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24/03/2021

Conama: como os direitos ambientais morrem

STF julga legalidade de decreto presidencial que visa “passar a boiada”, desidratando participação popular em conselho do meio ambiente

Foto: Vinicius Mendonça / Ibama Foto: Vinicius Mendonça / Ibama

O ministro Luís Roberto Barroso observou a ocorrência de um fenômeno “razoavelmente novo” na democracia, em 2019, quando suspendeu trechos de um decreto do presidente Jair Bolsonaro que alterava a composição do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente). 

Segundo ele, os retrocessos democráticos, no mundo atual, não decorrem mais de golpes de Estado com o uso das armas. “Ao contrário, as maiores ameaças à democracia e ao constitucionalismo são resultado de alterações normativas pontuais, aparentemente válidas do ponto de vista formal, que (…) expressam a adoção de medidas que vão progressivamente corroendo a tutela de direitos e o regime democrático”, pontuou o magistrado, citando o livro “Como as Democracias Morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. 

Dois anos depois, em março de 2021, por 10 votos contra 1 — do ministro Marco Aurélio Mello —, o STF (Supremo Tribunal Federal) seguiu a decisão de Barroso e declarou inconstitucional o decreto que enxugava o número de membros do Conanda e dificultava a participação da sociedade civil no conselho. Mas essa não foi a única ameaça democrática do tipo. 

Ainda em 2019, outro decreto presidencial também mirou na composição e no funcionamento de outro comitê: o Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente), órgão consultivo e deliberativo do Sistema Nacional do Meio Ambiente. O conselho é um dos mais importantes órgãos da política ambiental brasileira, elaborando, por meio de reuniões técnicas e participação colegiada, grande parte da legislação sobre direito ambiental no país. 

A reestruturação reduziu de 93 para 23 os assentos com direito a voto, além de diminuir também de 11 para 4 as cadeiras de entidades não empresariais da sociedade civil e de encurtar o mandato destas entidades de dois anos para apenas um, substituindo ainda o método de escolha de eleição para sorteio. Portanto, entidades ambientalistas, povos indígenas, populações tradicionais, comunidade científica, trabalhadores rurais perderam, de fato, espaço de representatividade e participação.

“Essa alteração coloca em xeque a própria existência do conselho, já que ele foi criado justamente para ouvir essas vozes”, afirma a advogada Júlia Neiva, coordenadora do Programa de Desenvolvimento e Direitos Socioambientais da Conectas — que participa do julgamento da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) nº 623, na condição de amicus curiae (amiga da corte), ao lado de instituições como WWF, Instituto Socioambiental (ISA), Transparência Internacional, Rede de ONGs da Mata Atlântica e Observatório do Clima. 

Em março, o STF também teve a oportunidade de analisar esta medida, mas o julgamento foi interrompido por um pedido de vista do ministro Nunes Marques, sem previsão de retomada. 

‘Passando a boiada’

O decreto também levanta questionamentos porque rememora a já famosa reunião ministerial de abril de 2020, quando o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles sugeriu aproveitar o momento de preocupação com a Covid-19 para “ir passando a boiada”, alterando as regras ambientais. “Parece oportuno relembrar essa frase quando vemos a extinção de mais um espaço público de monitoramento”, observa Neiva. “É como se existisse um véu encobrindo a situação, porque a face aparente é de normalidade, como se o órgão continuasse existindo, mas da forma como está posto não é possível que ele funcione para o que foi criado.”

Apesar da medida ser vista com apreensão, para a advogada, a expectativa é a de que os mesmos pesos e medidas usados em relação ao caso do Conanda sejam aplicados também no Conama.

As instituições da sociedade civil são peças-chave para garantir o respeito a duas das mais importantes regras informais da democracia. De acordo com o cientista político Jairo Nicolau, da UFRJ, uma delas é a tolerância mútua; a outra, a reserva institucional. “Tolerância mútua é reconhecer que os rivais, caso joguem pelas regras institucionais, têm o mesmo direito de existir, competir pelo poder e governar. A reserva institucional significa evitar ações que, embora respeitem a letra da lei, violam claramente o seu espírito. Para além do texto da Constituição, uma democracia necessitaria de líderes que conheçam e respeitem as regras informais”, escreveu Nicolau, no prefácio da edição brasileira da obra referencial de Barroso, “Como as Democracias Morrem”, da editora Zahar. Nesse sentido, na ausência de tais figuras, torna-se mister a atuação de atores que consigam romper o véu da ilusão que encobre valores pouco afeitos à soberania popular.

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