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07/10/2019

Por que é preciso descriminalizar o porte de drogas para uso pessoal

Julgamento sobre descriminalização volta para a pauta do STF; caso começou em 2015 e foi interrompida por um pedido de vista do ministro Teori Zavascki, morto em 2017



Atualizado 23 de maio de 2023

O Supremo Tribunal Federal deve voltar a discutir se o porte de drogas para consumo próprio é crime. O caso está pautado para esta quarta-feira (24). Trata-se do Recurso Extraordinário (RE 635659), que está paralisado há quase oito anos na Corte. 

Ao se tornar o único preso condenado nas manifestações de junho de 2013 — após ser pego com frascos lacrados de desinfetante e água sanitária, sob a alegação de porte de material explosivo —, o jovem negro, morador de favela e ex-catador de latas Rafael Braga tornou-se também um símbolo das arbitrariedades das prisões no Brasil.

A simbologia ganhou reforço quando, seis meses depois já em regime semiaberto, com o uso da tornozeleira eletrônica ele sofreu uma abordagem policial sem testemunhas, e foi preso por acusação de tráfico de drogas e associação ao tráfico, ao sair de casa para visitar sua mãe. Na delegacia, o ex-catador se deparou com 0,6 gramas de maconha, 9,3 gramas de cocaína e um rojão, que os policiais atribuíram a ele. Cinco anos depois, Braga foi absolvido pelo crime de associação ao tráfico, mas ainda cumpre pena em prisão domiciliar por tráfico de drogas.

“A guerra às drogas é, na verdade, uma guerra às pessoas”, afirmou o advogado Rafael Custódio, antigo representante da Conectas, ITTC (Instituto, Terra, Trabalho e Cidadania), Pastoral Carcerária e Instituto Sou da Paz, no julgamento sobre descriminalização do porte de drogas para uso pessoal no Supremo Tribunal Federal, em 2015. “[A guerra às drogas] traz consigo, como elemento central, a necessidade da expansão ininterrupta do poder punitivo do Estado.”

Na sustentação, o advogado citou pesquisas que revelam o alvo do punitivismo antidrogas no Brasil: jovens, entre 18 e 29 anos, negros, com escolaridade até o primeiro grau e sem antecedentes criminais. Além disso, no geral, o acusado é preso sozinho, sem arma, com pouca quantidade de drogas e sem que tenha havido qualquer atividade de inteligência policial para sua prisão. “Em outras palavras, é empiricamente comprovado que a lei antidrogas brasileira funciona, na verdade, como instrumento de criminalização da pobreza”, disse Custódio. Rafael Braga é só o exemplo mais conhecido disso.

 

O histórico da votação

A discussão sobre a descriminalização no STF começou em 2015, mas foi interrompida por um pedido de vista do ministro Teori Zavascki, morto em 2017. Na ocasião, três dos onze ministros já haviam declarado seus votos: o relator Gilmar Mendes, que votou a favor da descriminalização de todas as drogas; e os ministros Luiz Edson Fachin e Luís Roberto Barroso, ambos a favor da descriminalização da maconha.

O debate deveria ser retomado no dia 5 de junho de 2019, mas após encontros com o presidente Jair Bolsonaro e os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, David Alcolumbre, o líder do STF, ministro Dias Toffoli, decidiu tirar a discussão da pauta, que será retomada no dia 6 de novembro.

Caso decida sobre a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006, o Brasil será um dos últimos países da América Latina a deixar de tratar o usuário como criminoso. Na região, Brasil, Suriname e as Guianas são os únicos que consideram crime o porte de drogas para uso pessoal.

Qualificando o debate sobre drogas

Para aprofundar a questão, os especialistas reforçam a necessidade de entender a diferença entre os termos “legalização” e “descriminalização”. “A ideia da descriminalização é tirar o usuário da esfera penal”, explicou o psiquiatra da Unicamp Luís Fernando Tófoli, membro do Conselho Estadual de Políticas Públicas sobre Drogas de São Paulo, em um encontro com jornalistas realizado pela Conectas. “É pouco, mas é o primeiro passo civilizatório necessário. É o começo para discussões mais amplas.” A ideia, portanto, não é tornar legal a produção e o comércio de drogas, como acontece com o álcool, tabaco e medicamentos.

Para o advogado Cristiano Maronna, secretário-executivo da PBPD (Plataforma Brasileira de Política de Drogas), um dos desafios atuais é qualificar o debate, ação complexa num contexto que bane a redução de danos (norteada pelo cuidado em liberdade e o respeito à autonomia) e coloca a abstinência como única meta terapêutica. “Temos uma política de drogas terraplanista, porque não tem base científica nenhuma. No caso ‘osmarterraplanista’”, diz Maronna, em referência ao ministro Osmar Terra.

A falta de qualificação do debate pode ter consequências desastrosas, segundo o advogado. “Nossa grande preocupação é em relação à massificação da internação forçada de pessoas que usam drogas, porque sabemos que ela tem endereço certo”, explica Maronna. Segundo ele, o tratamento dispensado ao usuário de crack em cena de uso público não será igual ao do “executivo que cheira cocaína em seu gabinete na Paulista”. 

Uma pesquisa da PBPD sobre o perfil dos usuários atendidos pelo programa De Braços Abertos, na Cracolândia, em São Paulo, mostrou que o crack não é causa, mas consequência da exclusão.  Ou como afirmou o professor de psicologia e de psiquiatria da Universidade de Columbia Carl Hart, em entrevista a Drauzio Varella: “A Cracolândia tem pouco a ver com crack, mas tem tudo a ver com falta de oportunidade econômica e defasagem na educação.”

Soma-se a isso a ideia defendida por setores conservadores da política de que se vive no Brasil uma epidemia de drogas, o que justificaria tais medidas extremas. A ideia, no entanto, não encontra respaldo, como comprova o 3º Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira, feito pela Fiocruz, que mostrou que o número nacional de usuários de crack, por exemplo, é de 208 mil quantidade inferior a de 370 mil, registrada em anos anteriores.

A pesquisa, que foi encomendada pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), órgão ligado ao Ministério da Justiça, e custou R$ 7 milhões aos cofres públicos, foi censurada pelo governo e segue embargada. O ministro Osmar Terra afirmou que não confia nas pesquisas da Fiocruz, apesar da fundação atestar a metodologia da pesquisa.

Para os especialistas antiproibicionistas, é urgente a necessidade de tratar usuários problemáticos no sistema de saúde, não no penal. Por isso, eles defendem que a descriminalização de todas as drogas seria mais efetiva do que a descriminalização de apenas uma delas no caso, a maconha, como defendem os ministros Luiz Edson Fachin e Luís Roberto Barroso.

O critério é a falta de critério

Cristiano Maronna fala ainda sobre o “salto triplo carpado hermenêutico” para justificar a incriminação por porte de drogas. “Eles dizem que aquele que porta drogas, ainda que para uso pessoal, está colocando em risco a saúde pública, porque essa conduta representa um risco potencial da expansão do consumo que pode levar a uma epidemia de dependência da sociedade”, explica.

O problema é que, conforme um dos princípios do direito penal, para gerar prisão, uma conduta precisaria lesar uma terceira pessoa, como nos casos de assassinato e roubo, por exemplo. Isso não se aplicaria ao uso pessoal de drogas, em que a vítima e o autor do delito são a mesma pessoa.

Há ainda a questão da falta de critérios para julgar o que é tráfico e o que é uso pessoal, o que só intensifica as prisões. Um levantamento do governo paulista, lançado em maio, mostrou que só em São Paulo o número de presos mais do que quadruplicou nos últimos 25 anos, alcançando 235.775 pessoas — sendo que o Brasil é o terceiro país que mais encarcera presos no mundo, só atrás de Estados Unidos e China. Dados do Ministério da Justiça e Secretaria da Administração Penitenciária, de 2018, revelaram que um terço das prisões masculinas e dois terços das femininas ocorreram por tráfico de drogas.

“O critério é a falta de critério”, afirma Maronna. Na falta de provas do ato do comércio de drogas, os juízes costumam valorizar o depoimento dos policiais, o que Maronna chama de “rainha das provas”. Um levantamento da Agência Pública, que analisou 4 mil sentenças de tráfico em São Paulo, mostrou que, nos processos referentes a apreensões de até 10 gramas de maconha, cocaína e crack, em 83,7% dos casos as únicas testemunhas ouvidas foram os próprios policiais. Nessas circunstâncias, houve 59% de condenações, contra 44% de quando houve testemunhas civis.

Segundo estudo da Associação Brasileira de Jurimetria, desde a criação da lei 11.343, de 2006, conhecida como Lei de Drogas, que instituiu uma nova política sobre substâncias ilícitas, a proporção de presos por tráfico saltou de 15,5% em 2007 para 25,5% em 2013.

A falta de critérios objetivos para definir quem é traficante e quem é usuário ajuda no alto número de prisões. “Ser acusado por uso ou tráfico é uma loteria”, afirma Maronna. Segundo ele, é por isso que um dos maiores méritos da Lei de Drogas é proteger as elites e criminalizar os pobres, sendo o exemplo mais bem acabado de como o nosso sistema prisional funciona mal e de maneira seletiva.

Na votação de 2015, o ministro Barroso defendeu a ideia de que uma pessoa possa portar até 25 gramas de maconha sem ser considerada traficante, e ainda a possibilidade de cultivo de, no máximo, seis plantas fêmeas por usuário. A tendência, no entanto, é que outros ministros considerem a fixação de critérios como uma atribuição do Congresso Nacional.

Baseado em fatos raciais

Sem uma definição clara, não é surpresa a constatação do levantamento da Pública que mostra que pessoas negras são mais condenadas por tráficos de que as brancas, mesmo que portem menos quantidade de drogas. “A rigor o juiz não julga a partir da raça, mas esse viés racista e com horror à pobreza aparece indiretamente nas sentenças”, diz o psiquiatra Luis Fernando Tófoli.

O historiador Eduardo Ribeiro, coordenador da INNPD (Iniciativa Negra por Uma Nova Política de Drogas), chama atenção para a “racialidade contida nas palavras”, que ocorre quando, mesmo sem dizermos a cor do traficante, há uma associação com pessoas negras. “Isso tem um impacto profundo nos debates do STF”, explica ele.

Ribeiro cita como exemplo a frase dita pelo ministro Barroso: “O crack muda a equação do problema das drogas, porque ele transforma as pessoas num corpo sem alma”. “Apesar de não falar em usuários de crack negros, ele remete à ideia dos negros sem alma do período colonial, o primeiro status da população sequestrada para escravidão”, explica Ribeiro.

O historiador lembra ainda da declaração de Cassandra Frederick, da ONG norte-americana Drug Policy Alliance, ao falar que “as necessidades da branquitude pautam as mudanças da lei para o seu próprio benefício”. “Se a gente observar o avanço dos debates do acesso à maconha terapêutica, por exemplo, vamos perceber que são brancos resolvendo o seus próprios problemas.” 

Outras novidades pouco discutidas saltam à mente de Ribeiro quando o historiador pensa na intensificação das prisões, causadas pela criminalização e falta de critérios objetivos. O aumento do mapeamento genético é uma delas. Em fevereiro, o ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro incluiu em seu projeto de lei anticrime a ampliação do atual banco de DNA de presos, aumentando em 20 anos o tempo de manutenção dos perfis genéticos após o cumprimento da pena e criando um arquivo com informações biométricas, com impressão digital, face, íris e voz.

“[Considerando que a população negra sofre mais encarceramentos] vamos voltar ao final do século 19, quando Nina Rodrigues dizia que os negros têm mais propensão ao crime. A existência de mais negros no banco genético pode impulsionar o retorno desse debate a partir de uma perspectiva naturalista”, calcula Ribeiro.

Para o historiador, além de não impedir o uso das substâncias ilícitas, que já são largamente consumidas, a criminalização destrói vidas negras, socializando gerações de crianças a partir do vocabulário da violência. “Quando a gente boicota uma população inteira, da infância até a vida adulta, isso só pode ser chamado de genocídio”, resume. “É óbvio que queremos a inconstitucionalidade do artigo 28, mas temos que saber o que queremos impulsionar a partir disso.” Caso contrário, a decisão do STF, mesmo que favorável à descriminalização, não afetará em nada a vida de quem mais é castigado pela lei.

#DescriminalizaSTF 

Com a sua ajuda, queremos mostrar aos ministros a urgência no avanço da política sobre drogas. Clique aqui e assine a petição e nos ajude a pressionar o STF para votar pela descriminalização das drogas.

 

 

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