Após 10 anos de discussão jurídica, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou no início de abril a ilegalidade da revista íntima vexatória em visitantes de unidades prisionais. A Corte reconheceu que a prática é desumana, degradante e contrária aos direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal e por tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.
O julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE 959620), com repercussão geral reconhecida, teve origem em um caso do Rio Grande do Sul. Uma mulher foi absolvida após ser submetida a uma revista íntima em que foi flagrada com drogas escondidas nas partes íntimas. O juízo entendeu que a prova era ilícita por ter sido obtida mediante violação da dignidade humana. O Ministério Público recorreu, mas teve o pedido negado por unanimidade no STF.
A revista íntima vexatória — em que visitantes são forçados a se despir, agachar e expor genitálias — afeta desproporcionalmente mulheres negras e pobres, que compõem a maior parte das visitantes no sistema prisional brasileiro. A prática é amplamente considerada uma forma de tortura psicológica por organismos internacionais.
Apesar da suposta justificativa de segurança, a eficácia da medida é contestada por dados oficiais. Em São Paulo, pesquisa da Defensoria Pública revelou que apenas 0,02% das revistas resultaram em apreensão de objetos ilícitos. No Paraná, dados de 2018 mostraram que drogas foram encontradas em apenas 0,18% das revistas íntimas e celulares em 0,01% dos casos.
As organizações Conectas Direitos Humanos, ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania) e IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) participaram do julgamento como amici curiae (amigas da Corte), representando a Rede Justiça Criminal — articulação formada por nove entidades que lutam por um sistema de justiça pautado nos direitos humanos.
O coletivo enviou aos ministros e ministras do STF um parecer técnico solicitando que a prática da revista íntima vexatória fosse considerada inconstitucional. Para Janine Salles, coordenadora executiva da Rede Justiça Criminal, “o princípio de que a pena não pode ultrapassar a pessoa do condenado está entre os fundamentos mais básicos do direito penal. Mesmo assim, o simples fato de ter vínculos afetivos com pessoas presas faz com que milhares de pessoas passem todas as semanas por um procedimento tão degradante como a revista vexatória.” As organizações também defenderam a nulidade de todas as provas obtidas ou produzidas a partir desse tipo de procedimento.
Levantamento nacional realizado por organizações como Conectas, ITTC e IDDD — integrantes da Rede Justiça Criminal — revela a dimensão brutal das violações causadas pela revista íntima vexatória no Brasil. Segundo o relatório Revista Vexatória: uma prática constante (2021), 77% dos familiares de pessoas presas já foram submetidos à revista como condição para visita, sendo 97% mulheres e 69,9% pessoas negras.
O estudo mostra que, mesmo com a instalação de scanners corporais em mais de 93% das unidades prisionais pesquisadas, quase metade dos familiares ainda são obrigados a passar por revistas íntimas. Em muitos casos, mulheres são forçadas a se despir, agachar sobre espelhos e abrir as cavidades íntimas, inclusive durante o período menstrual, numa prática descrita no relatório como um “ritual perverso de humilhação”. As violações também atingem crianças, que são expostas a procedimentos invasivos, e impactam gravemente os vínculos familiares: 34,5% das pessoas entrevistadas afirmaram já ter desistido de visitar parentes presos para evitar a revista, e 66,6% deixaram de levar seus filhos para protegê-los desse tipo de violência.
A decisão do STF reconheceu a inconstitucionalidade da revista íntima vexatória e determinou que provas obtidas por esse meio sejam consideradas ilícitas. A Corte também fixou um prazo de 24 meses para que todos os presídios do país passem a utilizar equipamentos de inspeção não invasivos, como scanners corporais, portais detectores de metais e esteiras de raio-X
A medida é vista como um avanço importante, ao modernizar os procedimentos de segurança e proteger a dignidade das pessoas visitantes.
Apesar do avanço, o STF estabeleceu uma exceção à regra: a revista íntima poderá ser realizada em “casos excepcionais”, quando não houver disponibilidade de equipamentos ou quando eles forem considerados ineficazes. Nesses casos, será exigido o consentimento expresso do visitante e a existência de indícios objetivos e robustos de suspeita.
Para entidades como a AMPARAR (Associação de Amigos e Familiares de Presos), essa brecha pode manter viva a prática com outro nome. “A definição de ‘indícios robustos’ fica a cargo dos agentes penitenciários, muitas vezes sem treinamento técnico, o que abre margem para arbitrariedades”, alertam.
A decisão do STF cria um precedente relevante e deve orientar o Judiciário em todo o país. No entanto, sua implementação efetiva exigirá monitoramento constante e mobilização social.
A Conectas e demais organizações da Rede Justiça Criminal continuarão acompanhando o cumprimento da decisão, cobrando a adoção de tecnologias adequadas e denunciando violações. A luta é para que nenhuma pessoa — em especial mulheres negras e periféricas — seja submetida a práticas degradantes e discriminatórias sob pretexto de segurança.
2014 – Absolvição na 1ª instância (RS)
Mulher é absolvida após ter sido flagrada com drogas em revista íntima vexatória no Presídio Central de Porto Alegre. Juiz considerou a prova ilícita por violar a dignidade humana.
2015 – MP recorre
O Ministério Público recorre da decisão, mas o TJ-RS e o STJ mantêm a absolvição. Caso é levado ao STF via Recurso Extraordinário (ARE 959620).
2016 – STF reconhece repercussão geral
O Supremo reconhece que o tema tem relevância constitucional e impacto nacional. A decisão final servirá de parâmetro para todo o Judiciário.
2013–2023 – Incidência da sociedade civil
Organizações como Conectas e Rede Justiça Criminal levam o tema à ONU, realizam campanhas públicas e atuam como amicus curiae na ação.
2023–2024 – Sustentações orais no STF
Defensorias e entidades de direitos humanos argumentam contra a prática, destacando seu caráter discriminatório e degradante.
Abril de 2025 – Decisão final do STF
Por unanimidade, STF declara ilegal a revista íntima vexatória e determina o uso de equipamentos eletrônicos em até 24 meses. Corte, porém, abre exceções em “casos excepcionais”, sob críticas de organizações sociais.