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30/04/2019

Opinião: Por que o Brasil precisa de uma legislação de transparência na cadeia produtiva

Artigo de Caio Borges, coordenador de Desenvolvimento e Direitos Socioambientais



Artigo originalmente publicado no CORE Coalition.

O Brasil está perdendo terreno na erradicação de formas contemporâneas de trabalho escravo em suas cadeias de fornecimento. Lições aprendidas com a implementação da Lei de Escravidão Moderna do Reino Unido podem ser o ponto de partida para futuros avanços legislativos no maior país da América do Sul.

A luta do Brasil contra a escravidão moderna

Brasil, a 8ª maior economia do mundo, desempenha um papel importante no comércio de commodities globais. O país é o principal fornecedor mundial de carne bovina, seguido por Índia e Austrália, respectivamente. É também o principal exportador de café no mundo. De acordo com a Organização Internacional do Café (OIC), o país produziu mais de 54 milhões de sacas de café em 2018. O Brasil também é um exportador notável de suco de laranja, frango, ferro, soja e cana-de-açúcar.

O Brasil tem uma posição de destaque como fornecedor de matéria-prima e produtos manufaturados para os mercados consumidores de países desenvolvidos e em desenvolvimento. Quem quer que faça negócios com contrapartes brasileiras deve estar ciente dos riscos associados a violações de direitos humanos e trabalhistas em diferentes cadeias de suprimentos. No entanto, esses riscos estão aumentando devido a mudanças no ambiente político e institucional do Brasil.

Foram propostas mudanças que , se aprovadas, diluiriam o conceito de “condição análoga à de escravo” (conceito jurídico brasileiro de escravidão moderna), removendo da atual definição jurídica as condições de trabalho degradantes e jornada exaustiva. Essa situação chamou a atenção de especialistas em direitos humanos da ONU, que alertaram o governo brasileiro para que tomasse medidas urgentes para suspender medidas que possam reduzir a proteção das pessoas contra a escravidão moderna e enfraquecer as regulamentações corporativas.

O sistema brasileiro de fiscalização está atualmente subfinanciado e com falta de pessoal, a ponto de o número de operações ter chegado a baixas históricas. Em 2017, apenas 341 trabalhadores foram resgatados e 88 operações foram realizadas, o menor número desde o início dos anos 2000, quando foram introduzidas as políticas atuais.

O principal instrumento do país para transparência sobre casos de trabalho escravo – a chamada “Lista Suja” – permanece vulnerável a ataques jurídicos vindos de setores com um histórico problemático de exploração de trabalhadores, notadamente o agronegócio e a construção civil.

Imediatamente após assumir o cargo, o Presidente Jair Bolsonaro extinguiu o Ministério do Trabalho, redistribuindo suas atribuições e recursos para outros dois ministérios (Economia e Direitos Humanos, Família e Mulheres). Essa iniciativa levantou preocupações sobre a continuidade e coerência das políticas contra a escravidão moderna, embora, até agora, não tenha afetado a publicação da Lista Suja.

Aprendendo com Lei de Escravidão Moderna do Reino Unido

Para manter sua liderança na luta global contra a escravidão moderna e para fortalecer os padrões de proteção, o Brasil deve adotar nova legislação sobre transparência nas cadeias produtivas.

Com base nas recentes experiências de legislações exigindo transparência sobre medidas de combate à  escravidão moderna em países como Reino Unido e Austrália, o Brasil poderia promulgar nova legislação que, ao mesmo tempo, preencheria as lacunas de sua própria estrutura jurídica e política, e enfrentaria fatores importantes que impedem o pleno alcance dos objetivos das legislações existentes sobre divulgação de relatórios.

No Reino Unido, a aprovação da Lei da Escravidão Moderna em 2015 foi um avanço resultante de mais de uma década de mobilização e campanhas constantes de organizações da sociedade civil e seus aliados no Parlamento, no setor privado e em instituições de pesquisa.

Com a lei em vigor há quatro anos, as principais partes interessadas no Reino Unido estão avaliando suas conquistas e debatendo intensamente sobre como avançar. A percepção entre as principais organizações que defendem a lei e monitoram sua implementação é que ela conseguiu conscientizar as empresas britânicas sobre as condições dos direitos humanos nas cadeias globais de fornecimento, mas é preciso avançar para promover uma mudança na cultura corporativa.

Em setembro, o Ministério do Interior do Reino Unido encomendou uma revisão independente da lei. O relatório provisório dos revisores sobre a cláusula de Transparência nas Cadeias de Suprimentos, que ecoa muitos apelos da sociedade civil, constatou que havia fraquezas significativas na implementação efetiva da legislação.

Suas recomendações incluem mecanismos de fiscalização mais rígidos, incluindo sanções para empresas que não cumprem a lei, e um registro público central para facilitar o acompanhamento externo sobre a qualidade dos relatórios das empresas. Atualmente, essa tarefa de coletar, disseminar e analisar os relatórios é realizada por organizações independentes, como o Business and Human Rights Resource Center.

Outra questão fundamental é o estabelecimento de requisitos  para divulgação de relatórios. A divulgação de informações significativas sobre os riscos e impactos identificados e as medidas tomadas para abordá-los é crucial para garantir que o relatório não seja apenas um exercício de preenchimento de formulário.

Além disso, o desafio é garantir a consistência entre diferentes setores. A experiência mostrou que as empresas voltadas para o consumidor tendem a fornecer informações mais substanciais em seus relatórios. Assim, mecanismos para recalibrar os custos de reputação (e jurídicos) de descumprimento da lei são indispensáveis para tornar a aplicação da legislação mais uniforme.

Implicações para futura legislação no Brasil

Essas e outras questões espinhosas precisariam ser adequadamente abordadas em um processo futuro de debates públicos e legislativos sobre a adoção de uma nova legislação sobre  transparência da cadeia de fornecimento no Brasil. Com fortes credenciais por seu histórico inovador de políticas e instrumentos para combater a escravidão moderna, o Brasil poderia ser ainda mais ambicioso do que o Reino Unido na elaboração de sua própria legislação.

As áreas em que melhorias adicionais seriam mais do que bem-vindas incluem a divulgação completa da lista de fornecedores, se não para todos, pelo menos para setores mais críticos, definidos de acordo com metodologias e critérios robustos. Esse requisito poderia ser progressivo e coordenado, de forma a equilibrar as preocupações com o sigilo comercial e a garantia de vantagens competitivas.

A análise crítica e independente das legislações existentes sobre divulgação de relatórios mostrou que a regulamentação excessivamente enxutas pouco contribui para de fato melhorar as condições de trabalho, ou para alterar as políticas e práticas corporativas. Para evitar um fracasso legislativo, o Brasil poderia considerar atrelar uma lei de transparência com a exigência de realização de devida diligência em direitos humanos. O momento é muito apropriado, há uma dinâmica mundial crescente para a adoção da legislação obrigatória de devida diligência em direitos humanos.

Esse é o momento de o governo brasileiro, a sociedade civil, o setor empresarial e a academia se unirem para criar de maneira criativa nova legislação para melhorar a responsabilidade corporativa pelos direitos dos trabalhadores nas cadeias de fornecimento e preparar o caminho para um desenvolvimento inclusivo, sustentável e respeitoso dos direitos humanos.

Caio Borges é coordenador de Desenvolvimento e Direitos Socioambientais da Conectas Direitos Humanos, no Brasil. Mestre em Direito e Desenvolvimento pela Fundação Getúlio Vargas e doutorando pela Universidade de São Paulo.

 

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