No momento em que foi elaborada, a Constituição Federal de 1988 abraçou uma tese conhecida jurídica como indigenato, em que se reconhece o direito inerente dos povos indígenas a dispor de seu território ancestral, que muito é anterior ao Estado brasileiro. Essa visão está resumida no artigo 231 da Carta, que estabelece os direitos desses povos “sobre as terras que tradicionalmente ocupam” e, ainda, obriga o Estado a demarcá-las e protegê-las. 

Apesar de ser claro e contundente, esse trecho do texto constitucional vem sendo cada vez mais questionado por pessoas, órgãos do poder público e instituições interessadas em explorar terras indígenas e reduzir o alcance dessa proteção. 

Eles se apoiam em um parecer elaborado pela AGU (Advocacia-Geral da União) em 2017 que defende a utilização de um “marco temporal” para determinar se uma terra pertence tradicionalmente a um determinado povo indígena. Esse “marco” seria o momento da promulgação da Constituição Federal. Em outras palavras, para os defensores desta tese, os povos indígenas só teriam direito a reivindicar os territórios que estavam ocupados por eles em outubro de 1988.

Esse debate chegou ao STF (Supremo Tribunal Federal) na forma de um Recurso Extraordinário (RE 1017365) envolvendo o povo Xokleng e a Fatma (Fundação do Meio Ambiente de Santa Catarina), que quer a reintegração de posse de uma Terra Indígena já identificada e que abriga, ainda, pessoas dos povos Guarani e Kaingang. 

A Corte determinou que o resultado desse julgamento terá repercussão geral, ou seja, deverá ser aplicado em todas as disputas envolvendo terras indígenas no país.

A Conectas, admitida como amicus curiae no processo, entende que a tese do “marco temporal” viola o direito constitucional dos povos indígenas e contraria diversas obrigações assumidas pelo Brasil em tratados e outros dispositivos internacionais que tratam do tema – entre eles a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. 

Nos memoriais que apresentou ao STF, a entidade também recorda a que Corte Interamericana de Direitos Humanos já se pronunciou diversas vezes sobre o assunto, sempre afirmando que  a determinação de quais terras são tradicionalmente ocupadas deve ser feita caso a caso por meio da verificação da existência de relações da comunidade indígena com a terra reivindicada, e não pela fixação de um marco temporal arbitrário. 

Em outras palavras, para a Corte Interamericana, se ainda há vínculo ou relação com a terra (seja material ou espiritual), o direito segue vigente, não importa o tempo transcorrido. 

Em seus memoriais, a Conectas também recorda que os povos indígenas foram historicamente submetidos à violência e ao espólio e que, portanto, levar em conta um marco temporal arbitrário é negligenciar as expulsões produzidas antes da Constituição de 1988. 

Finalmente, a entidade afirma que a prevalência da tese do “marco temporal” agravaria a violência e as vulnerabilidades sofridas pelos povos indígenas no Brasil, e recorda que seu direito à terra está diretamente relacionado com a sua existência, reprodução física e cultural, integridade física e psíquica e identidade cultural.

Em decisão liminar em fevereiro de 2020, o então ministro relator Edson Fachin determinou a suspensão da portaria da AGU. O caso aguarda julgamento pelo plenário do STF.


Ficha técnica

  • Ação: RE-1017365
  • Instância: STF (Supremo Tribunal Federal)
  • Status: Julgamento suspenso 
  • Tramitação:
    • 14/12/16: Petição inicial
    • 25/2/19: Reconhecimento da repercussão geral do caso
    • 29/7/20: Pedido de ingresso como amicus curiae
    • 11/06/20: Julgamento é iniciado no plenário virtual e interrompido após pedido de destaque de Alexandre de Moares
    • 03/06/21: Julgamento é incluído na pauta do STF, mas não é votado por falta de tempo. O julgamento foi remarcado para o dia 25 de agosto
    • 15/09/21: Alexandre de Moraes pede vista e julgamento é suspenso