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25/01/2020

“O país não aprendeu nada com seu maior desastre socioambiental”, apontam especialistas

Conectas reúne dados, relatos e entrevista com especialistas para mostrar as sequelas ainda sentidas pelas vítimas e familiares



Nesta entrevista, a coordenadora do programa Direitos Socioambientais da Conectas, Julia Neiva, e o advogado e doutor em direito internacional Jefferson Nascimento, traçam um panorama da situação das vítimas do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho um ano depois da tragédia que vitimou, ao menos, 270 pessoas e deixou outras onze desaparecidas. 

Como está a situação das vítimas do desastre de Brumadinho hoje?

Julia Neiva – A situação das vítimas e atingidos pelo desastre da Vale em Brumadinho é preocupante, envolvendo um quadro de violação de direitos que inclui a tristeza da privação do luto, aumento do adoecimento mental em Brumadinho e região, luta pela reparação integral e justa e auxílio emergencial digno, convívio com a impunidade dos responsáveis pela tragédia e dificuldades de acesso à água.

Vocês poderiam elencar os principais pontos de preocupação?

Jefferson NascimentoApesar de não se limitar a estes fatos, acredito que podemos listar seis pontos que nos causam séria preocupação em relação a situação das pessoas. 

  • Privação de luto: Mais de 270 foram mortas pela onda de lama, tendo seus corpos despedaçados pelos rejeitos ao longo de quilômetros de destruição. Muitas famílias, de forma digna e legítima, se recusam a enterrar os fragmentos encontrados de seus entes queridos. A outras famílias, nem isso é possível: onze vítimas ainda seguem desaparecidas.
  • Adoecimento: Segundo a Secretaria Municipal de Saúde de Brumadinho, há um cenário de adoecimento mental bastante preocupante na cidade, com um aumento do número de suicídios, ampliação do consumo de antidepressivos e ansiolíticos e dos afastamentos entre profissionais de saúde.
  • Reparação integral: Associações de vítimas do desastre em Brumadinho e movimentos de atingidos por barragens têm lutado por reparação integral, que leve em conta os amplos impactos ambientais e no modo de vida das comunidades afetadas, além dos efeitos indiretos da contaminação da bacia do Rio Paraopeba. Ao menos duas ações cíveis deram ganho de causa a familiares de vítimas mortas pelo rompimento, estabelecendo indenizações por danos morais e materiais que somam quase R$ 20 milhões, muito superiores ao termo base de indenização firmado com a empresa.
  • Auxílio emergencial: Desde fevereiro, acordo de 12 meses firmado com a Vale garante o pagamento de auxílio emergencial, no valor de um salário mínimo para adultos, 50% para adolescentes e 25% para crianças, para todos os residentes de Brumadinho e pessoas que vivam até quilômetro da margem do rio Paraopeba na área atingida. Em novembro, o acordo foi estendido por mais dez meses a partir deste janeiro, porém com valor integral restrito a cinco comunidades atingidas, que vive às margens do córrego Ferro-Carvão e pessoas que fazem parte de programas da Vale. As demais pessoas terão o valor reduzido em 50%. Familiares de vítimas e movimentos de atingidos têm protestado contra a falta de participação na renegociação do acordo, principalmente diante da persistência dos danos socioambientais e afetação de seu modo de vida.
  • Impunidade: Até o momento, nenhuma pessoas ou empresa foi responsabilizada pelo rompimento da barragem em Brumadinho. Após um ano do desastre, apenas há poucos dias o Ministério Público de Minas Gerais apresentou denúncia contra a Vale S.A, Tüv Sud e mais 16 pessoas —entre funcionários e executivos — que responderão por homicídio qualificado e crimes ambientais. A denúncia foi apresentada após investigação conjunta do MP-MG e Polícia Civil de Minas Gerais, em processo de apuração que já dura quase um ano.
  • Acesso à água: várias comunidades têm alertado que tem tido dificuldade de acesso à água, que teria sido fornecida emergencialmente pela Vale. A empresa afirma que desde maio não há mais carreamento de rejeitos sólidos no rio Paraopeba, porém há relatos de comunidades e produtores impactados pela água contaminada a 300 quilômetros de Brumadinho. Esse cenário é piorado pela irregularidade da oferta de caminhões-pipa e falta de reconhecimento de atingidos indiretos. Em dezembro, a empresa anunciou a conclusão de obras que evitariam que rejeitos de mineração continuassem chegando ao rio Paraopeba, porém ainda não há estudo conclusivo sobre a qualidade da água. Moradores do Córrego do Feijão e vizinhança relatam que uma água barrenta continua saindo das torneiras.


Quais medidas ainda devem ser adotadas pelas empresas e governos?

Julia NeivaA caracterização formal de comunidades como atingidas pelo desastre em Brumadinho é uma demanda importante, uma vez que é um requisito para o exercício do direito a reparações. Houve uma redução do escopo de reconhecimento de pessoas e comunidades atingidas pelo rompimento, o que é perceptível, por exemplo, na extensão da concessão de auxílios emergenciais: pela nova proposta da Vale, de 93 mil a 98 mil beneficiários de um total de 106 mil passarão a receber metade do pagamento emergencial que vinha sendo realizado desde fevereiro de 2019.

Qual a atuação da Conectas neste caso (ou no que tange a mineração em geral)?

Julia Neiva – Antes de mais nada, temos sempre apoiado e sido solidários Às comunidades atingidas pelos desastres do Rio Doce e de Brumadinho, contribuindo para que suas vozes sejam ouvidas e também para que haja reparação integral e justa, bem como responsabilização pelos desastres. A Conectas também tem atuado no plano nacional e internacional:

  • No plano nacional, tem incidido, ao lado de organizações da sociedade civil, pelo fortalecimento do marco normativo visando prevenir que novas catástrofes como as ocorridas em Mariana e Brumadinho se repitam. Nesse sentido acompanhou de perto e apresentou subsídios ao longo dos debates na Comissão Externa sobre Brumadinho da Câmara dos Deputados, que propôs, ao final de seus trabalhos, um conjunto de novo projetos de lei com medidas de prevenção, de reparação e de responsabilização de responsáveis por tragédias socioambientais, incluindo uma política nacional para atingidos por barragens. Conectas também acompanhou de perto as discussões sobre o Projeto de Lei Geral de Licenciamento (3.729/2004), participando dos debates no Grupo de Trabalho estabelecido na Câmara dos Deputados para discutir o tema, denunciando retrocessos durante as discussões e exigindo que este importante instrumento da política nacional de meio ambiente fosse preservado.
  • No plano internacional, temos incidido para dar visibilidade a violações de direitos humanos e ambientais perpetrados por empresas, incluindo aquelas do setor extrativo. Logo após o desastre em Brumadinho, apresentamos, ao lago de organizações parceiras, apelo urgente a quatro procedimentos especiais das Nações Unidas sobre as extensas violações de direitos decorrentes do rompimento. Em fevereiro, oficiamos o Pacto Global da ONU, em conjunto com 17 outras entidades, demandando que a Vale fosse excluída de seus quadros, à luz da adoção de uma prática de negócios pela empresa brasileira que contrariava os princípios da maior rede de responsabilidade social corporativa do mundo. Em maio, requeremos audiência regional na Comissão Interamericana de Direitos Humanos para discutir parâmetros regionais de reparação por violações de direitos humanos cometidos por empresas, trazendo informações sobre a remediação insuficiente nos casos de Mariana e Brumadinho. Em novembro, participamos de painel no 8º Fórum sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU, em Genebra, contestando informações trazidas pelo governo brasileiro sobre as medidas adotadas em resposta ao desastre em Mariana. Em dezembro, acompanhamos a visita oficial de Baskut Tuncak, relator especial da ONU sobre resíduos tóxicos, apresentando subsídios sobre a grave situação ainda vivenciada em Brumadinho.


O que a tragédia de Brumadinho representa para o Brasil na perspectiva de violações socioambientais cometidas por empresas? 

Jefferson NascimentoÉ possível apontar alguns entendimentos sobre esta tragédia. Primeiro, que o país não aprendeu nada com o seu pior desastre socioambiental, o do Rio Doce, também considerado um dos piores do mundo. Além disso, não houve reparação adequada, integral, justa, percebe-se que o princípio da não repetição, princípio internacional de direitos Humanos, que integra o conceito de reparação integral não foi seguido.  

Além disso, há uma fragilização das legislação e dos órgãos de controle. Isto porque a relação entre empresas e governos é demasiadamente próxima , as empresas influenciam o governo, o poder das empresas é de fato muito grande. 

Vale ressaltar que há uma abissal assimetria de poder entre comunidades afetadas/vítimas e as empresas.  

Por fim, diante de tudo isso, o Brasil não tem conseguido superar o modelo predatório de mineração e, como reflexo disso, é a total impunidade aos responsáveis. 

O que dizem as autoridades internacionais sobre o caso?

Jefferson Nascimento Quatro dias após o rompimento da barragem em Brumadinho, quatro procedimentos especiais das Nações Unidas se manifestaram sobre o desastre, pedindo uma investigação imediata, completa e imparcial do colapso, colocando em suspeita medidas preventivas adotadas após o desastre em Mariana e demandando responsabilização devida. Foi feito um chamado para priorização da avaliação da segurança de barragens existentes e ressaltada a necessidade de uma investigação transparente, imparcial, rápida e competente sobre a toxicidade dos resíduos.

Ainda em janeiro, a Relatoria Especial sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais da Comissão Interamericana de Direitos Humanos instou autoridades brasileiras e a Vale a tomar todas as medidas para mitigar e evitar o agravamento de danos ao meio ambiente, além de assistir e facilitar os mecanismos de reparação às vítimas e familiares, ações urgentes sem as quais as consequências do desastre poderiam se tornar irreversíveis. A REDESCA-CIDH ainda manifestou preocupação com a existência de até 45 barragens de rejeitos em situação de risco em relação a suas condições de segurança, relembrando o cuidado que os Estados e as empresas devem ter à luz das obrigações em matéria de direitos humanos.

Em maio, a Vale deixou de fazer parte do Pacto Global da ONU, movimento que foi precedido por ofício assinado por Conectas e outras 17 outras entidades requerendo a exclusão da empresa da principal rede de responsabilidade social corporativa do planeta.

Em dezembro, o relator especial da ONU sobre resíduos tóxicos, Baskut Tuncak, visitou a região de Brumadinho durante missão oficial ao Brasil. Em declaração de final de visita, Tuncak afirmou que, em cinco anos de exercício do mandato e tendo conversado com outras comunidades cujos direitos foram violados por empresas, nunca havia presenciado tamanho trauma como aquele vivido pela comunidade em Brumadinho. O relator reitera sua percepção de que o que aconteceu em Brumadinho deve ser investigado como crime. “Não foi acidente. Como muitos dentro e fora do Brasil, eu acredito que esse desastre era ‘evitável e previsível’”, disse. 

Quais os riscos de haver mais tragédias como as vivenciadas em Mariana e Brumadinho? O monitoramento de novos crimes está sendo realizado?

Julia NeivaSegundo o relatório mais recente da Agência Nacional de Águas (ANA) sobre segurança de barragens, hoje há 909 estruturas classificadas como de alto dano potencial associado dentre as 5.086 barragens de risco – ou seja, uma em cada cinco. Esse mesmo relatório aponta um incremento de 26% no montante de barragens nessa situação de alerta de 2017 para 209, concentradas majoritariamente nos estados da Bahia, Pará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte.

Para enfrentar esse cenário, é necessário não apenas proibir novas barragens de “alteamento a montante” – tais quais as verificadas em Mariana e Brumadinho, as mais inseguras – como acelerar o processo de descomissionamento desse tipo de represamento por parte da empresas responsáveis. Em paralelo, é necessário o incremento dos orçamentos federal, estaduais e municipais para a realização de atividades de operação e manutenção dessas barragens essenciais para sua segurança.

Quais as medidas poderiam ser adotadas para prevenir novas catástrofes?

Jefferson NascimentoÉ necessário a adoção de medidas de fortalecimento da prevenção, de aprimoramento das políticas de reparação e de estabelecimento de responsabilização efetiva. Para a prevenção, é necessário aprovar um marco normativo que aumente as exigência de segurança de barragem, assegure a transparência e participação social em questões ambientais, fortaleça o processo de licenciamento ambiental, reformar a legislação societária para fortalecer os deveres fiduciários para a responsabilização e prestação de contas de administradores e conselheiros, garantir recursos adequados para uma fiscalização socioambiental independente e estabeleça um marco vinculante de devida diligência em direitos humanos para empresas. Para a reparação, é necessário aprovar uma política nacional de direitos dos atingidos por barragens e criar um fundo para empreendimentos de alto risco e impacto. Para a responsabilização, é preciso alterar a lei penal para remover obstáculos à responsabilização da pessoa jurídica, administradores e prestadoras de serviços (ex. consultorias, auditorias) por graves crimes ambientais.

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