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16/04/2024

Que políticas têm sido adotadas para as drogas no mundo? Entenda a discussão no âmbito das Nações Unidas

Como os países têm lidado com a questão das drogas no mundo a partir da 67ª sessão da Comissão de Narcóticos (CND) da ONU.

Escritório das Nações Unidas em Viena
Escritório das Nações Unidas em Viena, onde aconteceu encontro sobre drogas. Foto: EVA MANHART / APA-PictureDesk Escritório das Nações Unidas em Viena Escritório das Nações Unidas em Viena, onde aconteceu encontro sobre drogas. Foto: EVA MANHART / APA-PictureDesk

Em 2024, as políticas de drogas no mundo veem alguns avanços em relação aos direitos humanos, mas o caminho ainda é longo, principalmente porque as nações estão em momentos muito diferentes da discussão.

Se alguns países ou territórios já legalizaram ou regulamentam o uso e o plantio da maconha, descriminalizaram o consumo pessoal dessa e de outras drogas e aprimoraram as ofertas de serviços de saúde e redução de danos, outros ainda usam da dura repressão e até da pena de morte para lidar com a questão.

A redução de danos é uma estratégia de saúde pública que visa controlar consequências adversas do consumo de substâncias psicoativas sem necessariamente a abstenção, buscando inclusão social e cidadania para as pessoas que fazem uso de drogas. Medidas assim já são uma realidade em alguns países europeus e partes dos Estados Unidos.

Em Portugal, por exemplo, se destaca uma política que retira o usuário do sistema de justiça e deixa-o sob a alçada da saúde pública, com ações de redução de danos que têm trazido bons resultados, como disponibilização de salas para uso supervisionado de drogas. 

Já a Indonésia segue com o discurso linha-dura no combate às drogas: pessoas que usam drogas quase não têm acesso a políticas de cuidado e muitas são presas, enquanto o mercado ilegal prospera.

A pena de morte é usada em alguns países: segundo o  relatório da Anistia Internacional, em 2022, crimes relacionados com drogas foram responsáveis por 225 execuções no Irã, 57 na Arábia Saudita e 11 em Singapura.

Enquanto isso, vivemos um contexto caracterizado pelo surgimento de redes de tráfico altamente ágeis, oferta recorde de drogas e um déficit significativo nos serviços de cuidado, com atendimento adequado apenas para uma em cada cinco pessoas com problemas associados ao uso de drogas.

Discussões mais recentes na ONU

A disparidade entre as abordagens dos países foi notável durante a 67ª sessão da Comissão de Narcóticos (CND), principal órgão de formulação de políticas sobre drogas da Organização das Nações Unidas (ONU), realizada em Viena entre 14 e 22 de março. 

Na abertura do evento, o alto-comissário da ONU para os Direitos Humanos, Volker Türk, declarou explicitamente o fracasso da “guerra às drogas” em salvar vidas e proteger a dignidade, a saúde e o futuro dos 296 milhões de usuários em todo o mundo. Ele afirmou que é verdade que as drogas “matam e destroem vidas e comunidades”, mas que também o fazem “as políticas de drogas opressivas e regressivas”, chamando a atenção para a superlotação das prisões em decorrência dessas políticas. 

“O posicionamento sofreu críticas de algumas delegações, como a da Rússia, que ainda adotam um discurso completamente anti-drogas”, conta Roberta Marina, assessore de Projetos no Programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas Direitos Humanos, que participou do encontro, em Viena.  “Ainda assim, foi muito simbólica a mensagem que veio do alto-comissariado, enfatizando como o órgão tem enxergado a questão e orientando para a adoção de políticas que respeitem os direitos humanos”.

O tom converge com as Diretrizes Internacionais sobre Direitos Humanos e Políticas de Drogas. Lançado em 2019 por uma coalizão de Estados-membros, organismos da ONU e especialistas em direitos humanos, o documento apresenta propostas para governos desenvolverem políticas públicas de drogas – desde o cultivo até o consumo – em conformidade com os direitos humanos, cobrindo uma variedade de áreas políticas, de justiça criminal até saúde pública.

“Nessa sessão da Comissão também foi marcante o reconhecimento da redução de danos enquanto abordagem inovadora relacionada ao cuidado para pessoas que fazem uso de drogas. É uma vitória para o campo, fruto de um trabalho coletivo”, diz Roberta.

No fim da sessão da Comissão de Narcóticos, foram adotadas resoluções abrangendo temas como programas de gestão de reabilitação e recuperação, melhorias no acesso e na disponibilidade de substâncias controladas para fins médicos e prevenção e resposta em casos de overdose de drogas. “Para a adoção desta resolução, d debate foi mais aproximado do campo da saúde do que da segurança, como deveria ser”, diz Roberta.

Descriminalização em pauta

A descriminalização do uso pessoal de drogas também foi discutida na Comissão de Narcóticos da ONU. Vale lembrar que descriminalizar não significa legalizar, mas sim fazer com que pessoas que consomem drogas não sejam processadas criminalmente e presas, estando apenas sujeitas a sanções administrativas. 

Cerca de 30 países já descriminalizaram o porte de uma ou mais drogas para uso pessoal no mundo, sem que a medida tenha levado a um aumento exponencial ou a uma queda significativa no consumo dessas substâncias, como explica reportagem do jornal Folha de S. Paulo.

Os modelos de descriminalização que existem pelo mundo se diferenciam em alguns aspectos. O mais crucial deles é a presença ou não de critérios objetivos para distinguir usuários de traficantes: quanto mais liberais os limites, menos usuários são criminalizados; quanto mais estritos, potencialmente mais usuários são processados e presos.

A falta desse critério de diferenciação é uma das principais críticas à política de drogas atualmente em voga no Brasil, e vem sendo discutida no Supremo Tribunal Federal (STF) há anos.

 Na prática, pessoas detidas com a mesma quantidade de drogas podem ter destinos muito distintos. A Lei de Drogas é a que mais encarcera indivíduos no país, e pessoas negras compõem 68% dos réus processados por tráfico, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) publicados no ano passado.

Legalização da maconha

No começo de abril, a Alemanha passou a integrar o pequeno grupo de países que legalizou o uso recreativo da maconha. O governo prometeu uma campanha sobre os riscos do consumo, destacando que a canábis é só para maiores de 18 anos e que o uso é proibido a menos de 100 metros de escolas, creches e parques infantis.

Na União Europeia (UE), Malta foi o primeiro país a legalizar o uso recreativo em 2021, seguido por Luxemburgo em 2023. No resto do mundo, o Uruguai legalizou em 2013, o Canadá, em 2018, e nos EUA, cada estado vem adotando regras particulares desde 2012. 

Já a autorização do uso da canábis com fins medicinais é muito mais comum e vigora em cerca de 50 países. Israel, por exemplo, criou uma estrutura para encorajar a pesquisa e a produção de maconha medicinal, e o setor foi regulado para se aproximar da indústria farmacêutica tradicional.

No Brasil, pacientes com prescrição para maconha medicinal já podem conseguir medicamentos e derivados autorizados diretamente em farmácias e drogarias e importar produtos de canábis fabricados em outros países. A produção e o cultivo ainda não foram legalizados.

A complexa situação brasileira

“As respostas para as drogas no Brasil continuam sendo hospitalização forçada, encarceramento e morte”, diz Roberta, da Conectas. Embora haja, no país, um histórico de implementação de ações de redução de danos, atualmente a maior parte delas é coordenada por organizações da sociedade civil e coletivos que trabalham na ponta, diretamente com pessoas que fazem uso de drogas.

Em seu segundo ano de gestão, o Governo Federal se mostrou a favor de uma perspectiva que englobe os direitos humanos na política sobre drogas, reposicionando o Brasil no debate mundial sobre o tema. O país esteve presente na sessão da Comissão de Narcóticos da ONU de 2024 com uma delegação chefiada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública por meio da Secretaria de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos (Senad), e promoveu eventos paralelos abordando o tráfico na região amazônica e o conceito de desenvolvimento alternativo priorizando perspectivas de gênero, étnicas e raciais.

Já o Senado deve votar nos próximos dias uma proposta que inclui na Constituição a criminalização do porte e da posse de drogas em qualquer quantidade. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) é uma reação ao STF, que retomou o julgamento sobre a descriminalização da maconha. Os ministros analisam a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, que estabelece a figura do usuário e o responsabiliza de maneira diferente do traficante.

Para Roberta, da Conectas, “existe uma grande fragmentação interna, porque, ao mesmo tempo em que há esse reposicionamento perante a comunidade internacional e o judiciário tem discutido o tema dentro de suas competências, o legislativo quer criminalizar a posse de drogas na Constituição”. Ou seja, uma mudança efetiva na política de drogas no país, infelizmente, ainda não está no horizonte próximo. 

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