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09/02/2018

Para especialista, crise de segurança no ES ainda não acabou

Em entrevista, Bruno Toledo afirma que governo perdeu oportunidade para reestruturar a polícia



As famílias das vítimas da maior crise de segurança pública da história do Espírito Santo, ocorrida há um ano, ainda aguardam respostas das autoridades sobre as mais de 200 mortes registradas no período de 21 dias de paralisação da polícia militar no estado.

Para Bruno Toledo, presidente da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese do Espírito Santo, o episódio que alarmou a população capixaba e todo o Brasil foi apenas o ápice de uma crise muito mais profunda e duradoura que se estende até os dias de hoje. “Ainda estamos em fevereiro de 2017”, frisa o ativista de direitos humanos.

Toledo acredita que as autoridades perderam uma grande oportunidade em iniciar um urgente diálogo no sentido de reestruturar as forças policiais, de forma a beneficiar os profissionais de segurança pública e a sociedade. Além disso, acusa o governo de até hoje não ter se empenhado em trazer respostas pelas centenas de mortes registradas em um espaço tão curto de tempo.

Confira abaixo os destaques da conversa:

As causas da crise

Não podemos tentar entender fevereiro, a crise monumental, sem olhar para o passado. A gente precisa compreender um pouco da complexidade do Espirito Santo e tudo aquilo que de alguma forma tem relação com a segurança pública. Me parece muito pueril se a gente tentasse resumir a crise ao movimento das mulheres reivindicando uma pauta salarial ou de melhores condições de trabalho para seus maridos. Isso ocorreu, mas não parece a melhor análise sobre isso. Daí então, eu volto um pouco mais atrás que a gente precisa compreender que Espírito Santo é um estado que tem particularidades.

Somos um estado muito pequeno. Com população relativamente pequena, uma capital pequena, mas com número de violência muito alto, muito expressivos. Precisamos olhar para a polícia que nós tivemos. Tivemos um grupo de extermínio composto por quadros da polícia agindo à sombra da lei. A nossa relação da polícia contra a criminalidade nunca foi bandidos de um lado e polícia de outro.

Além disso, no início da década de 2000, tínhamos cerca de 2.500 presos e hoje temos quase 20 mil. Que aumento foi esse? A resposta do estado prendendo cada vez mais, transformando policiais civis em carcereiros…  Tivemos por muito tempo uma não priorização da polícia militar. Na perspectiva de profissionalização técnica, humana e ética. Sobretudo fazendo com que esse rescaldo daquilo que foi a PM durante os anos da Scuderie Le Coq [grupo de extermínio composto por ex-policiais militares e outros agentes de segurança]. Isso não foi enfrentado no Espírito Santo e em nenhum lugar do Brasil desde a redemocratização.

Reinvindicação das policias

Estamos falando de uma corporação cada vez mais pressionada a ter que dar respostas a essa violência. Uma tropa que ao mesmo tempo não é valorizada. Relações promíscuas com a criminalidade. Além das questões políticas colocadas. A PM cada vez mais se coloca como um ator político. A polícia passa a ser um elemento neste cenário eleitoral.

São pautas justas da perspectiva do trabalhador. Salários muito baixos, muito tempo sem reajuste salarial. Falta de vale alimentação, falta de colete a prova de bala com necessidade de os policiais fazerem rodízio de uso do equipamento.

Houve tentativas de negociação antes. Em momento algum houve uma pré-disposição [do governo] ao diálogo.

Havia um sentimento generalizado na corporação em relação a estas pautas. Afinal, foi a polícia do estado inteiro entrando em paralização.

Porém, acompanhado disso tivemos oportunismo político, oportunismo criminoso e outras situações que se somaram.

Crise continuada

É preciso pensar além de fevereiro. Fevereiro de 2017 é um mês que não acabou. A situação hoje aparentemente é de normalidade, mas as marcas ainda estão abertas, dentro da PM, na sociedade.

Apesar de termos mais de 200 mortes, o Ministério Público denunciou menos de 50.

Inação do Estado

A resposta do estado foi muito mais forte na perspectiva de responsabilizar os responsáveis pela greve do que ir atrás de quem cometeu os homicídios que ocorreram neste período. Houve uma energia muito maior em encontrar os soldados, coronéis e familiares envolvidos com o motim do que para investigar as mortes. Até porque as vítimas são pessoa anônimas, que ninguém sabe quem são, em sua maioria negros, jovens da periferia. Ou seja, não tiveram a mesma prioridade.

Uma questão muito importante a ser pontuada é uma marca estrutural do governo, falta de diálogo este governo tem uma dificuldade imensa de dialogar. O governo tem dificuldade de dialogar com organizações de direitos humanos, que exigem direitos e etc., mas com outros setores, não existe esse problema.

Não é só ouvir, mas também fazer com que aquelas pautas se transformem em ações concretas.

Depois da finalização, nós continuamos com essa dificuldade. Foi feito sem pensar em como se achegou aquilo.

Grupos de extermínio

A OAB fez um levantamento muito interessante sobre os laudos de como isso ocorreu. A grande parte indica execução. Não podemos dizer que não houve um grupo agindo. Durante a crise há claros relatos de homens encapuzadas matando pessoas. Seria leviano afirmar categoricamente, mas existe um histórico no estado neste sentido [em relação a atuação de grupos de extermínio]. Agiram assim por 30, 40 anos. Cabe à PC e ao MP e ao governo afirmam que isso não aconteceu.

Reforma da polícia

É preciso democratizar a segurança pública. Temos que ter uma Ouvidoria mais fortalecida.

Cerca de 700 policiais saíram da polícia após esta crise de fevereiro de 2017. Além disso, há índices altíssimos de depressão e suicídio da polícia. Neste último período foram mais de 300 atendimentos psiquiátricos.

Precisamos de uma maior qualificação para os policiais, repensar a forma de acesso aos quadros policiais, discutir como se conversa sobre direitos humanos com estes profissionais.

Para a sociedade civil estava claro que o termino da crise sem um diálogo faria com a crise se prolongasse. Afinal, qual o grau de comprometimento destes policias que, na prática, não tiveram suas demandas minimamente atendidas?

Precisamos urgentemente de uma reestruturação da polícia militar em todos seus aspectos. A crise foi uma oportunidade perdida para reconstruir estas relações. Naturalmente há um afastamento da PM com a sociedade brasileira. A sociedade, com razão, desconfia da força policial pelo histórico que possui.

Mas, por parte do governo, foi mais do que possível criar outras condições que os policias pudessem voltar às ruas com um pouco mais dignidade.

Sabemos que é preciso melhorias para os policiais, mas isso não nos faz diminuir o tom da denúncia. O fato de estarem com condições e trabalho ruim não os permite agir fora da lei.

Forças Armadas

Estamos vivendo um processo de naturalização de ter as forças armadas sendo para situações cotidiana. E vejo inúmeros problemas nisso. A mim me assustou profundamente quando as forças armadas chegaram no Espírito Santo. Naquele momento a histeria que foi feita, com grande apoio da mídia, filmando os momentos que as tropas entravam no território capixaba e a população batendo palmas sem perceber o que tudo aquilo significava. Tropas sendo usadas para finalidades as quais não são treinadas. E mais do que isso é o que nós, enquanto sociedade, estamos querendo para solucionar este problema da violência urbana. Estamos legitimando que a solução é de guerra. Estamos batendo palma para a resposta do governo que a solução de enfrentamento ao tráfico são as forças armadas. Estamos num processo muito perigoso de legitimar um cenário de guerra civil.

O uso das forças armadas é inconstitucional. É curioso inclusive, o Estado querer que o policial respeite a Constituição [que o proíbe de fazer grave], enquanto os demais poderes não respeitam.

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