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24/02/2022

Entrevista: a relação entre xenofobia e racismo na morte de Moïse Kabagambe

Um mês depois do assassinato do jovem congolês, o coordenador do projeto A Voz do Congo, Prosper Dinganga, condena o crime, mas consegue ver lado positivo do Brasil

O ativista congolês Prosper Dinganga, coordenador do projeto A Voz do Congo (Foto: Reprodução/ Youtube) O ativista congolês Prosper Dinganga, coordenador do projeto A Voz do Congo (Foto: Reprodução/ Youtube)

O assassinato do jovem congolês Moïse Kabagambe, no dia 24 de janeiro, evidenciou a relação entre migração e racismo no Brasil. Um mês depois de Kabagambe ter sido espancado até a morte, em um quiosque na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, três acusados já foram presos preventivamente. Outros dois estão sendo investigados. Mas a família demonstra preocupação pela maneira com a qual as investigações vêm sendo conduzidas, já que não puderam ter acesso à íntegra das imagens da câmera de segurança do quiosque. 

O coordenador do projeto A Voz do Congo, Prosper Dinganga, destaca a latente xenofobia presente no caso. “As pessoas que mataram Moïse deviam sentir que, por ele ser estrangeiro, nada aconteceria com elas”, afirma o ativista e especialista em Geopolítica e Estratégia. “Como alguém que vive no país em situação de refúgio, sinto que a população brasileira precisa entender melhor a questão migratória.” 

Dinganga chegou a ser detido pela inteligência de seu país, a República Democrática do Congo, por conta de suas opiniões políticas, e, desde 2013, vive no Brasil. “Diferente de um imigrante, um refugiado não escolhe para onde vai. Ele vai para o país que lhe abre as portas. O Brasil me abriu as portas, então foi ele que me escolheu”, afirma, lembrando ainda dos abusos pelos quais já passou. “Eu saí quebrado, mas também saí fortalecido, com as ideias para continuar.”

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À Conectas, Dinganga falou da percepção da comunidade congolesa sobre o caso de Moïse, e, apesar de condenar a xenofobia presente no Brasil, demonstrou otimismo em relação ao país.  

Conectas – Como vê a situação de pessoas que saem de seus países em busca de oportunidades e se deparam com situações de violência no lugar que deveria acolhê-las?

Prosper Dinganga – É um choque! A maioria das pessoas negras que chega ao Brasil começa a ter aqui essa percepção de si como negras. A ficha da questão discriminatória começa a cair. A gente sabe que o Brasil é o pais que mais tem negros fora do continente africano, por isso, quando chega aqui, ninguém imagina que vai sofrer essa discriminação. Além disso, a covardia com a qual Moïse foi assassinado gerou muita comoção na comunidade congolesa e nos estrangeiros africanos de forma geral. Vi muitas pessoas que não se interessam por questões políticas indo nas manifestações para falar o que sentiam. Também foi um momento de dar força à família, dizer que estamos juntos nessa. Se aconteceu com o Moïse, pode acontecer com qualquer pessoa. 

Conectas – Também cai a ficha de que o brasileiro é um povo menos amável do que se pensa?

Prosper Dinganga – Não podemos generalizar. Da mesma forma que existem brasileiros racistas e homofóbicos também existem muitos brasileiros bons. Alguns dias depois das manifestações que fizemos, um venezuelano refugiado foi morto com um tiro no peito, por causa de uma dívida de R$ 100. É um absurdo! Mas, ainda assim, acredito que sejam poucos os que cometem esse tipo de crime. 

Conectas – Como o racismo se relaciona com a xenofobia?

Prosper Dinganga – São vários os estereótipos que a sociedade brasileira coloca na gente. O fato de ser um refugiado já faz com que as pessoas te olhem diferente, e o fato de ser negro também. Assim, um refugiado africano tende a sofrer mais no Brasil. Podemos não perceber muito a questão da xenofobia, mas a questão racial é evidente. Os negros brasileiros já têm oportunidades mínimas, então quando o refugiado chega ele acaba entrando nesse ciclo vicioso que o Brasil nunca resolveu. 

Conectas – Acha que também falta o Brasil entender mais sobre a própria África?

Prosper Dinganga – Com certeza. Existe um abismo em relação à África. Na minha percepção pessoal, para os brasileiros, a África é um grande continente, cheio de animais selvagens convivendo com os habitantes, além de todo o estereótipo da mídia, que retrata somente os conflitos e a fome. Isso acaba impactando a população. Pela sua questão histórica, o Brasil deveria se aproximar muito mais do continente africano, para entender quais são as Áfricas que existem hoje, quais são as dificuldades. 

Por exemplo, quando cheguei ao Brasil, muitas pessoas nem sabiam onde era o meu país. Achavam que ficava perto do Haiti. E até hoje muitas não sabem. O conflito do Congo tem mais de vinte anos, e a mídia tradicional não trata disso. Por outro lado, quando aconteceu o conflito da Síria, falou-se muito. Mês passado, houve um golpe de estado em Burkina Faso e pouco se falou, porque o Brasil está fora dessa realidade. O que prevalece é a questão do estereótipo. 

Conectas – Como você vê a relação do Brasil com seu passado escravocrata?

Prosper Dinganga – De forma geral, vejo que o Brasil tem muita dificuldade de falar dos seus próprios problemas. O Brasil precisa muito aprender com o seu passado, e assumir seus erros em relação ao racismo. Quando não se busca curar essa ferida, apenas limpá-la, isso atravessa gerações.

Conectas – E como você percebe o Brasil hoje?

Prosper Dinganga – As dificuldades do Brasil me fizeram crescer muito, me fortaleceram. Não vejo apenas o lado negativo, vejo também o positivo. Mesmo que exista a corrupção, as coisas ainda andam por aqui. Queria que meu país fosse um pouco parecido com o Brasil. Sei que não existe país perfeito, mas viver aqui abriu a minha mente para poder aprender e entender. Para mim, o Brasil é uma escola. Desde que cheguei, a primeira coisa que coloquei na cabeça foi que eu iria estudar sobre o país e entender como as coisas funcionam de fato. Assim, se um dia eu voltar ao meu país, vou poder usar o Brasil como modelo. 

Um desejo meu seria que as pessoas dessem mais oportunidades para os migrantes. Uma pessoa refugiada não tem sua dignidade descartada. A população brasileira poderia olhar mais para essa questão, não com um olhar de ajuda, mas dando as mãos para andar junto. 

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