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05/10/2022

Veja os gargalos da Justiça Militar, instituição responsável por julgar o braço armado do Estado

Nota Técnica elaborada pela Conectas e FGV Diversidade faz uma análise histórica, técnica e prática dos tribunais geridos pelas Forças Militares

As competências da Justiça Militar em julgar civis e agentes das Forças Armadas que cometem crimes contra a vida são algumas questões em pauta no STF (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil) As competências da Justiça Militar em julgar civis e agentes das Forças Armadas que cometem crimes contra a vida são algumas questões em pauta no STF (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Na cena, uma mulher negra, de 53 anos, está totalmente imobilizada no chão, enquanto um policial militar pisa em seu pescoço, chegando a colocar todo o peso de seu corpo sobre ela, como se quisesse deixar a marca de seu coturno. O episódio — que lembrou o caso do norte-americano George Floyd — foi filmado por um celular, e aconteceu em 2020, na zona sul de São Paulo. De acordo com a denúncia do Ministério Público de São Paulo, antes de ser rendida, a vítima ainda recebeu três socos e um chute na perna, fraturando a tíbia. Em agosto de 2022, a Justiça Militar do Estado de São Paulo inocentou o policial responsável pela tortura, João Paulo Servato. O julgamento foi feito por quatro oficiais da PM e um juiz civil.

É por conta de casos como este que a Conectas e a FGV Diversidade lançaram nesta quarta-feira (5) uma Nota Técnica sobre a Justiça Militar, um documento que reforça a necessidade de investigação, sistematização e exposição do sistema de Justiça Militar brasileiro. 

>>> Clique aqui para acessar a Nota técnica Justiça Militar 

De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, só em 2020, pelo menos 6.416 civis foram mortos em decorrência de intervenções policiais (militares e civis). Mas nem todos os abusos são responsabilizados. Cerca de 70% dos casos instaurados no âmbito da Justiça Militar terminam sem punição, de acordo com um levantamento do site Metrópoles, com dados do Superior Tribunal Militar, no período entre 2015 e 2017. 

“A experiência tem demonstrado que a Justiça Militar costuma ser leniente e corporativista quando julga militares por crimes relacionados à violação de direitos humanos, mas tende a ser desproporcionalmente dura quando os réus são civis acusados pela prática de delitos militares —como desacato, desobediência ou resistência a militares envolvidos em atividades de segurança pública”, escreveram à Folha de S.Paulo os advogados Daniel Sarmento, professor da Uerj, e Gabriel Sampaio, coordenador de litígio estratégico e do Programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas.

Como mostra a Nota Técnica, desde o seu início, a Justiça Militar apresenta questões que não foram bem elaboradas. Com raízes no direito português, a instituição foi criada com a vinda da família real para o Brasil em 1808, e importou as mesmas regras portuguesas, sem que fossem levadas em consideração a realidade da colônia. Com o passar do tempo, observou-se o aperfeiçoamento desse sistema, que ganhou reforço no período da ditadura militar. “À época acertou-se através do AI-2 e outros atos que a justiça militar possuiria jurisdição sobre os tipos previstos na Lei de Segurança Nacional, bem como expansão de sua competência para julgamento de civis”, lembra a Nota. 

Um militar faz, um militar inocenta

Atualmente, a Justiça Militar é composta por duas instâncias: os Conselhos de Justiça Militar, tribunais inferiores formados por quatro militares da ativa e um juiz civil; e o Superior Tribunal Militar, composto por 15 ministros, sendo a maioria militares ativos.

A instituição é desmembrada em Justiça Militar da União e Justiça Militar Estadual e suas competências estão estabelecidas na Constituição Federal de 1988, além de também ser organizada pelo Código da Justiça Militar, o Código Penal Militar e a Lei nº 8457/92, que organiza a Justiça Militar da União e regula o funcionamento de seus serviços auxiliares. Enquanto à Justiça Militar da União julga crimes militares cometidos por integrantes das Forças Armadas, ou por civis que atentem contra a Administração Militar Federal, à Justiça Militar Estadual cabe o julgamento de casos relacionados aos militares dos estados, como policiais militares e bombeiros.

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Tendo em vista seu funcionamento, é possível destacar alguns gargalos. O primeiro deles é que os indivíduos que julgam os militares são os próprios militares. Como resumiu Vitor Santiago, vítima da violência por parte dos militares, em uma audiência na Comissão Interamericana de Direitos Humanos: “É um militar que faz, um militar que julga e um militar que inocenta”.

Outro ponto é que, apesar de ser formado na Escola de Saúde e Formação Complementar do Exército, o oficial de carreira não possui obrigatoriedade de estágio ou trabalho na área, o que pode fazer com que ele seja sorteado para um julgamento sem nunca ter tido experiência com qualquer questão jurídica. 

Além disso, mesmo que a Justiça Militar faça parte do Judiciário, estando sujeita às suas normas, em função destes pontos levantados, existe uma dissonância de tratamento dada aos casos pelos julgadores militares. “O que se demonstrou no presente documento é que, ainda que sob as normas do Judiciário, por meio da teoria do escabinato, os julgadores trazem a hierarquia para dentro do sistema de julgamento da Justiça Militar. Os julgamentos, inegavelmente, acabam por buscar a tutela da hierarquia e da disciplina militares”, aponta a Nota Técnica.

A Justiça Militar dos outros

O documento elaborado pela Conectas e FGV Diversidade traz ainda um comparativo com a forma de organização da Justiça Militar de diversos países da América Latina, Estados Unidos e Cabo Verde, o qual, como o Brasil, também tem um histórico de colonização portuguesa. Logo, é possível notar que os países lidam de formas muito distintas com os crimes cometidos pelos militares. No arquipélago cabo-verdiano, por exemplo, a Justiça Militar é composta por uma única entidade, o Tribunal Militar de Instância, que é integrado por apenas três magistrados, dois militares e um juiz-auditor, sem natureza militar.

Já nos Estados Unidos, ao contrário da justiça comum, os comandantes militares exercem o arbítrio ao decidir se um crime deve ser acusado e como os infratores devem ser punidos, enquanto isso, em países como a Argentina, em 2009, instituiu-se um corpo internacional de juízes, com ajuda da ONU, para julgar crimes de guerra, sendo que civis não podem, sob nenhuma hipótese, serem julgados pelo Tribunal Militar. 

Ao fazer uma análise histórica, técnica e prática da Justiça Militar, a Conectas e a FGV Diversidade chamam atenção para os casos de abuso e destacam a importância da vigilância da sociedade civil para a responsabilização daqueles que possuem treinamento e legitimidade para o uso do poder da força em nome do Estado. 

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