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18/08/2021

Como as comunidades quilombolas enxergam os empreendimentos

Altos ruídos, mortes de animais e conflitos pessoais fazem parte dos impactos sofridos até mesmo por comunidades que não aceitaram arrendar seus terrenos

Missão de campo na região da Chapada do Araripe, território que compreende os Estados de Pernambuco, Ceará e Piauí. Foto: João Paulo Brito/Conectas Missão de campo na região da Chapada do Araripe, território que compreende os Estados de Pernambuco, Ceará e Piauí. Foto: João Paulo Brito/Conectas

“Nós aqui dos povos da Chapada do Araripe, nós não nos consideramos, de certa forma, pernambucano, paraibano, piauiense e cearense. Nós somos os povos que compõem o entorno da Chapada do Araripe, onde existia uma nação com nome Cariri”, explica Alemberg Quindins, criador da Fundação Casa Grande.

Alemberg faz referência a meados do século XX, um período no qual as pessoas que antes habitavam a região em torno da Chapada do Araripe a denominaram de “Estado do Cariri” e batizaram a si mesmas como “Povos do Cariri”. 

“O território do Cariri foi dividido pelo Pernambuco, Paraíba, Piauí e Ceará. Mas, para os povos Cariri não, aqui era um território só. A chapada, para eles, representava a terra prometida dos povos desse miolo do nordeste brasileiro”, continua. 

O termo “Cariri” tem origem indígena. No Tupi, principal família linguística das tribos do sertão, “Kiri´ri” significa “silencioso”. Atualmente, parte do que resta da herança cultural dos Cariri está presente nos índios Cariri, que vivem na comunidade Serra Grande, localizada em Queimada Nova, município piauiense distante cerca de 550 km de Teresina. Os Cariri da Serra Grande se tornaram o primeiro povoado indígena a ter seu território demarcado oficialmente no Estado do Piauí, em agosto de 2020.

Outra parte da preservação cultural dos povos da Chapada do Araripe segue viva em comunidades quilombolas. É o caso do Quilombo Serra dos Rafaéis, uma comunidade com cerca de 60 famílias, localizada no topo da chapada e que pertence ao município de Simões (PI). “Nossa preocupação é ficar sem moradia, que as empresas tomem nossa moradia. Esta é nossa preocupação”, explica Dalva de Jesus, liderança comunitária.

“É muito evidente para quem atua com os povos historicamente explorados do país, que suas vidas, sua economia, cultura, lazer, todo seu mundo está ligado a seu território a às maneiras como se relacionam com o mesmo. Quando um povo se preocupa com a própria possibilidade de permanecer em seu território, a verdade é que está se preocupando com a sua própria existência como povo, o que é um impacto gigante”, afirma Alexandre Andrade Sampaio, coordenador para América Latina e Caribe da International Accountability Project.

Associação para defender seus direitos

Receosas quanto às abordagens frequentes de representantes das empresas de geração eólica, que cobiçam os terrenos por verem nas terras o chamado “potencial “eólico”, as líderes da comunidade, em sua maioria mulheres, criaram a Associação de Remanescentes de Quilombolas da Comunidade de Serra dos Rafaéis e utilizam a igreja do povoado para dialogar e deliberar ações com todos os moradores.

Vídeo reúne relatos de moradores da região e de pesquisadores que estiveram no local: 

 

Nestes espaços de conversa, também são discutidas possíveis providências a serem tomadas diante dos impactos sofridos pela instalação das torres em terrenos vizinhos. Literalmente rodeados de aerogeradores, os habitantes do povoado sofrem com os mesmos impactos daqueles que autorizaram o arrendamento de seus terrenos. No entanto, não usufruem dos benefícios do negócio ou de qualquer assistência por parte das empresas.

Entre as principais reclamações estão os altos ruídos causados pelas hélices, que aumentam drasticamente conforme a força dos ventos, chegando a gerar dificuldades para que as pessoas durmam. 

O aumento da incidência de raios, assim como a morte de animais, sobretudo, voadores, também são apontados como fatos novos que passaram a ocorrer após a chegada dos parques eólicos na região.

“Uma coisa que nós estamos lutando e querendo são os nossos direitos. Nós exigimos que os donos e as pessoas que trabalham no parque nos procure. Assim como nós demos abertura, eles também precisam ver o nosso lado e nos fornecer alguma ajuda, de alguma forma”, ressalta Dalva, presidente da associação.

Porém, enquanto o Quilombo da Serra dos Rafaéis demonstra capacidade para se unir e reivindicar seus direitos, não muito distante dali, a comunidade Serra da Mata Grande, no mesmo município, passa por situação oposta.

Assim como sua vizinha, o povoado também é visado pelas empresas de geração eólica no processo de expansão do Parque Eólico Araripe III. Porém, sem a articulação necessária para se reunirem e discutirem soluções viáveis a toda a comunidade, os moradores passaram a receber visitas frequentes de representantes comerciais das empresas.

As conversas realizadas em âmbito individual e com cada família, passou a gerar um clima de desconfiança mútua entre os habitantes. Surgiram boatos de que um morador ou outro possa já estar negociando o arrendamento ou de que o valor do arrendamento de um terreno será superior aos demais.

Negociações não respeitam a comunidade

“A dinâmica de negociação individual, sem respeito aos tempos e processos de consulta determinados pela própria comunidade, representa uma afronta à Convenção 169 da OIT, que foi internalizada pelo Estado Brasileiro com o intuito de evitar a contínua deterioração das culturas e modos de vida das comunidades que compõem o mosaico nacional”, sinaliza Sampaio.   

A estratégia de abordagem adotada pelas empresas iniciou um processo de erosão dos laços sociais e tradicionais da comunidade, cujos moradores passaram a se aproximar de negociações seguindo a lógica imposta por quem lhes aborda, deixando de lado qualquer preocupação com seus modos de vida e visão de mundo.

Há poucos anos, a comunidade ingressou com pedido, junto à Fundação Palmares, para o seu reconhecimento enquanto CRQ (Comunidade Remanescente de Quilombo), tendo como base seus troncos familiares e suas manifestações culturais e festejos tradicionais.

“O devido reconhecimento dessas comunidades como tradicionais e quilombolas, não é apenas um fator de justiça histórica, mas é também um mecanismo para o reconhecimento e cumprimento de seus direitos. Foi através de articulação feita com os seus pares quilombolas que essas comunidades conseguiram vacinação com prioridade, o que demonstra a importância de dinâmicas externas não destruírem esses processos”, afirma Julia Neiva, coordenadora do programa Defesa dos Direitos Socioambientais da Conectas.

No entanto, a partir do momento em que representantes das empresas passaram a sugerir que o reconhecimento da comunidade como quilombola poderia atrapalhar no arrendamento dos terrenos, os próprios moradores passaram a evitar seguir com o processo e a suspender o envio da documentação necessária para a emissão do certificado. 

“Eles foram de casa em casa, conversando com as pessoas. Teve uma reunião com todo mundo, mas quando fizeram eles já tinham ido de casa em casa. Quando foram na minha casa, disseram que não haveria prejuízo nenhum, só haveria lucro, que seria muito bom”, afirma Adilson Lopes, morador da comunidade.

Há moradores da comunidade que veem na possibilidade de arrendar suas terras como uma forma de adquirir uma renda que contribua com sua sobrevivência, mas não é consenso. Ao mesmo tempo, reconhecem desconhecer quais serão seus direitos após a assinatura do contrato com a empresa..

Sem contar com escolas ou unidades de saúde, as comunidades de Serra dos Rafaéis e de Serra da Mata Grande são exemplos de povoados relegados à própria sorte e que precisam, por si só, negociar seu futuro com empresas milionárias que vêem na força dos ventos uma oportunidade de fortuna.

Em novembro de 2020, em comunicado publicado pela Votorantin, que possui uma joint venture – parceria comercial – envolvendo o Complexo Eólico Ventos do Araripe III e o parque Vento do Piauí I, a empresa anunciou que a receita líquida provida por estes empreendimentos aumentou 6% no terceiro trimestre de 2020 em relação ao mesmo período de 2019, atingindo R$ 558 milhões.

Para Neiva, este cenário mostra que até mesmo projetos de energia limpa podem ter efeitos gravíssimos na vida das comunidades da região quando são desenvolvidos sem participação social e sem preocupação com os efeitos que podem causar na vida das pessoas.

“A energia eólica é uma das alternativas disponíveis para a necessária e urgente mudança da matriz energética fóssil para a renovável. No entanto, para que a energia seja verdadeiramente ‘limpa e barata’, é preciso respeitar as comunidades locais. Os empreendimentos ditos sustentáveis não podem cometer as mesmas violações de direitos humanos que ocorreram na Usina Hidrelétrica de Belo Monte (PA), na Pequena Central Hidrelétrica Capão Grande (PR) e que constatamos na viagem a Araripe”, afirma Neiva. “É evidente que a produção de energia limpa deve ser fomentada, que o Brasil precisa descarbonizar sua matriz energética, mas não em detrimento das populações locais”, finaliza.

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