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Veja 6 ações no STF que questionam os usos da Justiça Militar no Brasil

Entidades da sociedade civil e especialistas em direitos humanos pedem que Corte estabeleça limites constitucionais a tribunais geridos pelas Forças Armadas

As competências da Justiça Militar em julgar civis e agentes das Forças Armadas que cometem crimes contra a vida são algumas questões em pauta no STF (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil) As competências da Justiça Militar em julgar civis e agentes das Forças Armadas que cometem crimes contra a vida são algumas questões em pauta no STF (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

“Lembro de não estar no lugar e hora erradas, eu estava no meu cotidiano, estava no carro com amigos e fomos abordados por soldados, fomos revistados. Após 15 minutos, outra patrulha alvejou o meu carro”, relatou, em audiência na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Vitor Santiago, morador da Maré, vítima do descaso e da violência por parte dos militares. Durante uma ação do Exército em 2015, ele sofreu disparos em seu carro, ficou paraplégico, teve lesão medular e uma perna amputada.

“Fiquei 90 dias internados no hospital, passei por uma série de cirurgias e minha esperança é que justiça fosse feita o mais rápido possível”. No entanto, em 2018, o cabo que atirou em Vitor foi inocentado pela Justiça Militar, o que, ao seu ver, prova o forte corporativismo: “É um militar que faz, um militar que julga e um militar que o inocenta”. 

Competências constitucionais 

De acordo com especialistas em segurança pública e no enfrentamento à violência institucional, os problemas da Justiça Militar estão relacionados ao fato de que esses tribunais extrapolam suas competências constitucionais e atuam para além da atividade estritamente militar. 

Nesse sentido, duas questões se destacam. A primeira está relacionada com o julgamento de civis pelos tribunais da Justiça Militar. Essa prática aumentou substancialmente durante o período da ditadura militar (1964-1985) e, mesmo com o fim da sua competência para julgar crimes contra a segurança nacional, a tendência de expansão de julgamento de civis cresceu mesmo após a Constituição de 1988, em boa parte em razão do aumento da atuação das Forças Armadas em atividades de segurança pública.

O segundo ponto é que a Justiça Militar burla a competência do Tribunal do Júri  e realiza julgamentos de crimes cometidos por militares no exercício de funções subsidiárias atribuídas às Forças Armadas, que envolvem a sua atuação na área de segurança pública, como as conhecidas GLO (operações de garantia da lei e da ordem). 

Por conta disso, abusos e crimes contra a vida de civis cometidos por agentes de segurança pública e integrantes das Forças Militares correm risco de não serem investigados e julgados de forma transparente, causando um cenário de impunidade e violações de direitos, especialmente de moradores de favelas e periferias em todo país, sobretudo jovens negros, e trabalhadores do campo, locais onde GLO e operações policiais, por exemplo, são realizadas com pouco ou nenhum controle da sociedade. 

“O atual cenário da Justiça Militar no Brasil  não oferece  à sociedade civil  instrumentos legítimos de controle da atividade militar”, afirma Gabriel Sampaio, coordenador do programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas. Para o advogado, “os tribunais geridos por militares não podem ser à parte da sociedade, com dinâmicas e regras estranhas à população e outras instituições jurídicas civis.” 

Preocupação internacional

Em setembro de 2021, a ONU divulgou um relatório no qual afirma que as investigações de homicídios e desaparecimentos cometidos por agentes de segurança pública e militares devem ser conduzidas por tribunais do júri e Justiça Comum, não pela Justiça Militar. Isso evidencia que o Brasil fere princípios básicos da justiça ao permitir que integrantes militares julguem seus pares investigados por cometer crimes dolosos, por exemplo. 

Essa preocupação também é expressa no livro “Dano colateral: a intervenção dos militares na segurança pública”, no qual, além de investigar os julgamentos da Justiça Militar, a jornalista Natália Viana também se debruça sobre a vida de soldados “que acabam com um fuzil nas mãos, geralmente a milhares de quilômetros de casa, atirando em homens tão jovens quanto eles”. 

“Estudando esses casos, entendi que havia alguns padrões — a ausência de empatia dos soldados com as vítimas e suas famílias, as repetitivas notas do Exército contando sempre a mesma história e a vergonhosa atuação da Justiça Militar ao lidar com essas situações”, escreveu Viana, citando uma fala do presidente francês Georges Clemenceau que dizia que “a Justiça Militar está para a justiça assim como a música militar está para a música”. 

A seguir, a Conectas lista seis ações no Supremo Tribunal Federal que tratam do papel e das competências da Justiça Militar no Brasil.

ADI 5032: Crimes cometidos por militares devem ser processados pela Justiça Civil

A ADI 5032 (Ação Direta de Inconstitucionalidade), apresentada, em 2013, pede que agentes das Forças Armadas que cometam crimes no exercício de atividades militares atípicas, especialmente no âmbito da segurança pública — como é o caso das GLOs (garantias da lei e da ordem) —, não possam ser julgados pelos tribunais da Justiça Militar, mas, sim, pela justiça comum. Em parceiria com o Ministério Público Militar, Tortura Nunca Mais, Defensoria Pública da União e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, a Conectas é amicus curie na ação.

ADPF 289: Justiça Militar não deve processar e julgar civis em tempos de paz

Antes da ditadura militar, a Justiça gerida pelas Forças Armadas só era habilitada a processar e julgar civis em casos específicos, como atentado à segurança externa do país ou às instituições militares. Depois do rompimento democrático, no entanto, as competências da Justiça Militar foram ampliadas. “O atual cenário não garante julgamento justo para as pessoas acusadas e viola direitos fundamentais já consolidados por tratados nacionais e internacionais”, diz Gabriel Sampaio, coordenador do Programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas. “A Justiça Militar deve atuar apenas em casos administrativos referente ao funcionamento das Forças Armadas”. A Conectas participa da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 289 como amicus curiae, ao lado da Comissão Arns, Coletivo Papo Reto, Instituto de Defesa da População Negra, Justiça Global, Instituto de Defesa do Direito de Defesa.

ADPF 826: A perseguição ao trabalho da imprensa deve ser restringida

No entendimento do STF, crimes militares podem ser caracterizados apenas nos casos em que as instituições militares são afetadas. Na prática, porém, os critérios subentendidos em expressões como “afetar as instituições militares” dão margem para a aplicação ilegítima do Código Penal Militar, constrangendo o trabalho da imprensa. Em julho de 2021, com a crescente banalização da presença militar no governo, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) propôs que o STF reaprecisasse a matéria por meio da ADPF 826, sob o prisma da liberdade de expressão e do direito à informação. 

ADI 5901: Oficiais das Forças Armadas não devem julgar colegas que atentam contra civis

A Lei 13.491/2017, que amplia a competência da Justiça Militar, gera conflitos entre os princípios básicos da justiça e as obrigações do Brasil diante do direito internacional, que autorizam apenas a aplicação restrita da competência da Justiça Militar em casos de crimes funcionais. Além disso, a lei pode beneficiar o corporativismo e criar uma espécie de salvo-conduto para que os militares não sejam responsabilizados pelos excessos que possam cometer. Diante disso, a ADI 5901, ajuizada pelo PSOL, questiona esta competência atribuída aos tribunais da Justiça Militar. Em pedido de amicus curiae, a Conectas e a Clínica Internacional de Direitos Humanos Allard K. Lowenstein, vinculada à Escola de Direito de Yale, afirmam que a falta de imparcialidade e independência “impede o acesso à justiça e facilita a impunidade em caso de violações dos direitos humanos”.

ADI 5804: Crimes praticados contra civis devem ser julgados pela justiça comum

A ADI 5804 contesta dispositivos das Leis Federais 13.491/2017 e 9.299/1996 que alteram o Código Penal Militar  e o Código de Processo Penal Militar. De acordo com a ação, essas alterações ferem a Constituição Federal ao instituir o procedimento de inquérito policial militar presidido por oficiais das polícias militares dos estados e do Distrito Federal para a apuração dos crimes dolosos contra a vida, praticados contra civis, para posterior ação penal perante a justiça comum. 

ADI 4164: Justiça Militar não deve apurar crimes dolosos cometidos por militares 

Com diversos pontos em comum com a ação anterior, a ADI 4164 requer que o STF declare a inconstitucionalidade de partes da Lei 9.299/1996 e de outros decretos-lei. O argumento é que dispositivos destas leis contrariam a Constituição Federal ao conferir à Justiça Militar a incumbência de apurar todos os crimes cometidos por militares, incluindo a fase de instauração de inquérito policial militar para os crimes dolosos contra a vida que serão, posteriormente, julgados pela justiça comum.


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