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Como uma comunidade quilombola construiu um protocolo de consulta para defender seus modos de vida

Na nordestina Chapada do Araripe, remanescentes de quilombo da Serra dos Rafaéis são impactados por parques eólicos e lutam por transição energética justa

Criança da comunidade faz a leitura do protocolo de consulta durante o lançamento do documento. Foto: Jeferson Batista/Conectas Criança da comunidade faz a leitura do protocolo de consulta durante o lançamento do documento. Foto: Jeferson Batista/Conectas

O mandacaru marca a paisagem da Serra dos Rafaéis, na Chapada do Araripe – região que abrange os estados do Ceará, Pernambuco e Piauí. É um cacto resistente, forte e grandioso. Essas características também podem ser usadas para definir o povo quilombola que vive ali naquele território.  

Os remanescentes de Quilombo da Serra dos Rafaéis, em Simões (PI), construíram um espaço de resistência e refúgio na caatinga piauiense. Vivem há décadas de forma integrada à natureza. Da terra, tiram parte do sustento, especialmente com o cultivo da mandioca. Os moradores da comunidade estabeleceram ali práticas sociais e culturais. Entre elas, está a organização da vida comunitária ao redor das atividades da capela local, onde mulheres e homens promovem celebrações, eventos religiosos e reuniões da associação da comunidade.

As famílias da localidade seguem na resistência e na luta por respeito aos seus direitos, incluindo o respeito aos seus modos de vida e ao território. Com o fim oficial da escravidão, as principais preocupações não são mais os senhores de escravizados, mas os impactos causados pela crescente instalação de parques eólicos na região. 

Um protocolo em defesa das vidas quilombolas

A comunidade demarcou sua postura diante desse contexto e construiu o seu protocolo de consulta livre, prévia e informada, baseado na Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e em outros instrumentos legais, nacionais e internacionais.  Lançado em maio de 2023, o documento foi produzido em parceria com Instituto Maíra, Conectas, CONAQ, Defensoria Pública do Estado do Piauí e International Accountability Project.

O objetivo do protocolo é que todos os governos – federal, estadual ou municipal – e todas as empresas, independentemente do tamanho, possam conhecer a comunidade, seu território e seus direitos, inclusive ao  tempo necessário para que os moradores se preparem e entendam melhor os assuntos que afetam o local onde vivem. 

“Devemos ser consultados sobre qualquer coisa que vá nos impactar, seja feita dentro ou fora de nosso território. Pode ser obra, lei, projeto, questão de direito à saúde, à educação ou qualquer outra coisa que afete nosso povo. Esperamos que a consulta livre, prévia e informada seja realizada em todas as fases do Licenciamento Ambiental, e também durante as concessões e renovações de licenças, de qualquer empreendimento ou projeto”, afirma trecho do documento. 

“Esse documento é resultado de muita luta. Agora, quem chegar à nossa comunidade, vai saber como entrar, com quem conversar e como será recebido pela nossa associação”, afirmou José Antonio Nonato, o Seu Zezito, uma das lideranças da comunidade, durante o evento de lançamento do protocolo de consulta. “Com o protocolo, temos mais uma ferramenta para pedir respeito à nossa comunidade”. 

No processo de construção do protocolo, a associação comunitária, criada para organizar as questões locais, buscou informações sobre a história dos fundadores da comunidade e conhecimento sobre o arcabouço de leis que garantem seus direitos. “Esse trabalho da associação ajuda a comunidade a entender quem é e quais são os direitos que a assiste e o protocolo é muito importante nesse sentido. Quem dá voz a esse protocolo é a comunidade”, disse, também no lançamento do documento, Ana Clara Ribeiro de Sousa Castro, defensora pública do Estado do Piauí. 

Para Daniel Lopes Faggiano, diretor executivo do Instituto Maíra, “a comunidade é vitoriosa”. O lançamento deste protocolo é uma vitória. A comunidade mostrou que é possível construir um mundo melhor”. 

Ocorrido no final de maio, o evento de lançamento realizado pela comunidade em seu território contou com a presença de integrantes das organizações parceiras, o pensador quilombola Negô Bispo e uma equipe de pesquisadores do Grupo de Pesquisa e Estudo em Sistemas de Indicadores de Sustentabilidade Urbana, Rural e Ambiental (SURA) da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).

Instalação de parques eólicos

Na última década, a principal ameaça aos direitos de povos e comunidades tradicionais, garantidos pela Constituição Federal e tratados internacionais, são os empreendimentos de energias renováveis. Os parques eólicos transformaram não só a paisagem, mas também a vida das pessoas. Suas relações sociais e com a vegetação do entorno  estão sendo impactadas. 

Inaugurado em 2017, o Complexo Ventos do Araripe III foi construído pela empresa brasileira Casa dos Ventos Energias Renováveis S.A., com financiamento do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento) e do NDB (Novo Banco de Desenvolvimento), instituição financeira vinculada ao grupo dos Brics, composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

Em janeiro de 2020, uma equipe composta por pesquisadores da Conectas e da International Accountability Project visitou a região, entrevistou dezenas de famílias em diversas comunidades aos arredores do Ventos do Araripe III e constatou que o empreendimento gera impactos à comunidade. 

Entre as principais reclamações estão os altos ruídos causados pelas hélices, que aumentam drasticamente conforme a força dos ventos, chegando a gerar dificuldades para que as pessoas durmam. O aumento da incidência de raios, assim como a morte de animais, sobretudo, voadores, também são apontados como fatos novos que passaram a ocorrer após a chegada dos parques eólicos na região. Neste momento, novos parques estão em processo de instalação em Araripe. 

Energia renovável e direitos humanos 

A demanda cada vez maior pela produção de energia renovável é uma necessidade urgente em um mundo em emergência climática que não pode mais arcar com os impactos dos combustíveis fósseis e que necessita de alternativas reais de descarbonização. Mas essa mudança pressupõe, necessariamente, respeito às populações mais vulnerabilizadas, especialmente comunidades tradicionais, como povos indígenas, quilombolas e comunidades pesqueiras que sempre foram as guardiãs dos recursos naturais, do meio ambiente e da preservação da vida. Como afirmou um relatório recente da Convenção das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, “mudar para uma economia de baixo carbono pode criar empregos e oportunidades, mas deve ocorrer de forma econômica e socialmente justa”. Esse é o principal ponto do conceito de transição energética justa. 

“A energia eólica é uma das alternativas disponíveis para a necessária e urgente mudança da matriz energética fóssil para a renovável. No entanto, para que a energia seja verdadeiramente ‘limpa e barata’, é preciso respeitar as comunidades locais. Os empreendimentos ditos sustentáveis não podem cometer as mesmas violações de direitos humanos que ocorreram na Usina Hidrelétrica de Belo Monte (PA), na Pequena Central Hidrelétrica Capão Grande (PR) e que constatamos em Araripe”, afirma Júlia Neiva, coordenadora do programa Defesa dos Direitos Socioambientais da Conectas. “É evidente que a produção de energia limpa deve ser fomentada, que o Brasil precisa descarbonizar sua matriz energética, mas não em detrimento das populações locais e de seus direitos”.


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