19 nos presídios brasileiros. 

Controle e vigilância de ONGs

Headquarters of Abin (Brazilian Intelligence Agency) in Brasília. Photo: reproduction

Headquarters of Abin (Brazilian Intelligence Agency) in Brasília. Photo: reproduction

Em março, o governo do presidente Jair Bolsonaro nomeou um agente da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) para coordenar o órgão da Secretaria de Governo responsável pelo relacionamento com ONGs. Por ser agente da inteligência, sua identidade não pode ser revelada, razão pela qual sua nomeação em Diário Oficial traz apenas seu número de matrícula. A Conectas ingressou com uma ação civil pública questionando a nomeação e a Justiça Federal de São Paulo suspendeu a medida, proibindo a indicação de qualquer outro profissional da Abin para o cargo. A decisão foi posteriormente derrubada, mas o servidor foi exonerado e realocado para outro cargo. Reportagem recentemente publicada pela Agência Pública revelou a identidade do servidor e mostrou como o Executivo federal vem inserindo agentes de inteligência na máquina administrativa do Estado.

Discriminação nas fronteiras

Pacaraima RR 23 08 2018 Grupo de imigrantes venezuelanos percorre a pé o trecho de 215 km entre as cidades de Pacaraima e Boa Vista.Marcelo Camargo/Ag. Brasil

Em resposta à pandemia causada pelo novo Coronavírus, em março o governo federal decidiu fechar as fronteiras terrestres e determinou uma restrição excepcional à entrada de pessoas vindas da Venezuela. As determinações sobre permissão de acesso ao país passaram a ser realizadas por meio de portarias publicadas a cada 30 dias, incluindo vias aquáticas e aéreas.

Em junho, a Defensoria Pública da União, o Ministério Público Federal, a Cáritas São Paulo e a Conectas ingressaram com uma  ACP (Ação Civil Pública) questionando o caráter discriminatório da portaria em relação a migrantes em situação de vulnerabilidade. 

Em resposta, a  Justiça Federal do Acre determinou liminarmente a suspensão da portaria que proibia o fechamento das fronteiras a migrantes em situação de vulnerabilidade. Ainda assim, solicitantes de refúgio continuaram sendo impedidos de entrar no Brasil. Semanas antes, o governo havia reaberto as fronteiras aéreas para turistas, mas manteve o veto a solicitantes de refúgio. A liminar foi posteriormente derrubada após recurso da União.

Em dezembro, um parecer técnico do Cepedisa/USP (Núcleo de Pesquisa em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo) realizado a pedido da Conectas mostrou que o fechamento de fronteiras não possui base jurídica e sanitária. O parecer foi encaminhado  Ministérios e demais órgãos federativos envolvidos no fechamento das fronteiras terrestres e aquaviárias.

Violações em Suape

Estaleiro Atlântico Sul, pertencente Porto de Suape, localizado na região metropolitana de Recife (PE).

Após cinco anos de avaliação, o PCN (Ponto de Contato Nacional), órgão internacional responsável por monitorar o cumprimento das Diretrizes da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), concluiu um processo de análise a respeito das violações cometidas pela multinacional Van Oord  contra comunidades tradicionais da região de Suape, litoral sul de Pernambuco. 

O PCN se baseou em uma petição que apontava diversos impactos ambientais e violências cometidas contra os então habitantes da área durante a dragagem do Porto de Suape. A petição foi assinada pela Colônia de Pescadores Z8, formada por famílias da região de Gaibu, pelo Fórum Suape, rede de associações de pescadores e marisqueiras, pela Conectas e Both Ends

A implementação do porto teve início na década de 1970 e levou ao despejo de milhares de pessoas que originalmente habitavam a região onde hoje está compreendido o perímetro industrial. 

Audiência de custódia por videoconferência

Man detained after arrest is presented before a judge in a pre-trial custody hearing held on 07/01/2016 in the Criminal Courthouse of Barra Funda, in São Paulo

Man detained after arrest is presented before a judge in a pre-trial custody hearing held on 07/01/2016 in the Criminal Courthouse of Barra Funda, in São Paulo

Cinco meses após ter aprovado resolução que proíbe a realização de audiências de custódia por meio de videoconferência durante a pandemia de Coronavírus, seguindo previsão do Código de Processo Penal, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) mudou de entendimento e autorizou a realização das sessões virtuais. 

A decisão do Conselho contrariou o posicionamento de mais de 150 organizações da sociedade civil. Implementada em 2015, a audiência de custódia é um procedimento que serve, não apenas para avaliar a legalidade da prisão, mas também para que o juiz verifique se a pessoa detida foi submetida a atos de tortura ou outros tipos de tratamentos degradantes durante a abordagem policial.  

Ataque aos direitos das mulheres

Ministers Damares Alves and Ernesto Araújo participate in virtual ceremony to announce the Geneva Consensus Declaration (Photo: Reproduction)

Os governos do Brasil e dos Estados Unidos co-patrocinaram uma declaração internacional que, sob pretexto de estabelecer princípios básicos na questão da saúde da mulher, tinha como objetivo reafirmar a rejeição ao aborto e a defesa da família heteronormativa. Chamada de Declaração do Consenso de Genebra, a iniciativa não possui força de tratado e teve a adesão de poucos países, notoriamente contrários a direitos das mulheres.

Meses antes, o Brasil já havia se abstido diante de retrocessos aos direitos das mulheres apresentados por meio de emendas de países como Rússia, Egito e Arábia Saudita durante votação no Conselho de Direitos Humanos da ONU.

No plano doméstico, a gestão Bolsonaro atuou para dificultar o acesso ao aborto legal mesmo em caso de estupro. Uma portaria publicada no fim de agosto pelo Ministério da Saúde passou a determinar uma série de burocracias para a realização do procedimento, como a obrigatoriedade de que os agentes de saúde notifiquem a polícia sobre casos de violência sexual. Em entrevista à Conectas, a advogada, Gabriela Rondon, co-diretora da Anis – Instituto de Bioética, apontou que a medida transformava um direito de já difícil acesso em praticamente inviável.

Médicos impedidos de atuar durante pandemia

Foreign and Brazilian doctors, who graduated in other countries, doing the second stage of the 2017 round of the National Exam for Diploma Revalidation

Foreign and Brazilian doctors, who graduated in other countries, doing the second stage of the 2017 round of the National Exam for Diploma Revalidation

Diante da necessidade de ações rápidas e urgentes imposta pela pandemia, uma série de países, como Canadá e Alemanha, flexibilizaram suas legislações para a contratação de médicos formados no exterior.

No Brasil, apesar da falta de profissionais em diversas regiões com alarmantes taxas de contágio, a permissão para a atuação dependia de um exame nacional que não é realizado há três anos. Inicialmente prevista para outubro, a prova acabou sendo realizada em dezembro, apesar do apelo de diversas organizações junto ao MEC (Ministério da Educação), cobrando a antecipação da publicação do edital.

Tráfico privilegiado não é crime hediondo

Outra importante decisão no judiciário ocorreu em setembro, quando a 6ª Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça) proibiu que o Tribunal de Justiça de São Paulo mantenha em regime fechado pessoas cumprindo pena por tráfico de drogas enquadradas como tráfico privilegiado – ou seja, réus primários, com bons antecedentes e que não integram organizações criminosas. 

Em 2016, o Supremo Tribunal Federal reconheceu o “tráfico privilegiado” como crime comum. Em seu voto, o relator da ação, o ministro Rogerio Schietti Cruz citou relatório produzido pela Conectas e IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) sobre como o TJ-SP descumpre sistematicamente decisão do STF sobre tráfico privilegiado.

Fim da superlotação no socioeducativo

Em agosto, a segunda turma do STF determinou o fim da superlotação em unidades do sistema socioeducativo em todo o país. Em seu voto, o ministro Edson Fachin, relator da ação, sugeriu uma lista de alternativas para diminuir a superlotação nas unidades que já operam acima da capacidade, entre elas, a adoção de um número máximo de pessoas em cada unidade e a reavaliação dos casos de adolescentes internados por infrações sem violência ou grave ameaça, com a agendamento de audiências na Justiça Estadual. 

A decisão foi tomada com base em habeas corpus originalmente apresentado pela Defensoria Pública do Espírito Santo, em 2017. Posteriormente, a DPE de outros estados, como Bahia, Ceará, Espírito Santo, Pernambuco e Rio de Janeiro entre outros, também se juntaram ao pedido, e, por conta disso, a decisão foi estendida pelo STF às outras unidades da Federação. A Conectas é amicus curiae na ação.

Crise ambiental e emergência climática

Speech by President Jair Bolsonaro, in a video sent to the United Nations (Photo: UN Photo/Rick Bajornas)

Em seu discurso na 75ª Assembleia Geral da ONU, o presidente Jair Bolsonaro culpou organizações da sociedade civil por uma suposta “campanha de desinformação” contra o país. Diante da comunidade internacional, o presidente minimizou a gravidade das queimadas que devastaram partes do Pantanal e da Amazônia

Dia antes, o STF realizou uma audiência pública para discutir a crise ambiental brasileira e suas implicações para o combate à emergência climática. No espaço, foram abordadas justamente a falta de políticas do governo em relação à proteção do meio ambiente, em especial, as ações de combate ao desmatamento.

Em novembro, uma coalizão de dez redes e organizações da sociedade civil ingressaram com uma ação no STF para pedir a retomada efetiva do PPCDAm (Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia). A ação traz um extenso levantamento com dados e análises sobre a destruição da floresta e a desestruturação de políticas ambientais promovidas pelo governo Bolsonaro. 

Direitos na pandemia

Diante da urgência que a pandemia de Covid-19 impôs no Brasil e no mundo, em julho a Conectas e o Cepedisa/USP (Centro de Pesquisa e Estudos sobre Direitos Sanitário da Universidade de São Paulo) lançaram o Boletim Direitos na Pandemia. A publicação se propôs a realizar um extenso levantamento de todas as normas legais e infralegais editadas pelas diversas instâncias de poder no Brasil, seja no âmbito federal, estadual ou municipal.

Reunindo uma equipe multidisciplinar, o projeto realizou pesquisa documental para constituição de um banco de normas, com produção de dados para análise qualitativa de impacto potencial sobre direitos humanos, além de produção de dados para desagregação e análise quantitativa, em especial o cruzamento de dados sobre as normas com indicadores epidemiológicos.

Até dezembro, foram nove edições do Boletim, que podem ser acessadas aqui.

Cara Pessoa

Você sabe o que é trabalho escravo contemporâneo? Assista o nosso podcast, em parceria com a Folha, "Cara Pessoa" e descubra!

Em 2020 a Conectas ingressou no universo dos podcasts. Em parceria com a Folha de S.Paulo, o programa semanal “Cara Pessoa” abordou os desafios dos direitos humanos e discutiu sua compreensão e assimilação pela sociedade. 

Em dez episódios, o programa conduzido pela jornalista Fernanda Mena tratou de temas como liberdade de expressão, racismo e branquitude, violência policial, direito ao aborto, trabalho análogo ao escravo e migração, entre outros. Os episódios seguem disponíveis nas principais plataformas de podcasts.

Doe para a Conectas e fortaleça este trabalho

Essas foram alguns dos mais relevantes temas de direitos humanos que a Conectas atuou ao longo deste ano tão difícil e turbulento. Esse trabalho só foi possível com o apoio de doadores que acreditam em nosso trabalho e compartilham de nossas causas.  Junte-se a nós e faça parte desta mudança.

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