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06/12/2013

O legado de Mandela

Para ativistas africanos, líder não viu a África do Sul superar a desigualdade social herdada do Apartheid

Para ativistas africanos, líder não viu a África do Sul superar a desigualdade social herdada do Apartheid Para ativistas africanos, líder não viu a África do Sul superar a desigualdade social herdada do Apartheid


6/12/2013

O presidente sul-africano Jacob Zuma anunciou a morte de Nelson Mandela, uma das mais importantes lideranças políticas da história, às 16h50 de Brasília. Madiba, como era carinhosamente chamado em todo o país, morreu em casa, na cidade de Johanesburgo, aos 95 anos. Há quase 10 ele havia se afastado da vida política. Antes, liderou o fim do regime do Apartheid e governou por dois mandatos, entre 1994 e 1999. Promulgou uma nova Constituição e colocou a economia em um caminho mais próspero, ainda que longe da igualdade social que sempre guiou a sua luta.

O regime segregacionista branco perdurou por quase cinco décadas na África do Sul. Negros foram destituídos de suas terras, violentados e subjugados pela lei, que classificava as pessoas por raça, proibia os casamentos mistos e obrigava as minorias (e aí se incluem os chamados “coloreds” e indianos) a viverem em áreas determinadas da cidade.

Os massacres se multiplicaram nos bairros mais pobres. Em 1969, na cidade de Sharpeville, 69 pessoas foram assassinadas pela polícia enquanto protestavam contra a Lei da Passagem, que obrigava os negros a portarem um documento que definia por quais bairros e regiões eles poderiam circular.

As prisões de opositores do regime eram a regra. Depois de fundar a Liga Juvenil do Conselho Nacional Africano, partido banido pelo regime em 1960, Mandela passou 27 anos preso, 18 deles na prisão de Robben Island.

Encruzilhada econômica

Números mostram a distância que ainda separa os sul-africanos dos direitos humanos, especialmente dos econômicos, sociais e culturais. Quando Mandela se tornou presidente, o Índice de Desenvolvimento Humano era de 0,716. Hoje é de apenas 0,629 – o que coloca o país na 121a posição no ranking mundial.

O mesmo retrocesso foi visto no índice Gini, que mede a desigualdade entre ricos e pobres. Ele passou de 0,56 em 1995 para 0,63 em 2009 (quanto mais próximo do 1, mais desigual é o país).

“Infelizmente, o papel e a integridade de Mandela contrastam com a atual falha do Estado em prover seguridade social, o desemprego, a remoção de pessoas de suas terras, a desigualdade entre homens e mulheres e os níveis de violência, especialmente doméstica”, disse à Conectas a advogada sul-africana Urmila Bhoola, da organização Masimanyane Women’s Support Center. “Essas são questões que enfrentamos atualmente e são questões que Mandela, se ainda fosse presidente, nunca permitiria que emergissem.”

Em entrevista concedida à Conectas em maio de 2013, Janet Love, diretora nacional do Centro de Recursos Legais e membro da Comissão de Direitos Humanos da África do Sul também falou sobre os desafios que o país enfrenta no pós-apartheid.“Embora o padrão de vida da população tenha melhorado de maneira geral, no contexto das desigualdades, a diferença entre as pessoas marginalizadas e comunidades mais vulneráveis e aquelas que têm muito poder e acesso aumentou”, afirmou.

“O que as pessoas ganharam em termos de algum tipo de mudança, particularmente através de subvenções sociais, acesso à educação e aos serviços de saúde, elas perderam no reconhecimento de que os benefícios da transição não estão fluindo de uma forma amplamente suficiente.”

Uma minoria de ativistas sul-africanos abertamente críticos ao ex-presidente, como o ex-funcionário do ministério do Desenvolvimento Patrick Bond, acreditam que Mandela legitimou o status quo e, por pressões econômicas externas e internas, suplantou o Apartheid racial por um Apartheid de classe.

“Dada a desigualdade muito mais extrema, a queda na expectativa de vida, a alta brutal das taxas de desemprego, a maior vulnerabilidade à flutuações econômicas mundiais e mais acelerada degradação ambiental durante sua presidência, que parcela de culpa pode ser atribuída a Mandela? Ele foi empurrado ou pulou?”

Dedicação aos direitos humanos

Apesar da constatação de que a África do Sul se encontra em uma encruzilhada social, fruto dos anos de Apartheid e das decisões que se tomaram no período de transição, é preciso reconhecer a capacidade de Mandela de manter em pé um país fragmentado por décadas de segregação racial e recompor a economia destruída pelas sanções nesse período – um feito que cujas profundas consequências só poderão ser vistas com o passar dos anos. Mais: sua trajetória serviu de exemplo para o fortalecimento da sociedade civil sul-africana, em particular das organizações que trabalham com os direitos humanos.

“Eu me lembro de Mandela falando que tanto a dominação branca quanto a dominação negra eram problemáticas e encorajando as pessoas  lutarem contra qualquer tipo de opressão, recorda Bhoola. Seu legado, sua história e sua inspiração irão viver para sempre.”

Salih Osman, advogado de direitos humanos sudanês, compartilha essa percepção. Ele, que já foi preso e torturado incontáveis vezes, afirma que a memória de Mandela lhe dá coragem para seguir trabalhando.

“É evidente que não há respeito pelos direitos humanos na maioria dos países africanos. Defensores são visados, intimidados e mesmo mortos”, afirma. “Todos eles são inspirados pela extraordinária coragem de Mandela. Ele foi reconhecido como herói por seus inimigos antes mesmo do que por seus amigos.”

“Mandela é, no meu entender, uma exceção ao adágio popular de que a violência gera mais violência, uma vez que ele foi sistematicamente violentado, humilhado e torturado durante os 27 anos em que ficou preso, mas dessa violência física e psicológica ele gerou mais amor, mais capacidade de perdoar e de lutar pacificamente contra a violência”, diz o advogado e ativista de direitos humanos moçambicano João Nhampossa.

“Por isso, é axiomático assumir que a compreensão dos direitos humanos passa, também, pela compreensão da vida e obra de Mandela e seu legado para o mundo.”


Veja o especial produzido pelo governo sul africano aqui.


Veja outros depoimentos dados à Conectas por ativistas de direitos humanos africanos:

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