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10/01/2013

Cracolândia

Há um ano do fracasso da abordagem policial, problemas sociais e de saúde pública permanecem para usuários e comunidade



No dia 3 de janeiro de 2012 o Governo do Estado de São Paulo deu início a uma grande operação policial cujo objetivo era remover os usuários de drogas existentes na região do Centro de São Paulo conhecida como Cracolândia, onde há anos um grande número de dependentes vivia nas ruas, em condições subumanas de saúde e moradia.

A operação se caracterizou pela primazia da questão da ‘segurança pública’, com o uso da cavalaria e de grupos especiais da Polícia Militar em abordagens marcadas por uma violência brutal. O amparo de assistentes sociais, psicólogos e outros profissionais da saúde pública acabou deliberadamente relegado a um segundo plano, revelando uma intenção final perversa de ‘limpeza’ de uma paisagem urbana que se pretende recuperar, em detrimento da vida de centenas de pessoas marginalizadas socialmente e excluídas do amparo social do Estado.

“As pessoas que se encontram nesta situação são normalmente vítimas de uma longa cadeia de violações de direitos humanos. Para que elas chegassem até ali, vários de seus direitos foram desrespeitados. É simplista pensar que o uso da força policial para tirar essas pessoas da rua seja suficiente para resolver uma teia tão complexa de vulnerabilidade e marginalização”, disse Lucia Nader, diretora executiva da Conectas.

No auge da operação policial, Conectas esteve no local colhendo depoimentos de vítimas e conversando com membros do Ministério Público, da Igreja e de outras organizações sociais. A partir deste trabalho de campo e da compilação de Boletins de Ocorrência registrados por vítimas da violência policial, além do acesso a um inquérito instaurado pelo Ministério Público, Conectas e outras três ONGs parceiras – Pastoral Carcerária, Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), e Instituto Práxis – enviaram à ONU um ‘Apelo Urgente’.

O documento foi recebido tanto pelo relator especial das Nações Unidas (ONU) para Saúde, quanto pela relatora para Moradia e o relator para Tortura e Tratamento Cruel, Desumano ou Degradante, na sede do Conselho de Direitos Humanos da ONU em Genebra, na Suíça. A intenção era somar esforços na tentativa de impedir a continuidade das arbitrariedades que estavam sendo cometidas na operação. O processo que se seguiu a partir de então, de questionamentos dos relatores ao Estado brasileiro, corre em sigilo.

Seis meses após a deflagração da operação, o Ministério Público do Estado de São Paulo definiu o ocorrido como um “fracasso” e ajuizou  Ação Civil Pública contra o Governo Estadual, pleiteando R$ 40 milhões de indenização do Estado por “danos morais coletivos”. Ainda não há decisão da Justiça sobre o pedido.

Internação compulsória

Um ano depois, passada a fase crônica do uso da violência no processo de remoção dos dependentes da Cracolândia, São Paulo, a maior cidade do Brasil, continua com os mesmos problemas insolúveis em relação a esse fenômeno. Em vez de estarem concentrados na região da primeira operação, muitos dependentes continuam morando nas ruas, sob pontes e viadutos, embora de maneira menos concentrada.

Pior, as autoridades paulistas pretendem aprofundar o equívoco, anunciando com estardalhaço que a “segunda fase” da operação começa nesse mês, com uma espécie de mutirão de internação compulsória dos dependentes químicos da região. A posição do Governo pôde ser melhor compreendida no último dia 8 de janeiro, quando a secretária da Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, Eloísa Arruda, defendeu em artigo de opinião publicado no jornal Folha de S. Paulo o uso da internação compulsória como medida para resolver o problema dos dependentes do crack. No texto, ela afirma que “quando usuários de droga colocam a vida em risco, submetê-los à força a tratamento não viola, mas resguarda direitos humanos”.

Entretanto, o modelo de internação compulsória tem sido cada vez mais questionado por especialistas da área de saúde. Como lembra a Nota de Posicionamento publicada este mês pela Rede Pense Livre, “a ONU recomendou aos países-membros a extinção imediata das internações compulsórias e dos centros de reabilitação forçada por não haver evidências científicas que os apontassem como estratégias exitosas de tratamento para usuários com dependência”.

Especificamente sobre o crack, recomenda-se uma abordagem individualizada dos usuários, que tome em conta os fatores sociais que colaboram para a dependência. Neste sentido, a Rede menciona a experiência dos Centros de Atenção Psicossocial para Álcool e Outras Drogas (CAPS-AD), que deveriam ter sua capacidade robustecida para lidar com o problema.

Impacto no encarceramento em massa

Uma das consequências mais nocivas da abordagem primordialmente policial para o problema dos dependentes de drogas é o aumento no número de usuários que são presos como traficantes. São em geral pessoas pobres, sem emprego, com frágeis vínculos com a comunidade e que são jogadas e esquecidas nas prisões superlotadas de São Paulo. Lá, muitas são vítimas de outras violações, como tortura, maus-tratos e falta de acesso à defesa.

A lei atual de drogas (n.º 11.343/2006) é vaga a respeito de quem é usuário e quem é traficante. Na dúvida, a aplicação deesta lei acaba por punir usuários (dependentes químicos), autuados como pequenos traficantes – na verdade comercializam a droga para sustentar o próprio vício. O perfil da maioria é jovem, pobre, negro e, em regra, primário.

A nova lei de drogas é um dos fatores que tem levado o Brasil a ter a 4ª maior população carcerária do mundo, Hoje a população carcerária brasileira é de cerca de 550 mil presos, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). No Estado de São Paulo, onde estão cerca de 40% dos presos do País, a população carcerária dobrou de 2001 até 2012, e o número de presos não para de crescer.

É evidente que o Estado deveria assumir como prioridade uma política pública que propusesse a redução do impacto da lei de drogas no sistema prisional, por meio do fornecimento adequado de atendimento médico e de tratamento aos dependentes químicos; criação de critérios legais objetivos que definam quem é usuário, pequeno ou grande traficante; e descriminalização do uso/porte de entorpecentes, apoiando o julgamento do Recurso Extraordinário n.º 635.659 em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal que trata do tema.

Debate no STF

O tema deve entrar na pauta de julgamento do STF (Supremo Tribunal Federal) ainda este ano. Conectas, Pastoral Carcerária, Instituto Sou da Paz e ITTC, foram admitidas como amici curie pelo Ministro Gilmar Mendes em Recurso que questiona a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006), que prevê a proibição do consumo de drogas.

O Recurso Extraordinário nº 365.359 que tramita no Supremo Tribunal Federal foi apresentado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo e pede que o artigo da Lei que trata da proibição do consumo de entorpecentes seja declarado inconstitucional.

A manifestação apresentada pelas entidades traz um histórico da política de combate às drogas no mundo e faz um recorte sobre a posição do Brasil neste cenário. Além disso, traz dados de pesquisas empíricas sobre o impacto da Lei de Drogas na justiça criminal e sistema penitenciário.

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