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Denúncias de violência policial são ignoradas, mostra relatório

Pesquisa "Investigações em labirinto” revela que denúncias de violações cometidas por policiais militares na prisão em flagrante são arquivadas



Acusado por tráfico de drogas e preso em flagrante, Rafael* chegou ao Fórum da Barra Funda, na Zona Oeste da capital paulista, para ter a chance de ser ouvido em uma audiência de custódia, na frente de um juiz, de um promotor e de um defensor. Algemado, ouviu a acusação formal do crime que supostamente tinha cometido, mas teve a chance de falar: além de alegar inocência, acusou de agressão o policial militar que efetuou a prisão. Enquanto a palavra do policial foi suficiente para incriminá-lo, a da suposta vítima de agressão não valeu nada.

O relato descrito acima é identificado como “caso nº 13” no recém-publicado relatório “Investigações em labirinto: os caminhos da apuração das denúncias de violência policial apresentadas em audiências de custódia”, produzido pela Conectas em parceria com o IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa). “Queríamos entender o caminho e o desfecho que as denúncias de violência policial seguem. E o que a gente encontrou foi uma estrutura, com amarras e atrasos, que funciona para garantir a blindagem de qualquer investigação contra um policial”, afirma a assessora do programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas, Carolina Diniz, uma das responsáveis pelo estudo.

O levantamento qualitativo analisou 53 denúncias de agressão contra policiais militares em audiências de custódia realizadas em São Paulo em dois períodos distintos. Primeiro, em 2015; depois, entre 2017 e 2018, quando a lei 13.491 transferiu para a Justiça Militar os casos de violência policial denunciados nas audiências de custódia.

No primeiro levantamento, referente a 2015, todos os casos foram levados à investigação e 52% arquivados após a análise inicial. No levantamento posterior (2017 e 2018), dois casos foram arquivados prematuramente e 30 levados à investigação, mas 86% foram arquivados sem render uma Investigação Preliminar ou um Inquérito Policial Militar.

O caso da abertura desta reportagem é emblemático. A denúncia contra o PM seguiu uma complexa engrenagem burocrática que calou a voz da vítima e serviu apenas para proteger os crimes cometidos pelos agentes da lei. A investigação contra o policial acabou arquivada a pedido do Ministério Público e o policial seguiu sem punição. Já o processo contra o suposto traficante seguiu outro caminho, com apuração técnica, entrevista de testemunhas e até coleta de evidências em vídeo. No fim, descobriu-se que as provas tinham sido plantadas pela polícia.

Apesar de contundentes, os números não revelam tudo. O grande mérito do estudo está em dissecar a estrutura dos descaminhos que acabam por perpetuar a impunidade diante de uma denúncia de violência policial. E os erros começam nas fases iniciais do processo, momento crucial para a coleta de provas e evidências que vão embasar a denúncia no futuro.

A audiência de custódia, em que o preso é encaminhado ao juiz no prazo de 24 horas após a prisão em flagrante, é uma importante ferramenta jurídica adotada no Brasil em 2015 e prevista na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e no Código de Processo Penal desde o fim de 2019. Foi criada justamente para averiguar a legalidade da prisão provisória e indícios de tortura e maus-tratos pelos agentes de segurança.

A primeira oportunidade para que a vítima de violência faça o relato do ocorrido é a delegacia, para onde o acusado é encaminhado logo depois de detido para que seja formalizado o auto de prisão em flagrante. Mas o ambiente não é nada favorável. O acusado está normalmente algemado, sem a companhia de um defensor, público ou particular, e na presença dos supostos agressores. Dali, seguem todos para a audiência de custódia, que no mundo ideal seria o momento perfeito para contar sobre as sevícias ao juiz, na presença obrigatória de um defensor e de um membro do Ministério Público. Na prática, porém, o estudo mostra que os defensores são solenemente ignorados quando têm a iniciativa de dar voz à vítima de agressão e o juiz e o promotor público parecem trabalhar juntos para que o preso fique restrito ao papel de acusado.

“Os juízes brasileiros provêm de uma elite social branca com muito pouca empatia em relação a esse público, que é fundamentalmente a clientela habitual da malha penal: pobres, jovens e negros. Essa falta de empatia, junto com essa cultura jurídica autoritária, punitivista, contamina os atos processuais”, afirma o advogado criminal Hugo Leonardo, presidente do IDDD.

Para Vivian Peres da Silva, assessora de projetos do IDDD que participou das pesquisas do instituto nas audiências de custódia, um dos pontos que chamou atenção na coleta de informações foi a pouca clareza dos juízes em relação aos protocolos sobre a investigação dos relatos de violência. “O que eu vi aqui em São Paulo é que as perguntas que são feitas não são claras, objetivas. ‘Teve algum problema com a polícia?’, ou ‘Tem alguma reclamação da polícia?’ Alguns presos passam pela audiência sem sequer perceber que aquelas perguntas eram sobre violência policial”, diz.

A terceira chance que a vítima tem para ser ouvida é durante o exame de corpo de delito, realizado por um perito na sala do Instituto Médico Legal no próprio Fórum. Tudo em vão. Como o juiz, o perito, quando age, faz um encaminhamento protocolar das denúncias de tortura e maus tratos – normalmente algumas linhas em uma ata que tem entre três e cinco páginas. É mais uma oportunidade desperdiçada. E provavelmente a última, já que, a partir daí, na quase totalidade dos casos estudados, a vítima não é mais ouvida sobre as denúncias que fez.

“O que mais salta aos meus olhos é o apagamento de relatos de tortura ao longo do processo”, diz Nina Capello, pesquisadora do estudo. “Teoricamente, teria continuidade para você aprofundar a análise do que a pessoa relatou na audiência de custódia, investigar outras provas, ouvir com maior riqueza de detalhes, dar um atendimento centralizado para acompanhar uma vítima de tortura. Então me chamou a atenção ver que quanto mais longe o processo ia, mais se perdia o que a pessoa tinha falado.”

Esta mordaça institucional acontece porque a denúncia contra os policiais militares, categoria dos autores ou coautores dos atos violentos em 72% dos casos, passa a seguir um complexo sistema jurídico que parece construído com esmero para não funcionar. “As instituições atuam para justificar as condutas dos policiais, não para apurar e punir”, afirma Adilson Paes de Souza, tenente-coronel aposentado da Polícia Militar de São Paulo e doutor pelo Instituto de Psicologia da USP.

Justiça Militar

Até 2017, as denúncias contra policiais militares eram investigadas pela Justiça Militar e pela Justiça Comum. Com a alteração de competência na Lei nº 13.492, desde então as denúncias contra militares passaram a ser investigadas exclusivamente pela Justiça Militar. Via de regra, os crimes de um PM são apurados por uma investigação preliminar, um procedimento sem qualquer base legal liderado por um oficial de seu próprio batalhão, o que em parte explica a alta taxa de impunidade nos casos estudados.

Mesmo quando a denúncia vira um inquérito policial, civil ou militar, as únicas pessoas ouvidas na maioria dos casos ou eram os policiais acusados ou as testemunhas arroladas pelos próprios. Segundo o relatório, nas investigações internas, os oficiais chamam quem acusa os PMs de agressão de “queixosos”, “indiciados” e “infratores”. Pessoas que nunca são tratadas como vítimas, mas como suspeitos.

Para Souza, a atividade policial, estressante por natureza, somado ao que chama de “subcultura da polícia”, em que ser truculento significa ser bom policial, são mecanismos de defesa coletivo. O grupo se sente ameaçado, compartilha de um sofrimento e estabelece regras próprias para lidar com essa situação adversa. E, aí, o policial bom é o policial que mata”, diz.

O tenente coronel aposentado reconhece que o advento das audiências de custódia é uma boa oportunidade para o relato seguro de casos de violência policial, mas apenas na teoria. O problema, segundo ele, é estrutural. “A doutrina existente na PM é a da militarização e da guerra contra o inimigo, o que também contagia a Polícia Civil, o Ministério Público e o Judiciário. Quando o juiz ignora traços evidentes de tortura que um preso sofreu, o que ele está mostrando é o seguinte: isso aí é o inimigo, dane-se, zero de normas e garantias para ele”, diz Souza.

O relatório mostra um cenário sombrio, mas propõe soluções — a maioria exige apenas o cumprimento da lei. Entre as principais sugestões estão a presença de um representante da defensoria pública com o denunciante desde a delegacia, um detalhamento das perguntas do juiz sobre a violência policial relatada na audiência de custódia e a criação de equipes exclusivas no Ministério Público para lidar com este tipo de crime, já que uma das atribuições do órgão na Constituição é justamente o controle externo da atividade policial.

E, é claro, é urgente que a Polícia Militar deixe de investigar a própria Polícia Militar. “Quem foi vítima de violência vai dizer isso num batalhão, para os próprios fardados?”, questiona Hugo Leonardo, do IDDD. “A gente está diante de um cenário patético. Não precisa ir muito longe para dizer que isso é um fracasso.”

*Nome fictício dado à vítima

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