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25/02/2022

Em quais áreas o Brasil descumpre o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos

Entenda a importância e os principais pontos dos relatórios que a Conectas apresentou ao processo de revisão do Brasil no Comitê de Direitos Humanos da ONU

Sede do Escritório de Direitos Humanos da ONU em Genebra. (Foto: ONU/Jean-Marc Ferré) Sede do Escritório de Direitos Humanos da ONU em Genebra. (Foto: ONU/Jean-Marc Ferré)

Em 1948, assolados pelos horrores de duas guerras mundiais em curto espaço de tempo, diferentes países se reuniram para formar a ONU (Organização das Nações Unidas). Ainda com a brutalidade do nazismo latente na memória, a ideia era garantir um ambiente de paz, no qual nenhum ser humano teria seus direitos violados. Foi nesse contexto que nasceu a Declaração Universal dos Direitos Humanos. 

Com um conjunto de 30 artigos concisos, a declaração inspira até hoje tratados internacionais e legislações em vários países. “O documento é importante porque, pela primeira vez, reconheceu-se que os direitos humanos e as liberdades fundamentais se aplicam a todas as pessoas, independente da nacionalidade”, afirma Gustavo Huppes, assessor de advocacy internacional da Conectas.   

Apesar da relevância, a pouca abrangência dos artigos fez crescer a necessidade da criação de pactos que desmembrassem as duas séries de direitos esboçadas no documento: os direitos civis e políticos e os direitos econômicos, sociais e culturais. Assim, em 1966, nasceu o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos  —  em vigor desde 1976, quando o número mínimo de 35 adesões foi atingido. 

O Brasil só ratificou o documento em 1992, tornando-se responsável, desde então, pela proteção dos direitos fundamentais previstos ali.

Neste ano, a implementação do Pacto no Brasil passa por um processo de revisão, que conta com a participação dos membros do Comitê de Direitos Humanos – responsável pela supervisão dessa implementação a nível global –  e da sociedade civil. A Conectas participa deste processo e enviou relatórios ao órgão sobre a revisão do Brasil.

Para entender a relevância do Pacto e seu processo de revisão, preparamos algumas perguntas e respostas.

O que é o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos?

O PIDCP é um tratado de abrangência internacional que oferece uma série de proteções para os direitos civis e políticos. Seus signatários se comprometem a preservar direitos humanos básicos, como: o direito à vida e à dignidade humana; igualdade perante a lei; liberdade de expressão, reunião e associação; liberdade religiosa e privacidade; liberdade de tortura, maus-tratos e detenção arbitrária; igualdade de gênero; o direito a um julgamento justo; vida familiar correta e unidade familiar; e direitos das minorias. 

O que é o Comitê de Direitos Humanos? 

É um comitê composto por 18 especialistas independentes e reconhecidos na área dos direitos humanos. Foi estabelecido para monitorar a implementação do PIDCP. Seus membros são eleitos em mandatos de quatro anos e devem fazer parte dos países que ratificaram o acordo. Os membros atuais, eleitos em 2019, são da Albânia, Canadá, Chile, Egito, França, Alemanha, Grécia, Guiana, Israel, Japão, Letônia, Mauritânia, Paraguai, Portugal, Eslovênia, África do Sul, Tunísia e Uganda.

Como funciona a revisão?

Os Estados que fazem parte do Pacto devem periodicamente enviar um relatório ao Comitê com sua auto-avaliação sobre a implementação do acordo no âmbito doméstico. Uma vez enviado o relatório, inicia-se um ciclo de revisão onde os membros do Comitê avaliam o documento enviado pelo país e abre espaço para consultas com a sociedade civil com o envio de relatórios e consultas. Após uma primeira avaliação deste relatório enviado pelo Estado, o Comitê emite uma lista de temas que eles consideram como os principais a serem avaliados no processo. Após a publicação da lista de temas, o Estado deve enviar um novo relatório, respondendo aos questionamentos e pedidos de informações detalhadas sobre os temas elencados como prioritários. Na próxima etapa, os relatórios são debatidos num diálogo entre representantes do Estado e membros do Comitê que também se reúnem com a sociedade civil. Por fim, após esse processo, o Comitê divulga suas conclusões e recomendações ao Estado e que devem ser implementadas ao longo do próximo ciclo de revisão.

O que são os relatórios enviados ao Comitê de Direitos Humanos? 

Reunindo-se três vezes por ano, cada sessão do Comitê tem a duração de três semanas, e é feita no Escritório das Nações Unidas, em Genebra, na Suíça. A cada quatro anos, os países que ratificaram o PIDCP precisam apresentar relatórios, de acordo com os direcionamentos do acordo. Os documentos são avaliados pelo Comitê em reuniões públicas, onde são expressas as preocupações ou recomendações necessárias. 

Do que tratam os relatórios enviados ao Comitê de Direitos Humanos pela Conectas?

São seis documentos, que, com base nos artigos do PIDCP, sugerem o questionamento sobre violações nas seguintes áreas: 1) trabalho escravo; 2) questão migratória; 3) violência institucional; 4) povos indígenas; 5) defensores dos direitos humanos; 6) espaço cívico. A seguir, uma amostra do que consta nos relatórios. 

Trabalho escravo: de acordo com o Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, entre 2017 a 2021, foram resgatados 4.773 trabalhadores. Cerca de 80% são homens negros, nascidos no Nordeste do país. Só em 2021, foram resgatados 1.937 trabalhadores, superando o total de pessoas libertadas ao longo de 2020 (936), o que mostra um agravamento do cenário, também reforçado pela pandemia do COVID-19. 

Desde 2014, órgãos como a Subsecretaria de Inspeção do Trabalho vem sofrendo sérios cortes orçamentários e de pessoal, impactando o número de operações, e deixando vulneráveis trabalhadores de regiões mais remotas. Além disso, sob a desculpa da pandemia, projetos de lei apresentados no Congresso Nacional visam mudar o conceito de trabalho escravo e reduzir direitos fundamentais da classe trabalhadora. 

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Entre as sugestões do relatório, está a ideia de desencorajar o Estado brasileiro de apresentar propostas legislativas que busquem enfraquecer sua política de combate à escravidão contemporânea, recomendando ainda a adoção de medidas para tornar aplicável a legislação vigente sobre o assunto.

Questão migratória: durante a pandemia, o governo brasileiro publicou 37 decretos que impõem restrições à entrada no país, sob o pretexto de conter a disseminação do COVID-19. No entanto, os decretos são ilegais, inconstitucionais e desrespeitam a legislação nacional, bem como os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil.

Como aponta o relatório, entre outros pontos, o governo brasileiro deve ser questionado por que está mantendo essas sanções ilegais nos decretos por tanto tempo (quase dois anos), perpetuando o medo e a insegurança entre migrantes vulneráveis ​​e requerentes de asilo.

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Violência institucional: o PIDCP reconhece que a igualdade de direitos e o respeito à dignidade humana são fundamentos da liberdade, da justiça e da paz. Por isso, o documento sugere que o Brasil seja especialmente questionado sobre como as disposições do acordo têm sido aplicadas no país para superar, reparar e prestar contas do período escravocrata do país. É preciso fazer valer os direitos reconhecidos pelo PIDCP, enfrentando o racismo estrutural e adotando medidas concretas que vão desde a reparação aos povos e comunidades discriminados, até a responsabilização e a adoção de medidas concretas e simbólicas, a fim de garantir a proteção e promoção da vida humana.

Povos indígenas: uma série de projetos de lei que violam os direitos dos povos indígenas tramitam no Congresso Nacional. As propostas fortalecem o impedimento de demarcação de terras, e ameaçam territórios aprovados, retirando direitos constitucionais — a exemplo da tese do “marco temporal”, que determina que os povos indígenas só terão direito às terras que estavam em sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, ignorando as violações históricas sofridas por esses povos ao longo dos anos. Trata-se das mais graves ameaças contemporâneas aos povos indígenas no Brasil. 

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Considerando ainda que poucas e insuficientes medidas foram tomadas pelo governo federal para combater o novo coronavírus entre os povos indígenas, o relatório argumenta que o Comitê deve questionar o Estado brasileiro sobre as medidas adotadas para cumprir as medidas cautelares da CIDH e as decisões do Supremo. 

Defensores dos direitos humanos: as invasões em territórios indígenas aumentaram durante a pandemia de COVID-19, agravando a violência contra as comunidades, a degradação ambiental e o surto de doenças. Na terra Yanomami, por exemplo, ameaças e ataques com armas de fogo fazem parte da rotina. Nesse cenário, lideranças indígenas e defensores do meio ambiente vêm sofrendo sucessivos ataques. Segundo relatório da ONG Global Witness, o Brasil é um dos países que mata, persegue e intimida ativistas com mais frequência.

Por isso, o documento argumenta que o Comitê deve solicitar ao Estado brasileiro que explique essas tentativas de intimidação, buscando saber ainda que medidas o governo brasileiro tem tomado para proteger os defensores do meio ambiente e lideranças indígenas nos últimos anos. 

Espaço cívico: o Brasil se encontra em um contexto de retração do espaço democrático, uma vez que o Poder Executivo utiliza os mecanismos de que dispõe para alimentar animosidades e promover ataques concretos contra movimentos sociais, organizações de advocacia e populações específicas. 

Registros apontam, por exemplo, que a média de pessoas investigadas por crimes contra a segurança nacional foi de 9,3 por ano entre 2000 e 2017. Em 2020, esse número mais que quadruplicou. Para as organizações de direitos humanos, isso mostra que a legislação criada durante a ditadura militar estava sendo usada como arma política de perseguição ideológica, criando uma atmosfera de medo generalizado, com graves consequências para os direitos e liberdades individuais.

O documento aponta que o governo do Brasil deve responder sobre essas violações, além de outras questões que enfraquecem o funcionamento do espaço democrático. 

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