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10/12/2021

“Conectas 20”: Desafio de criar uma ONG internacional no Brasil está na gênese da Conectas

Alta funcionária da ONU, Malak El-Chichini Poppovic, idealizou abertura do terceiro setor do país para o mundo e parcerias entre as nações do Sul Global. Leia texto da publicação "Conectas 20", que celebra as duas décadas da organização



Foram muitas as conexões que levaram a economista egípcia Malak El-Chichini a estar no lugar certo e com as pessoas-chave para a fundação da primeira organização não governamental brasileira de caráter internacional. 

Trata-se de uma trajetória que interliga três continentes e envolve diplomatas e acadêmicos, advogados e ativistas, costurando Cairo (Egito), Genebra (Suíça), Dacar (Senegal) e Nova York (EUA), antes de assentar de vez no Brasil, graças ao Carnaval de 1985.

Isso porque foi no contexto da folia carioca que Malak conheceu o editor Pedro Paulo Poppovic, seu companheiro de vida desde então. 

O encontro foi um capricho do destino e trouxe uma alta funcionária da Organização das Nações Unidas (ONU) para um Brasil em plena redemocratização e retomada de direitos civis e políticos. 

Malak trabalhava havia uma década no Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), onde ingressou depois de concluir mestrado no Instituto de Pós-Graduação de Estudos Internacionais de Genebra. 

O trabalho no Acnur oferecia, a um só tempo, uma comunidade estimulante de colegas, entre eles o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello (1948-2003), a oportunidade de se aprofundar nos desafios postos no campo humanitário, além de uma vivência intensa e reveladora sobre as diversas realidades que a levaram a conhecer mais de 30 países da África, do Oriente Médio e da América Latina.

Malak viveu por dois anos no Senegal, onde o escritório regional do Acnur cobria 13 países. Ali, coordenou programas, como o de repatriação e reinstalação de refugiados das guerras de descolonização de vários países da região. Depois, foi transferida para Nova York, onde passou quatro anos trabalhando na sede norte-americana da ONU, antes de retornar para Genebra.

No país da costa ocidental africana, Malak diz ter aprendido mais do que ensinado: sobre guerras, sobre colonização e sobre como proteger pessoas. Esses temas, no entanto, não eram totalmente estranhos a ela. Pelo contrário, eles haviam lançado as bases de seu sonho de poder mudar as realidades e dar uma vida melhor para as pessoas, ainda em sua terra natal.

Nascida no Cairo em 1943 numa família de classe alta, Malak é a terceira de cinco filhos. Foi educada na mesma escola de freiras católicas da França que sua mãe havia frequentado décadas antes, ainda num modelo de internato de moças. Em sua casa, a conversa era em árabe com o pai, e em francês com a mãe. 

Malak saiu da escola contagiada pela visão humanista das freiras francesas. “Eu queria ser missionária quando era jovem, mas não sabia que não era possível porque eu não era cristã”, lembra, aos risos.

Ainda criança, Malak foi testemunha da revolução socialista de Gamal Abdel Nasser (1918-1970) de 1952. Viu partes da capital egípcia serem incendiadas durante os tumultos que levaram ao fim do poder da família real e da ocupação britânica do Canal do Suez. Assistiu à expulsão do país de integrantes das minorias estrangeiras, alguns deles colegas de escola seus e de sua mãe, depois que o Egito foi atacado por Inglaterra, Israel e França na guerra de 1956.

“Foram tempos movimentados e eu tinha uma dualidade. Por um lado, minha família pertencia a um grupo privilegiado contra o qual o regime de Nasser se voltou, por outro lado, eu acreditava que era preciso ter mais igualdade no Egito”, explica. O mesmo regime mais tarde se tornou arbitrário e passou a violar direitos humanos. “Foi quando eu me dei conta de que não dá para fazer reformas sem democracia. E que os direitos humanos são sempre indispensáveis.” A jovem Malak que queria estudar literatura então resolveu se “meter a ser economista porque achava que era importante para o desenvolvimento do Egito e da África”. Formada, ganhou uma bolsa de estudos para uma pós-graduação em Genebra.

“Eu sonhava em viver um pouco na Europa sozinha. O francês era minha primeira língua e eu me achava praticamente europeia. Mas bastou chegar à Suíça para eu me descobrir como árabe e como africana”, diverte-se. “Você tem que sair do seu país para conseguir enxergar quem realmente é.”

Em Genebra, nos anos 1970, Malak conheceu um grupo de mulheres estrangeiras que não se enxergava nos debates do feminismo europeu e que se reunia para debates noite adentro sobre questões de gênero no contexto de países periféricos e subdesenvolvidos. Entre elas, estava a escritora brasileira Rosiska Darcy de Oliveira, exilada na capital diplomática da Europa depois de denunciar as violações da ditadura militar brasileira de 1964.

Naquele fevereiro de 1985, foi para Rosiska que Malak telefonou quando a grande exposição sobre refugiados que ela organizava na Arábia Saudita foi subitamente cancelada. Depois do desabafo, surgiu um convite para que Malak fosse ao Rio passar o Carnaval na casa de Rosiska, onde já estava outro amigo da brasileira. Era Pedro Paulo.

Aquela era a quarta vez que Malak visitava o Brasil, sempre de férias, para visitar a amiga e uma de suas irmãs, Nayla, que também vivia no Rio e trabalhava com refugiados políticos, alguns dos quais chegou a esconder na própria casa.

A novidade desta viagem, no entanto, foi crucial: Malak deixou o Brasil já com planos de rever Pedro Paulo, que a faria depois retornar para uma estadia de longo prazo. Em poucos meses, ela estava de mudança para São Paulo, onde havia estado uma única vez, por pouco mais de 24 horas.

“Quando cheguei ao Brasil, no início da abertura, achei tudo muito promissor comparado ao que estava acontecendo nos outros países”, conta ela. “Era um país vibrante, com uma sociedade civil muito interessante, que era vista como exemplo na África, onde o terceiro setor era colonizado por organizações dos países desenvolvidos.” O primeiro grande desafio foi aprender a língua, dentro e fora de casa. O segundo, descobrir como se encaixar profissionalmente no novo país.

Malak foi apresentada ao cientista político Paulo Sérgio Pinheiro por um amigo comum e ex-colega no Acnur, Guilherme Lustosa da Cunha (1942-2010). E começou a trabalhar no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), fundado por Pinheiro e pelo sociólogo Sérgio Adorno.

Foi ali que conheceu muitos jovens pesquisadores e ativistas, entre eles, o advogado Oscar Vilhena Vieira, recém- -formado na universidade e voluntário na Comissão Teotônio Vilela, com quem fundaria a Conectas 13 anos mais tarde. “De cara ficamos muito, muito amigos.” Malak e Oscar compartilhavam ideias, diagnósticos e aspirações sobre justiça, direitos humanos e o papel da sociedade civil organizada.

A dupla também projetava uma maior abertura de um Brasil em transformação para um mundo cada vez mais conectado e interdependente. “Fui muito influenciada pelo egípcio Boutros Boutros-Ghali, Secretário Geral da ONU, que falou: nós temos que democratizar a globalização”, explica.

Malak é da geração de altos funcionários da ONU que gestou a série de grandes conferências organizada por Boutros-Ghali nos anos 1990. Os encontros sobre grandes arcos temáticos que pautaram o debate público dali por diante conseguiram integrar ativistas e organizações da sociedade civil de países periféricos em torno de discussões sobre meio ambiente (Rio de Janeiro, 1992), direitos humanos (Viena, 1993) e gênero (Beijing, 1995).

“A internacionalização dessas grandes questões deu voz a muitos novos atores. Foi um momento de grande fortalecimento da sociedade civil”, avalia ela. No contexto de construção de redes internacionais, Malak enxergava o Brasil isolado até mesmo de seus vizinhos da América Latina, quanto mais de outras economias em desenvolvimento da África e da Ásia.

Fortalecer a solidariedade entre ativistas e organizações do terceiro setor na periferia global lhe pareceu algo importante. “O fato de eu ser uma pessoa deslocada tornou forte para mim a ideia de solidariedade. Aqui, no Brasil, estou deslocada. Quando eu volto para o Egito, também estou deslocada porque eu mudei e o país mudou.” 

“O fato de eu ser uma pessoa deslocada

tornou forte para mim

a ideia de solidariedade”

A importância estratégica de fortalecer o terceiro setor ganhou ainda mais corpo quando Malak integrou a equipe da Comunidade Solidária, criada em 1995 pela então primeira-dama Ruth Cardoso (1930-2008), antropóloga casada com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

“A Ruth Cardoso era uma pessoa muito inspiradora e estava inovando na relação entre a sociedade civil e políticas públicas. Ela tinha essa ideia de que o terceiro setor tinha que ser fortalecido porque ele era muito importante para a área social”, conta. “Todo o trabalho na Comunidade Solidária foi muito útil para a constatação do impacto que uma ONG pode ter no plano pessoal de um indivíduo.” Como assessora especial da área internacional da Comunidade Solidária, Malak criou pontes com a recém-criada Fundação das Nações Unidas (UNF), para a qual migrou, levando Ruth Cardoso para o conselho. A fundação havia adotado a proposta de fomento da cooperação para o desenvolvimento entre países do chamado Sul Global, criada pelo então chefe do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Mark Malloch-Brown (hoje diretor da Open Society Foundation).

Entusiasta da ideia há tempos, Malak colocou esse tipo de cooperação à prova num projeto-piloto de cooperação entre Brasil e Botsuana, na África, no campo da prevenção ao vírus HIV. Em 1999, quando o programa foi iniciado, o país africano tinha a maior taxa de contaminação pelo vírus da AIDS do continente. 

Financiado pela UN Foundation e pela Fundação Bill e Melinda Gates, o programa deu muito certo. “Ficou evidente que a troca entre dois países que nem têm uma mesma língua, mas que compartilham outras características, como estruturas precárias e dificuldades técnicas, era muito positiva”, avalia. Foi a senha para um projeto mais ambicioso, que ligasse os pontos de sua trajetória, alinhavando a sua expertise com a de um grupo de advogados e ativistas para criar um novo modelo de organização não governamental no Brasil.

“Conversei com o Oscar, que tinha a ideia de uma rede de ativistas e de fortalecer os sistemas de justiça enquanto eu queria abrir o Brasil para a região, mas também abrir para a África e, se possível, para a Ásia, em conexões Sul-Sul”, conta. “Para mim também era importante criar uma organização com maior representatividade internacional: outras culturas, outros olhares, outros sotaques”, explica. “Tive muita sorte de encontrar pessoas que estavam pensando como eu.”

A opção política pela cooperação SulSul e por promover novas vozes nos debates globais, fortalecendo defensores de direitos humanos e o diálogo entre lideranças sociais, acadêmicos e especialistas se combinaram na criação da Conectas.

Conectar ativistas e fomentar seu acesso aos sistemas de proteção dos direitos humanos, conectar disciplinas e acadêmicos, fazer pontes entre organizações e elos entre redes.

Seu preâmbulo foi o primeiro Colóquio Internacional de Direitos Humanos, em maio de 2001. Considerado como o ponto de partida da organização, o encontro de uma semana em São Paulo colocou em contato jovens ativistas dos países de língua portuguesa, unindo África e Brasil. A experiência se repetiu ao longo dos anos, articulando acadêmicos e defensores, advogados e pesquisadores em palestras, oficinas, grupos de trabalho e atividades de troca de experiências.

 A ONG então se estruturou, a partir de um primeiro financiamento da UN Foundation, em torno do Programa Sul Global e do Programa de Justiça, que anos depois se desdobraram num projeto de monitoramento de Política Externa e Direitos Humanos e num periódico, a Sur – Revista Internacional de Direitos Humanos.

“Quando começamos, a sociedade civil era muito fragmentada: grupos antirracistas, grupos de mulheres, grupos LGBTQIA+, grupos ligados à violência, grupos ligados à terra. A gente via que era preciso conectar esses grupos. Esse era o grande sonho”, diz Malak, que hoje avalia ter superestimado o processo de redemocratização do Brasil. 

“Subestimamos as dificuldades do período porque, quando você tem uma democratização de direitos sem uma democratização econômica, a desigualdade continua tão grande que não é possível dizer que todos têm os mesmos direitos”, pondera. “Aprendemos que isso não é algo automático. E aprendemos isso ‘the hard way’.”

Um exemplo? “Aprendemos que não é porque não tem racismo oficial que os negros não serão discriminados, porque a sociedade continua racista.” Desde o início, a ONG atuou em casos de violações de direitos humanos nos sistemas prisionais do país. Mas nenhum caso marcou tanto a organização como o do Espírito Santo, que, em 2009, foi palco de guerras entre facções ocorridas em celas superlotadas.

Episódios de desmembramento de pessoas eram frequentes. E algumas celas chegavam a ter oito vezes mais presos que sua capacidade. Para desafogá-las, o governo havia criado celas em contêineres, onde a temperatura chegava a 50°C. 

“Foi o primeiro caso em que a gente realmente usou todos os recursos e instrumentos possíveis”, lembra Malak. Primeiro, a Conectas fez parcerias locais, com ONGs e conselhos de direitos humanos. Depois, enviou uma carta ao presidente da República, sem resposta. Finalmente, produziu um dossiê enviado para o Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas, em Genebra, onde foi organizado um evento paralelo sobre o tema. 

“Ninguém nos respondia, nem internacionalmente nem localmente”, conta Malak. “E percebemos que, sem muita visibilidade, seria impossível mudar alguma coisa.” A Conectas então enviou o dossiê para o jornalista Elio Gaspari, que se interessou pelo tema e publicou uma coluna em vários jornais do país intitulada “As masmorras de Hartung aparecerão na ONU”. 

A repercussão foi tamanha que o evento em Genebra foi um sucesso e as mudanças nas prisões capixabas começaram a acontecer: a superlotação diminuiu quatro vezes e as celas em contêineres foram fechadas. “Descobrimos que estratégia era importante. E que tínhamos de usar todos os métodos para defender as pessoas que não podem se defender sozinhas. Nossa atuação foi algo que transformou para melhor a vida de muita gente”, comemora ela, que foi diretora-executiva da Conectas entre 2005 e 2011.

Malak avalia que o grande desafio de seu campo hoje é ampliar o diálogo sobre direitos humanos. “Temos falado para um público fechado, e muita gente ainda não foi atingida pelo discurso dos direitos humanos, tanto à direita quanto à esquerda. É preciso abrir portas, ver por onde a comunicação não passa e por quê, e repensá-la”, explica. 

Eu nunca quis ser política mas, ao mesmo tempo eu queria mudar as realidades”, admite. “Meu sonho de militância sempre foi o de poder dar uma vida melhor para as pessoas, mais justiça. Um sonho de desenvolvimento, que se realizou na medida em que, mesmo quando eu saí da Conectas, ele continuou — e continuou cada vez melhor”, avalia. “Não posso dizer que acertei. Digo: acertamos.” Para ela, as transformações vividas pela ONG desde sua fundação são a maneira de se adaptar aos desafios de cada momento. “No meu tempo, por exemplo, a Conectas era muito mais internacional do que hoje, e por boas razões. O Brasil era exportador de boas ideias e, agora, é o Brasil que está precisando de ajuda”, aponta. “Renovar-se significa viver o presente.

Por Fernanda Mena

O perfil de Malak El-Chichini Poppovic e de outros ativistas centrais na história da Conectas estão na publicação ”Conectas 20”. Veja:

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