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15/04/2024

Como anda a discussão sobre descriminalização das drogas no Brasil?

Entenda a discussão da descriminalização das drogas no STF e no Congresso brasileiro, e como a PEC das Drogas pode representar um retrocesso para o país

Tema ganha espaço no Congresso e no STF. Foto: Marcello Casal Jr/Ag. Brasil Tema ganha espaço no Congresso e no STF. Foto: Marcello Casal Jr/Ag. Brasil

Em março, o debate arrastado desde 2015 sobre a descriminalização do porte de drogas foi retomado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Este caso gira em torno da constitucionalidade do artigo 28 da atual Lei de Drogas (11.343/2006), que fala de transporte e armazenamento para uso pessoal. Parte dos ministros defende um limite em gramas para diferenciar o usuário do traficante, o que não é definido pela lei.

Ao mesmo tempo, tramita no Senado Federal uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que pretende instituir a proibição do porte e da posse de qualquer quantidade de droga, sob a justificativa de combater o tráfico com rigor. O texto da PEC é simples e repete muito do que já está disposto na Lei de Drogas, inclusive a falta de critérios claros de como seria feita a diferenciação entre consumo pessoal e tráfico.

Na avaliação de organizações da sociedade civil que trabalham com o tema, o texto proposto pelo Congresso pode trazer um retrocesso para o Brasil no debate global sobre a mudança da política de drogas. “Na falta de objetividade para determinar o que seria considerada uma quantidade para porte ou para tráfico, as incidências do racismo estrutural e de outras desigualdades no país acabam gerando graves injustiças e consequências para pessoas pobres e periféricas”, explica Gabriel Sampaio, diretor de Litigância e Incidência da Conectas Direitos Humanos.

Entenda mais abaixo.

A origem da discussão no STF

De acordo com o artigo 28 da Lei de Drogas, o porte para consumo pessoal é uma infração de baixa gravidade, com penas como advertências sobre os efeitos, prestação de serviços à comunidade e participação em programas educativos. Mas não há critérios que distinguem porte para consumo próprio de tráfico, que, por sua vez, é punido com prisão.

Na prática, isso significa que pessoas detidas com a mesma quantidade de drogas podem ter destinos muito distintos, já que são submetidas a avaliações subjetivas da polícia, do Ministério Público e do Judiciário. “A consideração enquanto usuário ou traficante de uma pessoa negra, pobre e periférica acaba sendo bastante diferente em relação a pessoas de outras classes sociais e fenótipos”, explica Gabriel Sampaio.

A Lei de Drogas é a que mais encarcera indivíduos no país, e pessoas negras compõem 68% dos réus processados por tráfico de drogas, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) publicados no ano passado.

Como disse o próprio presidente do STF, o ministro Luís Roberto Barroso: “Se um garoto branco, rico e da Zona Sul do Rio é pego com 25 gramas de maconha ele é classificado como usuário e é liberado. No entanto, se a mesma quantidade é encontrada com um garoto preto, pobre e da periferia, ele é classificado como traficante e é preso. Isso que temos que combater”.

O debate no STF derivou do caso de uma pessoa flagrada com três gramas de maconha enquanto cumpria pena por porte de arma de fogo no Centro de Detenção Provisória de Diadema, em São Paulo, em 2009. Ela acabou sofrendo nova condenação, de dois meses de prestação de serviços comunitários.

Na ocasião, a Defensoria Pública alegou inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas. A criminalização da posse e porte de drogas para consumo pessoal violaria o artigo 5º da Constituição, no qual se prevê que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

No decorrer do debate sobre o poder do Estado de interferir na opção feita por alguém de consumir uma substância, o Supremo deslocou o foco para o objetivo de garantir o mesmo tratamento para qualquer pessoa flagrada portando a droga em todo o país, mas em determinado momento do processo, ficou certo de que a futura decisão valeria apenas para uma única droga: a maconha.

Reação conservadora

Em setembro de 2023, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), apresentou a chamada PEC das Drogas.

A proposta é adicionar ao artigo 5° que “a lei considera crime a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, observada a distinção entre traficante e usuário por todas as circunstâncias fáticas do caso concreto, aplicáveis ao usuário penas alternativas à prisão e tratamento contra dependência”. O texto foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) em 13 de março e deve ser levado a plenário em 3 de abril.

Ao falar de quantidade e qualquer tipo de droga, a PEC claramente direciona uma mensagem ao STF. O principal argumento de Pacheco e do grupo favorável é o de que a decisão do Supremo pode liberar o que chamam de “tráfico em pequenas quantidades”.

Vidas negras em jogo

Como explica artigo publicado no jornal O Globo, a política atual de criminalização afasta usuários dos serviços de saúde e cuidado, compromete o futuro de jovens periféricos e alimenta as organizações criminosas.

Na América Latina, aliás, somente o Brasil, o Suriname e as Guianas criminalizam o porte de drogas para uso pessoal. Em países como o Paraguai e a Colômbia, pessoas podem portar substâncias ilícitas desde 1988 e 1994, respectivamente. O Uruguai se tornou referência, em 2013, ao regulamentar todo o ciclo de consumo da maconha, deixando-o sob controle do Estado. Desde 1974, o porte de outras drogas já era descriminalizado no país.

Para Gabriel Sampaio, da Conectas, os parlamentares adotam uma estratégia equivocada ao analisar o julgamento no STF pelo âmbito moral. A questão atinge uma população historicamente marginalizada, que vai continuar sofrendo caso a PEC seja aprovada. É uma tentativa de dar uma resposta simplista para um problema complexo, ignorando estatísticas sociais e a literatura científica que já mostram que o proibicionismo não é o melhor caminho.

Pressão da sociedade civil

Uma coalizão de 36 organizações da sociedade civil lançaram uma plataforma chamada “Usuário não é criminoso” para demonstrar os riscos oferecidos pela PEC em questão. De acordo com as entidades, a criminalização amplifica desigualdades ao afetar mais as comunidades marginalizadas. O encarceramento por crimes não violentos sobrecarrega prisões e alimenta o recrutamento de facções criminosas, fortalecendo o crime à medida que o sistema prisional cresce.

A plataforma também salienta que as políticas de drogas precisam ser baseadas em evidências científicas e melhores práticas internacionais, focando em saúde pública, prevenção, cuidado em liberdade e redução de riscos e danos, ao invés de abordagens puramente punitivas, focando no sufocamento das estruturas criminosas que corrompem o funcionamento das instituições democráticas.

Na última semana, as organizações também se reuniram com o presidente do Senado para demonstrar suas preocupações e solicitar a participação ampla da sociedade civil na discussão da PEC, o que foi atendido com uma sessão de debates prevista para acontecer no dia 15 de abril. Será uma importante oportunidade de ouvir pessoas especialistas no tema para qualificar a discussão no Senado e sensibilizar os parlamentares com o objetivo de evitar retrocessos.

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