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04/10/2013

Nota pública sobre regulamentação da Consulta Prévia

Conectas e Justiça Global pedem reformas no Grupo de Trabalho criado pelo governo para cuidar do tema

Conectas e Justiça Global pedem reformas no Grupo de Trabalho criado pelo governo para cuidar do tema Conectas e Justiça Global pedem reformas no Grupo de Trabalho criado pelo governo para cuidar do tema

A Conectas Direitos Humanos e a Justiça Global vêm a público expressar sua preocupação com o processo de regulamentação da Consulta Prévia prevista na Convenção 169 da OIT[1] e levado a cabo por um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI)[2] do Governo Federal, sob coordenação do Ministério das Relações Exteriores (MRE) e da Secretaria-Geral da Presidência da República.

Desde que o governo federal anunciou sua intenção de regulamentar a Convenção 169, e mais especificamente a partir da instituição do GTI, em janeiro de 2012, os povos indígenas, quilombolas e tradicionais, através de suas lideranças e entidades representativas, assim como as organizações da sociedade civil que trabalham com a defesa de seus interesses têm refletido e discutido sobre os desafios que cercam a criação desse marco legal.

Os recentes desdobramentos do processo de regulamentação da Convenção 169 no Brasil têm evidenciado distorções na aplicação das disposições da própria Convenção e o distanciamento da proposta do governo dos padrões internacionalmente estabelecidos a respeito da forma, do escopo e dos objetivos do instituto da Consulta Prévia.

Em primeiro lugar, o processo tem se caracterizado pela ausência de participação dos próprios povos indígenas e tradicionais protegidos pela Convenção 169. Essa ausência ficou bastante clara na “Oficina com a sociedade civil sobre o processo de regulamentação da consulta prévia – Convenção 169 da OIT”, realizada no último dia 01 de agosto na Secretaria-Geral da Presidência da República, em Brasília – DF, que tinha por objetivos enunciados i) a realização de um “balanço geral” dos passos tomados até o momento para a regulamentação da Convenção 169 da OIT e ii) a discussão sobre um “texto orientador do processo de regulamentação”, além da definição de passos futuros.

Das 32 organizações da sociedade civil, nacionais e internacionais, convidadas para o referido evento, de iniciativa do GTI, nenhuma delas representava os povos indígenas, quilombolas e tradicionais do Brasil. Tais organizações, por meio de cartas públicas, contestaram a versão do governo de que as audiências públicas para a regulamentação da Consulta Prévia têm se revestido de caráter participativo e denunciaram que os encontros promovidos até o momento não abrangeram o universo de povos indígenas e tribais brasileiros[3].

Enfatizamos que o próprio processo de consultas públicas para a regulamentação da Convenção 169 também está sujeito às exigências constantes do tratado internacional. Sendo assim, os encontros entre o governo, responsável pela iniciativa de regulamentar a Convenção 169, e a sociedade civil, aí incluídos os povos diretamente protegidos pelo instrumento, devem ser participativos, pautados pelo princípio da boa-fé e orientados para o objetivo de “conseguir o consentimento acerca das medidas propostas”[4]. Mais importante ainda, qualquer medida tomada para tornar concretas as disposições da Convenção 169 “não deverão ser contrárias aos desejos expressos livremente pelos povos interessados”[5].

O segundo aspecto preocupante do processo de regulamentação é o risco de retrocesso que tal medida pode acarretar aos direitos internacionalmente reconhecidos dos povos indígenas e tradicionais. A Secretaria-Geral da Presidência tem divulgado em público, por meio de apresentações realizadas nos últimos meses[6], que a regulamentação da Convenção 169 interpretará o direito à Consulta Prévia excluindo a possibilidade de “veto” de obras, incluso quando possam “afetá-los diretamente”.

A intenção do governo de regulamentar a Convenção 169 sem que se reconheça aos povos indígenas e tradicionais o direito à palavra final sobre a conveniência ou não da adoção de medidas que impliquem na restrição do usufruto de seus direitos, suas terras, suas crenças, seus hábitos culturais, enfim, suas riquezas materiais e imateriais é absolutamente incompatível com:

(i) o texto em si da Convenção 169[7];
(ii) as disposições de outras declarações, acordos e tratados internacionais, como a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas[8];
(iii) o entendimento do Relator da ONU sobre a Situação dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais dos Povos Indígenas[9]; e
(iv) a jurisprudência consolidada da Corte Intermaericana de Direitos Humanos[10].

Todos esses documentos e órgãos que tratam dos direitos fundamentais dos povos indígenas e tradicionais estabelecem como objetivo primordial da Consulta Prévia a busca pelo “consentimento” de tais povos antes da adoção de medidas administrativas e legislativas que potencialmente os afetem.

Atenta contra os direitos humanos desses povos a concepção, por parte de quaisquer dos Poderes do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) de que a Consulta Prévia constitui apenas uma etapa de cunho procedimental e que venha a legitimar a exploração dos recursos de suas terras e a restrição ao usufruto de seus direitos tangíveis e intangíveis, sem que lhes seja assegurado o poder de veto contra tais decisões.

Conclamamos o GTI a revisar a metodologia, o cronograma e o escopo do atual processo de regulamentação da Convenção 169 da OIT para que os sujeitos de direitos, atualmente relutantes na sua participação, passem a ser protagonistas da criação do marco legal. É imprescindível que o processo seja conduzido de modo a assegurar a boa-fé, a transparência, a máxima participação dos atores interessados, a adequação dos instrumentos de diálogo entre as partes e, acima de tudo, a concretização de todo o arcabouço legal, doméstico e internacional, que assegure aos povos indígenas e tribais o direito de darem seu consentimento livre, prévio e informado sobre medidas que afetem suas vidas e seus destinos.

Por fim, endossamos o pleito dos povos indígenas e tradicionais de que o governo demonstre seu compromisso inequívoco com a causa dos povos indígenas começando por revogar a Portaria N. 303/2012[11] da Advocacia-Geral da União (AGU). Sem esse passo indispensável, é inviável o andamento de qualquer diálogo sobre a regulamentação da Convenção 169 da OIT no Brasil.


[1] OIT. Convenção 169, de 27 de junho de 1989. Disponível em: <http://www.ilo.org/dyn/normlex/en/f?p=1000:12100:0::NO::P12100_ILO_CODE:C169>. Versão em português disponível em: < http://www.oitbrasil.org.br/sites/default/files/topic/gender/pub/convencao%20169%20portugues_web_292.pdf>. O Brasil incorporou a Convenção 169 da OIT ao sistema jurídico doméstico por meio do Decreto Legislativo N. 143/20002, de 20.06.2012, sancionado pela Presidência da República através do Decreto N. 5.051/2004, de 19.04.2004.

[2] Portaria Interministerial nº35, de 27 de janeiro de 2012.

 

[3] A “Carta Pública da APIB sobre a regulamentação dos procedimentos do direito de consulta assegurado pela convenção 169 da OIT” circulou no dia 27 de julho entre entidades da sociedade civil, e pode ser lida em: <http://racismoambiental.net.br/2013/07/carta-publica-da-apib-sobre-a-regulamentacao-dos-procedimentos-do-direito-de-consulta-assegurado-pela-convencao-169-da-oit/>. Acesso em 08.08.2013.

 

[4] OIT. Convenção 169, Art. 6º, 2.

 

[5] OIT. Convenção 169, Art. 4º.

 

[6] Apresentação da Secretaria da Presidência (“Processo participativo de regulamentação dos procedimentos de consulta prévia da Convenção 169 OIT”) durante o Seminário “Direitos Humanos e Mecanismos de Reclamação e Diálogo” organizado pelo Instituto Ethos em São Paulo no dia 11 de junho de 2013.

 

[7] OIT. Convenção 169, Art. 6º, 2: “As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas”.

 

[8] ONU. Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Art. 19: Os Estados consultarão e cooperarão de boa-fé com os povos indígenas interessados, por meio de suas instituições representativas, a fim de obter seu consentimento livre, prévio e informado antes de adotar e aplicar medidas legislativas e administrativas que os afetem”. Versão em português. Disponível em: <http://www.un.org/esa/socdev/unpfii/documents/DRIPS_pt.pdf>. O Brasil votou a favor da Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, o que reflete o seu comprometimento om os princípios e objetivos ali elencados, além da obrigação de conferir garantias jurídicas aos povos indígenas. Sobre o histórico de votação, cf. < http://unbisnet.un.org:8080/ipac20/ipac.jsp?profile=voting&index=.VM&term=ares61295>.

 

[9] Ao tratar dos problemas que cercam a construção de uma usina hidrelétrica no Panamá, o Relator Especial, James Anaya, assim se pronunciou: “Por esta razón, el consentimiento es una precondición para este tipo de proyecto […]. Así, el Convenio Nº 169 de la OIT, producto de esta revisión, reconoce explícitamente la necesidad de realizar consultas para llegar al consentimiento en relación con toda decisión que implique el desplazamiento de una comunidad indígena (arts. 6.1 y 16.2), sea lo que sea el interés público”. James Anaya. Report of the Special Rapporteur on the situation of human rights and fundamental freedoms of indigenous peoples. Promotion and Protection of all Human Rights, Civil, Political, Economic, Social and Cultural Rights, including the Right to Development. Addendum Observations on the situation of the Charco la Pava community and other communities affected by the Chan 75 hydroelectric project in Panama, de 07.09.2009. Disponível em: < http://unsr.jamesanaya.org/docs/special/2009_special_panama_chan_sp.pdf>.

 

[10] A Corte Interamericana de Direitos Humanos tem uma vasta jurisprudência em que se reconhece o direito dos povos indígenas e tradicionais da região de “consentirem” com as medidas legais e administrativas que os afetem. Na sentença do emblemático caso Saramaka vs. Surinam, de 20.09.2007, a Corte Interamericana assim se pronunciou: “Párr. 136. “Al respecto, el Relator Especial de la ONU sobre la situación de los derechos humanos y las libertades fundamentales de los pueblos indígenas ha observado, de manera similar, que: “Siempre   que   se   lleven   a   cabo   [proyectos   a   gran   escala]   en   áreas ocupadas   por   pueblos indígenas,    es    probable    que    estas    comunidades   tengan    que atravesar cambios sociales    y económicos profundos que las autoridades competentes nos son capaces de entender, mucho menos anticipar. [L]os efectos principales […] comprenden la pérdida de territorios y tierra tradicional, el  desalojo, la  migración  y el  posible  reasentamiento, agotamiento de recursos necesarios para la subsistencia física y cultural, la destrucción y contaminación del ambiente tradicional, la desorganización   social   y   comunitaria,   los   negativos   impactos   sanitarios   y nutricionales de larga duración [y], en algunos casos, abuso y violencia. En consecuencia,  el   Relator   Especial   de  la ONU determinó   que   “[e]s   esencial   el   consentimiento libre, previo e informado  para la protección  de los derechos humanos de los pueblos indígenas en relación con grandes proyectos de desarrollo”. Disponível em: < http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_172_esp.pdf>.

 

[11] A Portaria N. 303/2012 da Advocacia-Geral da União  estendeu  às  demarcações  de terras indígenas  no  Brasil  as  condicionantes  postas pelo STF no  julgamento  do  caso  Raposa  do  Sol,  cujos contornos concretos não são idênticos aos demais casos de remarcação. Tal Portaria tem sido duramente criticada pelas comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais do Brasil.

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