1. Introdução
Previstas no artigo 7º da Convenção Americana de Direitos Humanos,() as audiências de custódia começaram a ser implantadas no Brasil apenas em 2015, por iniciativa do Conselho Nacional de Justiça e do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por meio do Provimento Conjunto 03/2015.() A partir daí, tornou-se obrigatório, pelo menos na Capital,() que toda pessoa detida em flagrante fosse apresentada em até 24 horas a um juiz competente para realização de audiência com o objetivo de avaliar a legalidade e as condições do flagrante e auferir eventuais torturas ou outros TCDD (Tratamentos cruéis, desumanos e degradantes) sofridos no momento da prisão.
A iniciativa, pioneira e inédita, foi então seguida pela Resolução nº 213/2015() do Conselho Nacional de Justiça, que determinou a implantação das audiências em âmbito nacional. Até agora, todos os Estados brasileiros já realizam as audiências de custódia, ainda que em qualidade variada e que não tenham, todos, atingido por ora todas as suas respectivas circunscrições judiciárias.
É nesse contexto que a Conectas Direitos Humanos realizou monitoramento presencial de audiências de custódia realizadas no Fórum Criminal da Barra Funda, nos períodos entre julho e novembro de 2015 (etapa de observação) e dezembro de 2015 a maio de 2016 (etapa de acompanhamento das denúncias de violência narradas pelos custodiados), com o objetivo de identificar o modo como relatos de violência policial surgem nas audiências; e, a partir disso, quais as respostas das instituições do sistema de Justiça – Magistratura, Ministério Público, Defensoria Pública e o Instituto Médico Legal – a eles.
Os resultados desse monitoramento geraram o relatório Tortura blindada: como as instituições do sistema de Justiça perpetuam a violência nas audiências de custódia,() lançado em fevereiro de 2017 pela Conectas, analisado neste artigo.
1.1 Metodologia
A pesquisa foi desenvolvida por meio de metodologia de estudo de caso e foi realizada na fase inicial das audiências, quando estavam em implementação. Assim, o foco foram as audiências de custódia realizadas entre julho a novembro de 2015, no Fórum Criminal da Barra Funda, na cidade e Estado de São Paulo, acompanhadas de seus desdobramentos no período de dezembro de 2015 até maio de 2016.
As estratégias de pesquisa foram (i) o monitoramento das audiências, assistidas presencialmente pelas pesquisadoras;() (ii) a análise dos atos formais e procedimentos para implementação das audiências em São Paulo; (iii) a análise dos documentos aos quais o Tribunal de Justiça, Ministério Público e Defensoria Pública têm acesso no momento da realização da audiência de custódia (boletim de ocorrência e auto de prisão em flagrante, entre outros); (iv) a análise dos laudos do Instituto Médico-Legal (IML), quando solicitados pelo juízo após a audiência de custódia; (v) a análise dos procedimentos abertos para apuração de relatos de tortura em audiência de custódia no DIPO 5; (vi) a realização de reuniões com integrantes do sistema de justiça criminal e segurança pública; e, por fim, (vii) a análise das respostas das instituições do sistema de justiça criminal e segurança pública sobre pedidos de informação apresentados.
Importante ressaltar que o foco das audiências assistidas pelas pesquisadoras eram aquelas em que havia indícios de que o apresentado sofrera tortura ou maus-tratos em algum momento entre sua prisão e sua apresentação à autoridade judicial. Quando as pesquisadoras assistiam audiências em que esse requisito não era atendido, o formulário de coleta de dados não era preenchido. Desta forma, o universo da pesquisa, de 393 casos, diz respeito apenas a casos em que houve relato de tortura ou outros TCDD em audiência, ou então havia sinais() de tortura ou outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes contra o preso. Dos 393 casos, em 363 o relato de violência foi feito em audiência de custódia; em três, ocorreram as denominadas “audiências-fantasma” (em que não há a apresentação da pessoa presa em virtude de estar hospitalizada); e, em 27, as pessoas presas apresentavam sinais de agressão, mas não relataram a violência em audiência.
2. Resultados da pesquisa
As audiências de custódia envolvem, em regra, a atuação da Magistratura, do Ministério Público e da Defensoria Pública (ou advocacia particular) durante o momento da audiência, e, posteriormente, a atuação do Instituto Médico-Legal, na averiguação das marcas físicas e/ou psicológicas da tortura ou outros TCDD. Assim, a pesquisa desenvolvida pela Conectas apresenta seus resultados por instituição. Abaixo, apresentamos os principais pontos e questões identificados:
2.1 A Atuação da Magistratura: “Eu quero saber se teve porrada!”
A Magistratura é a primeira instituição a se manifestar nas audiências de custódia, e também a responsável pela condução da mesma. À época da pesquisa, os onze juízes do DIPO (Departamento de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária da Capital) se dividiam na realização das audiências.
Aqui, é importante notar a falta de padronização na atuação desses juízes nas audiências. Enquanto, por exemplo, alguns magistrados questionavam o réu acerca de eventual violência no momento da prisão em todas as audiências que conduziam, outros nunca fizeram esse questionamento.() Da mesma forma, enquanto alguns magistrados encaminharam denúncias de tortura ou outros TCDD em audiência para investigação em 100% das vezes, outros o fizeram em apenas 48% das vezes.
Se analisarmos o momento após um relato de violência, os dados não são melhores. Em 25% dos casos, os juízes não fizeram qualquer intervenção diante da denúncia apresentada. E, nos casos em que há intervenção, nota-se, por exemplo, que, embora 29% das perguntas sejam no sentido de buscar mais detalhes do ocorrido (o que, frise-se, não configura bom índice, dado o papel do juiz no combate à tortura), há quantidade expressiva de perguntas “negativas”: 7% delas, por exemplo, eram no sentido de insinuar que o acusado estaria mentindo; e 6% no sentido de naturalizar a agressão.
Os resultados encontrados quanto à atuação da Magistratura se tornam ainda mais graves se considerarmos a importância que poderia exercer no combate à tortura nas prisões em flagrante – isso porque, em quase 60% dos casos, a denúncia de tortura ou outros TCDD surgiu após pergunta feita pelo juiz.
2.2 A Atuação do Ministério Público: “Se não estivesse roubando, não estava apanhando…”
Dos dados obtidos acerca da atuação de cada instituição envolvida nas audiências de custódia, pode-se dizer que os relativos ao Ministério Público são os mais preocupantes. A instituição é a segunda com a palavra nas audiências. Começa-se notando que, excluídos os casos em que o acusado relatou espontaneamente violência, e os casos em que o magistrado já havia questionado, o Ministério Público apenas averiguou a eventual ocorrência de tortura ou outros TCDD em 9% dos casos.() Por outro lado, quando houve relato de violência em audiência, a instituição interveio em apenas 20%. Isso significa, em outras palavras, que em 80% dos casos em que o acusado relatou ter sofrido tortura ou outros TCDD, o MP não fez qualquer tipo de intervenção.
E, nos casos em que o Ministério Público fez alguma intervenção, choca observar que 60% delas foram, exclusivamente, para deslegitimar o relato do preso, com perguntas que tentavam, por exemplo, justificar a agressão narrada ou insinuar que não seria verdadeira.
Esse comportamento do Ministério Público reflete nos dados relativos aos encaminhamentos dados aos relatos de violência. Em 88% dos casos em que houve denúncia de tortura ou outros TCDD, a instituição não requereu qualquer encaminhamento no sentido de apurar a denúncia. E, nos casos em que houve qualquer solicitação de apuração, eram majoritariamente pedido de encaminhamento ao DIPO 5 ou um pedido genérico de encaminhamento para apuração do relato.
E aqui, da mesma forma como ocorre na Magistratura, é possível observar a potencial importância que o Ministério Público poderia exercer no combate à tortura: 93% dos pedidos de apuração das denúncias feitos pela instituição são acatados pela Magistratura.
Esses dados demonstram não apenas a dificuldade do Ministério Público em exercer eficazmente seu papel constitucional de Controle Externo da Atividade Policial (CEAP)(), como também o possível prejuízo na qualidade da ação penal exercida posteriormente pelo órgão. Para além da persecução penal simples de policiais suspeitos, a função confere ao parquet a possibilidade de instaurar procedimento investigativo próprio ou requisitar à policial judiciária que o faça, sob sua supervisão próxima. Ao mesmo tempo, a análise do serviço público relacionado ao policiamento exige a atuação estrutural do Ministério Público emitindo recomendações para as práticas e padrões de atuação policiais. Dentre os órgãos analisados, o Ministério Público é o único que aparenta não estar construindo qualquer banco de dados relativos à violência policial narrada em audiências de custódia.
2.3 A Atuação da Defensoria Pública
A Defensoria Pública é a última instituição do sistema de justiça criminal a falar nas audiências de custódia. Por isso, é interessante notar que foi a responsável por fazer a “primeira pergunta” acerca de ocorrência de violência no momento da prisão em 23% dos casos, comprovando a falta de interesse das outras duas instituições, sobretudo do Ministério Público. Além disso, ressalta-se que a instituição foi a única a fazer perguntas relacionadas à existência de testemunhas ou outras provas que dessem suporte à denúncia de violência; e também a única a não fazer perguntas no sentido de insinuar que o preso estaria mentindo.
Ainda assim, os defensores deixaram, em muitos casos, de confrontar a Magistratura e o Ministério Público quando estes tentavam deslegitimar o relato dos custodiados – muitas vezes, de modo agressivo e desrespeitoso. Notou-se uma certa apatia por parte da instituição no que toca à reação ao comportamento de juízes ou promotores, especialmente diante de decisões dos juízes de não apurar os relatos de violência.
Outro dado importante é que defensores intervieram em 49% dos casos em que houve relato de violência. Os defensores do DIPO reagiram a relatos de violência em 67% dos casos, enquanto os designados, em apenas 32% das vezes – o que demonstra a importância da capacitação e conhecimento dos defensores para atuação na custódia.
2.4 A Atuação do Instituto Médico-Legal: “Informou que sofreu queda da própria altura.”
O Instituto Médico-Legal, em São Paulo, é órgão subordinado à Secretaria de Segurança Pública do Estado. É ele que está encarregado de realizar os exames de corpo de delito no Fórum Criminal da Barra Funda depois das audiências de custódia; à época da pesquisa, numa sala improvisada e estreita. Além disso, as pesquisadoras observaram que policiais militares ficavam acompanhando a realização do exame durante todo o tempo na porta da sala, o que poderia inibir a reprodução do relato do custodiado ao médico perito.
Dos laudos aos quais as pesquisadoras tiveram acesso, observou-se que, em 73% das vezes, os custodiados pareciam reproduzir, de maneira mais ou menos similar, a denúncia de violência feita em audiência de custódia. No entanto, nota-se que, em 16% dos casos, o relato foi reproduzido com nível de detalhamento muito menor, e, em outros 16%, sequer foi reproduzido. Isso pode estar relacionado ao ambiente de realização do exame, que, como explicado acima, não garante privacidade.
Observação importante é a de que nenhum dos laudos analisados investiga a ocorrência de violência psicológica, ainda que esses relatos tenham surgido em audiência. De fato, nos casos em que o custodiado narrou “apenas” a ocorrência de violência psicológica, o laudo do exame de corpo de delito indica que “nada foi informado”. Isso se torna especialmente grave em violências de gênero, que não necessariamente deixam marcas de lesão visíveis; tipo de delito também de difícil constatação pela ausência de peritas mulheres no Fórum.
3. Conclusões e Encaminhamentos
Os magistrados não tomaram qualquer tipo de providência em 26% dos casos em que houve denúncia de violência policial. Quando decidiram pela apuração, o procedimento é burocrático e não resulta em verdadeira resposta à violência institucionalizada: enviam o procedimento ao DIPO 5, que se limita a encaminhar os relatos às corregedorias das próprias instituições policiais, demorando, em média, mais de 60 dias para essa primeira determinação de investigação. Em 14% dos casos, esse envio pelos juízes foi equivocado (para o órgão errado).
No caso da PM, os próprios batalhões onde estava lotado o policial denunciado era o encarregado de apurar os fatos. Em apenas 1 dos 393 casos, o juiz determinou abertura de inquérito policial, em caso que não analisava a responsabilidade de policiais responsáveis pelo flagrante.
Vale ressaltar, por fim, que os custodiados estão sempre algemados, antes, durante e após as audiências – até mesmo aqueles que têm a sua prisão revogada pelo Judiciário. Além disso, há sempre ao menos um policial militar acompanhando o custodiado em todos os momentos. Esses elementos, adicionados à postura de enfrentamento por parte de atores do sistema de justiça – particularmente juízes e promotores de justiça – tornam o ambiente das audiências de muita pressão e intimidação ao acusado que pode ter acabado de sofrer uma das violências mais graves num Estado Democrático de Direito, a tortura.
Em conclusão, a rotina das audiências de custódia é completamente incompatível com as normas administrativas, processuais e constitucionais que devem se aplicar ao procedimento, mas principalmente com o propósito que orientou a criação do instituto e a sua implementação no Estado. A audiência de custódia, pensada para inserir na persecução penal um procedimento adequado à garantia de direitos, tem dado ensejo à desconsideração das normas de prevenção e combate à tortura que “não cabem” na rotina das autoridades que lhes determinam a forma, especialmente do Ministério Público, órgão com atribuição de “fiscal da lei” e de controle externo das polícias.
Diante de vasta documentação colhida, Conectas Direitos Humanos requereu, no início do ano, providências da Corregedoria do TJSP e da Procuradoria Geral de Justiça no sentido de avaliar se as condutas de alguns dos seus integrantes eram compatíveis com as normas que regem as carreiras. Incrivelmente, ambas as instituições arquivaram as representações alegando, em síntese, não haver nada a ser corrigido ou apurado.
As condutas dos juízes e membros do Ministério Público estão sendo agora levadas pela organização ao Conselho Nacional de Justiça e ao Conselho Nacional do Ministério Público por meio de novas representações, para que sejam tomadas providências quanto aos fatos documentados.