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18/02/2021

Por que é urgente proteger as comunidades quilombolas durante a pandemia

Crise é fogo no cerrado: comunidades tradicionais resistem a violações do governo federal para manter vivos seus modos de vida



Para o pensador Nego Bispo, uma das principais vozes das comunidades tradicionais do país, os quilombos compartilham modos de se fazer política que transcendem a teoria. “Como Karl Marx vai nos ensinar se Palmares aconteceu antes dele nascer?”, questionou em uma conversa com o professor Renato Noguera, no Instagram. “Palmares fez tudo o que Marx apenas escreveu, e ele nem deu conta de escrever tudo.”

Foi pensando em preservar e proteger esses modos de vida, junto aos partidos PSB, PSOL, PCdoB, Rede Sustentabilidade e PT, que a Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) protocolou no Supremo Tribunal Federal a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 742, exigindo garantias de proteção às comunidades quilombolas, durante a pandemia. Apesar do caráter de urgência, a ação, registrada em setembro, só começou a ser julgada no dia 12 de fevereiro.  

“A gente não precisaria entrar com uma medida dessas se o governo brasileiro cumprisse o que está na Constituição, se cumprisse seu papel de cuidar e proteger as populações mais vulneráveis”, afirma Selma Dealdina, secretária executiva da Conaq. 

Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o Brasil possui atualmente 5.972 quilombos. Por conta da ausência de dados oficiais na pandemia, a Conaq lançou, em parceria com o ISA (Instituto Socioambiental), a plataforma Quilombo Sem Covid-19, que já registrou mais de 200 mortes em comunidades quilombolas. Mortes que poderiam ter sido evitadas. 

A ação da Conaq é uma tentativa de resistir a esse descaso. “Essa ADPF evidencia que os quilombos são invisíveis no Brasil”, afirma a advogada Julia Neiva, coordenadora do Programa de Desenvolvimento e Direitos Socioambientais da Conectas — que participa do julgamento na condição de amicus curiae (amiga da corte), ao lado de instituições como ISA, Educafro, Clínica de Direitos Humanos da UERJ, Terra de Direitos, IARA (Instituto de Advocacia Racial e Ambiental), Federação Nacional das Associações Quilombolas e Defensoria Pública da União. 

Segundo Neiva, além de destacar o racismo estrutural na sociedade, outro aspecto importante da peça apresentada é o evidenciamento de diversas violações ocorridas em territórios quilombolas, como a falta de acesso à água, saneamento e ações de reintegração de posse. “Um dos destaques da nossa ação é a necessidade de suspensão das ações de despejo, porque, ainda que estejam em situação precária, é lá que essas comunidades estão mais protegidas”, afirma a advogada, lembrando das recomendações internacionais de órgãos como a ONU e a Comissão Interamericana para a proteção de grupos étnico-raciais vulnerabilizados.

Para Nego Bispo, a situação política do país é comparável à queima natural do cerrado, ambiente onde cresceu. Ele explica que o fogo se forma quando matérias, como esterco, penas, pelos de animais e galhos criam uma camada seca que deixa de se decompor e, consequentemente, de alimentar a terra. “Uma descarga de energia gera uma faísca que queima a matéria seca. O vento espalha as cinzas e a chuva as infiltra na terra. O calor também desperta sementes que estavam adormecidas e, assim, a vida se reedita no cerrado”, explica o pensador. 

“Foi isso o que aconteceu na sociedade brasileira. O que chamam de crise, com a queda de Dilma, é o fogo no cerrado. Partidos, sindicatos e outras instituições são as matérias secas, que impedem as condições de vida necessárias. Hoje, eles exercem um papel de transição. Os povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais são as sementes que despertaram. Agora, cada povo é responsável por protagonizar sua própria trajetória.”

Como lembra Selma Dealdina, da Conaq, a história do Brasil passa pela história dos quilombos, que romperam o processo de escravidão e criaram espaços de experiências coletivas resistentes até hoje. “Existe a ideia de que os quilombos acabaram quando pensaram que destruíram Zumbi, Dandara e Palmares, mas isso não é verdade, porque Palmares nasce em mim, e nasce em todos aqueles que lutam por dias melhores em prol do coletivo do povo preto, seja do campo ou da cidade.”

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