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18/06/2020

Entrevista: Migração e refúgio no contexto da pandemia

Na semana em que se celebra o Dia do Refugiado, presidente do CNDH aponta os principais problemas enfrentados por migrantes na crise da Covid-19

The public defender Renan Sotto Mayor was elected the new president of the National
Human Rights Council in February of this year (Photo: Press Photo / Federal Public
Defender’s Office) The public defender Renan Sotto Mayor was elected the new president of the National Human Rights Council in February of this year (Photo: Press Photo / Federal Public Defender’s Office)

A crise sanitária causada pelo novo coronavírus coloca em evidência, mais do que nunca, a vulnerabilidade em que se encontram os cerca de 40 mil refugiados e 193 mil solicitantes de refúgio que vivem no Brasil.  Fugindo de seus países por perseguição política, risco de morte ou por grave e generalizada violações de direitos humanos, essas pessoas estão lutando para garantir seus direitos e refazer suas vidas.

Na semana em que se celebra o Dia do Refugiado (20), a Conectas conversou com o presidente do CNDH (Conselho Nacional de Direitos Humanos), o defensor público federal Renan Sotto Mayor, sobre a situação de migrantes e refugiados no contexto da pandemia do novo coronavírus. 

Renan é mestre em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense e também ocupa o cargo de atual Secretário-Geral de Articulação da DPU (Defensoria Pública da União).

Conectas — Quais são os principais problemas enfrentados por migrantes e refugiados na pandemia da Covid-19? 

Renan Sotto Mayor — A pandemia explicitou as desigualdades estruturais em nosso país, alcançando diversos grupos hipervulneráveis. A situação dos migrantes, refugiados e solicitantes de refúgio, que já era uma situação de vulnerabilidade, foi ainda mais aprofundada. Além da própria questão das portarias interministeriais, que possibilitam a deportação e a inabilitação de refúgio, também ocorreu fechamento de fronteiras, que ocasiona danos incalculáveis para essas pessoas. Outra questão muito grave são as dificuldades para acessar o auxílio-emergencial. Ora, esse auxílio foi criado para garantir o mínimo existencial para pessoas que necessitam, todavia, infelizmente, os migrantes em geral têm encontrado dificuldades para acessar esse benefício. Estamos em junho e até o momento o Estado brasileiro não conseguiu resolver os entraves burocrático para que essas pessoas possam ter seus direitos respeitados. A situação dos migrantes e solicitantes de refúgio venezuelanos também é dramática. Já era antes do início da “coronacrise” e agora fica ainda mais difícil.

O governo brasileiro determinou o fechamento de suas fronteiras como medida sanitária no combate à pandemia. Quais direitos de migrantes e refugiados podem estar ameaçados por essa medida? 

Renan Sotto Mayor — Diversos direitos constitucionais e também previstos em tratados de direitos humanos foram frontalmente violados. Como, por exemplo, o direito fundamental ao tratamento igualitário de nacionais e não nacionais perante a Lei, previsto no art. 5º, além do direito ao acesso universal à saúde, presente no art. 194, parágrafo único, inciso I, da Constituição. Além disso, como ressaltamos na recomendação nº19 de 06/05/2020 do CNDH, a inabilitação de pedido de refúgio, contraria o princípio do Direito Internacional de non-refoulement (não-devolução), presente no art. 33, inciso 1, da Convenção de 1951, referente ao Estatuto dos Refugiados, também previsto no art. 22, inciso 8, da Convenção Americana de Direitos Humanos e no art. 7º, § 1º, da Lei 9.474/1997, segundo o qual ninguém pode ser deportado para fronteira de território em que sua vida e liberdade estiver ameaçada. Também é importante ressaltar que o art. 31 da Convenção de 1951 e o art. 8º da Lei nº 9.474/1997 não permitem que a inabilitação de pedido de refúgio seja punição para o ingresso irregular no território brasileiro.

De acordo com a ONG Compassiva, temos hoje ao menos 400 médicos estrangeiros que não podem atuar no Brasil devido a não realização de provas de revalidação de diploma nos últimos três anos. Enquanto isso, por exemplo, hospitais de campanha, como o de Boa Vista, aguardam a disponibilidade de médicos para começar a atender. Como você vê a flexibilização das regras de contratação desses médicos durante a pandemia, como fizeram países como Alemanha, Estados Unidos e Canadá? 

Renan Sotto Mayor — Essa flexibilização seria temporária e emergencial. Eu sou totalmente favorável e acredito que seria uma medida fundamental para garantir o direito à saúde de pessoas em situação de extrema vulnerabilidade. Percebemos que no Brasil existe uma grande ausência de médicos, principalmente na região Norte. Essa é uma questão estrutural que deve ser pensada de forma ampla, buscando soluções definitivas. Todavia, infelizmente, essa omissão do Estado brasileiro não pode mais esperar, principalmente em um contexto de pandemia. Assim, entendo que a medida de flexibilização temporária e emergencial da revalidação de diploma de medicina seria importante para que milhões de pessoas no Brasil tenham efetivo acesso ao direito fundamental à saúde.

Como está o acesso de migrantes ao auxílio emergencial fornecido pelo governo durante a pandemia e qual é a importância deste auxílio para essas pessoas? 

Renan Sotto Mayor — Os migrantes que se enquadrarem nos requisitos legais têm direito ao auxílio emergencial. Esse auxílio é relacionado ao mínimo existencial, por isso é fundamental que as pessoas consigam acessar esse benefício. Infelizmente, percebe-se que o programa foi pensado olvidando a situação das pessoas realmente hipervulneráveis, como pessoas em situação de rua e diversos grupos que não têm acesso a um telefone celular para requerer o benefício. No mesmo sentido, esse programa foi pensado, claramente, para nacionais e não observou as particularidades que migrantes possuem, principalmente em relação à documentação. A Defensoria Pública da União em São Paulo, observando essa situação, ingressou com uma ação civil pública com pedido de tutela de urgência contra a Caixa Econômica Federal e o Banco Central do Brasil para que migrantes, independentemente da situação migratória, consigam obter pagamento do auxílio emergencial apresentando qualquer documento de identidade, ainda que com prazo de validade vencido. Até o momento, infelizmente, não foi proferida decisão judicial na ação civil pública. 

No final de abril, a prefeitura de Boa Vista removeu mais de cem migrantes da ocupação Clamor do Rio, sem decisão judicial ou aviso prévio de despejo. A ação foi realizada durante a pandemia e sequer contou com a acolhida dessas famílias em um novo abrigo. Os governos podem fazer esse tipo de ação em um momento de emergência sanitária como o que estamos vivendo? Qual deveria ser a medida adotada para garantir os direitos e a segurança dessas famílias?

Renan Sotto Mayor — Esse tipo de ação é incompatível com o Estado Constitucional de Direito. Primeiramente, é importante ressaltar que deve ser garantido a todas as pessoas o direito à moradia adequada. Entretanto, infelizmente, não é uma realidade para grande parte das pessoas que vivem no Brasil. Considerando a ausência de uma política pública habitacional efetiva, tanto a União, quanto o Estado de Roraima e o Município de Boa Vista deveriam buscar garantir o direito à moradia dessas pessoas. Verificando essa situação, a DPU, em parceria com a Conectas, o Centro de Migrações e Direitos Humanos e o Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados propuseram uma ação civil pública com pedido de tutela provisória, ressaltando a necessidade de acolher essas pessoas em abrigos que fossem adequados. Infelizmente a liminar foi indeferida. Todas(os) que trabalham com direitos humanos vivenciam a discrepância entre o dever ser e a realidade. O que se observa é uma ação claramente equivocada e incompatível com o ordenamento jurídico por parte da Prefeitura de Boa Vista. Por isso que  o Conselho Nacional de Direitos Humanos editou a resolução nº 10 de 2018, que dispõe sobre soluções garantidoras de direitos humanos e medidas preventivas de conflitos fundiários coletivos e urbanos. Nesta resolução, destacamos que “os despejos e deslocamentos forçados de grupos que demandam proteção especial do Estado só podem eventualmente ocorrer mediante decisão judicial, nos termos desta resolução, e jamais por decisão meramente administrativa.

 

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