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10/12/2014

Um passo histórico

Relatório final da CNV pode abrir o caminho para enfrentar violações de direitos humanos do presente



Quase 30 anos depois do fim da ditadura militar (1964-1985), os membros da CNV (Comissão Nacional da Verdade) apresentaram nesta quarta-feira (10/12) o mais importante documento já produzido no Brasil sobre as violações de direitos humanos ocorridas no País entre 1946 e 1988. O relatório de três volumes foi recebido pela presidente Dilma Rousseff em cerimônia oficial no Palácio do Planalto.

  • A versão completa do relatório pode ser descarregada aqui.

O relatório atesta o caráter “generalizado e sistemático” das graves violações aos direitos humanos cometidas durante a ditadura por agentes do Estado Brasileiro e constata que o cenário investigado pelos comissionados “persiste nos dias atuais”.

“Embora não ocorra mais em um contexto de repressão política – como ocorreu na ditadura militar —, a prática de detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e mesmo ocultação de cadáveres não é estranha à realidade brasileira contemporânea”, atestam as conclusões.

“Apesar de todos os entraves impostos à CNV, a começar pela falta de cooperação das Forças Armadas, não podemos diminuir o valor histórico, político e simbólico desse relatório, especialmente por trazer à luz os desafios que a democracia herdou do regime ditatorial – entre eles, a persistência da tortura e da violência policial”, afirma Rafael Custódio, coordenador do Programa de Justiça da Conectas.

Para Flávia Piovesan, professora de Direito Constitucional da PUC/SP, “o relatório reconhece a violência articulada e sistemática por parte do aparato estatal”. Piovesan também afirma que “vivemos o fim desse processo, mas também o início de outro – o que implica a promoção de mudanças institucionais profundas no Estado Democrático de Direito, desde a promoção de consciência histórica até as reformas legislativas”.

No topo da lista de recomendações da CNV está o pedido de responsabilização criminal, civil e administrativa de agentes públicos envolvidos em violações de direitos humanos. Como explica Piovesan, a Comissão reforça assim a tese de que crimes contra a humanidade não prescrevem. Para a Comissão, portanto, a investigação e a condenação de autoridades não dependeria da revisão da Lei de Anistia pelo Supremo Tribunal Federal. “A posição dos comissionados abre caminho para posições mais audazes por parte das instituições governamentais nessa matéria”, diz.

Mudanças institucionais

Em seu conjunto, as 29 recomendações feitas pela CNV ao Legislativo, ao Executivo e ao Judiciário no relatório tentam abrir caminho para mudanças institucionais que possam fortalecer o respeito pelos direitos humanos. Entre elas estão as sugestões feitas pela Conectas aos comissionados através do mecanismo aberto para a participação cidadã na elaboração das recomendações.

É o caso das propostas de criação de mecanismos estaduais de prevenção e combate à tortura, nos moldes do Mecanismo Nacional sancionado pela Presidência em agosto de 2013, e de aprovação de projeto de lei (554/2011) que institui as audiências de custodia – instrumento que garante contato entre um suspeito e o juiz logo após a detenção, inibindo a tortura e diminuindo o número de prisões desnecessárias.

As demais recomendações feitas pela Conectas e acolhidas pela CNV se centram no fortalecimento dos Conselhos da Comunidade e em sua criação nas comarcas em que ainda não existem; na proibição da revista vexatória em locais de privação de liberdade; na independência dos órgãos de perícia das secretarias de segurança pública; na criação de ouvidorias e corregedorias externas e independentes para o sistema prisional; e, por fim, a reforma das polícias.

  • Leia aqui a íntegra das recomendações feitas pela Conectas à CNV.

Antecedentes

A Lei de Anistia (6683/79) foi considerada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal em maio de 2010. Em novembro do mesmo ano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (no caso Gomes Lund e Outros) declarou a incompatibilidade a Lei de Anistia com a Convenção Interamericana de Direitos Humanos. A sentença afirma que as leis de anistia constituem obstáculos para a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos e crimes contra humanidade e impedem reparação devida às vítimas da perseguição.

Em resolução de outubro de 2014 sobre o cumprimento dessa sentença, a Corte Interamericana reafirmou a ‘incompatibilidade’ da Lei de Anistia com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil em matéria de direitos humanos. A Corte reiterou que a interpretação da norma “continua comprometendo a responsabilidade  internacional do Estado e perpetua a impunidade de graves violações de direis humanos, em franco desconhecimento do decidido por essa Corte e pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos”.

O relatório da CNV, portanto, pode ser visto como passo importante para que o Brasil finalmente cumpra suas obrigações internacionais nessa matéria.

  • Leia aqui a sentença da Corte Interamericana no caso Gomes Lund (2010) e aqui a resolução (2014) da mesma Corte sobre o incumprimento da decisão pelo Brasil.

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