No dia 26 de janeiro, pessoas trans e aliadas se reuniram em Brasília (DF) para a segunda edição da Marsha Nacional pela Visibilidade Trans – a grafia com “sh” é uma homenagem à ativista norte-americana Marsha P. Johnson, pioneira do movimento LGBTI+. O evento reúne diversas atividades na última semana deste mês para marcar o Dia Nacional da Visibilidade Trans, celebrado em 29 de janeiro.
No domingo ensolarado, milhares de pessoas caminharam pela Praça dos Três Poderes e pela Esplanada dos Ministérios para reivindicar políticas públicas em defesa das infâncias e juventudes trans, um envelhecimento trans saudável, seguro e digno, o fim dos transfeminicídios e o direito à saúde trans no SUS.
Em entrevista à Conectas, no dia 24 de janeiro, a ativista Keila Simpson falou sobre a luta pelos direitos humanos da população trans e o papel desses eventos públicos na capital federal, Considerada uma das ativistas LGBTI+ mais importantes do Brasil, Keila atua desde 1991 com a população LGBTI+, primeiro em Salvador (BA) e depois no cenário nacional.
É uma das fundadoras da Antra, pioneira no trabalho de prevenção ao HIV/Aids no país e já foi vice-presidenta da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT). Em 2024, tornou-se a primeira travesti brasileira a receber o título de doutora Honoris Causa pela UERJ.
Conectas: A Antra está organizando a 2ª MarSha Trans em Brasília, que acontece de 25 a 28 de janeiro. Poderia nos contar como nasceu esse evento e sua importância, e apontar os principais objetivos e expectativas para a Marsha deste ano?
Keila Simpson: A marcha nasce como uma resposta aos retrocessos no nível federal, e também como uma maneira de mostrar, com movimentação de massa, que devemos sempre estar nas ruas. A Marsha é um evento de rua que visa dar visibilidade às pautas e bandeiras da população trans, mas também é um momento de celebração, da visibilidade de corpos que ficam escondidos o ano todo, expostos à violência e discriminação […]. Organizada pela Antra, a Marsha conta com a participação de outros movimentos trans e parcerias com organizações cisgêneras, organismos governamentais estaduais, federais e municipais. É uma grande movimentação de pessoas e organizações com o objetivo de combater discriminação e violência e pautar a inclusão social.
É necessário estar visível todos os anos, não só nesse período. Não buscamos privilégios, mas reparação. Somos uma população que ainda está à margem, e aproveitamos esses momentos para refletir sobre ocupar o centro da disputa política e reivindicar direitos. […]. A Marsha é apenas um elemento dessa mobilização que acontece o ano todo, com organizações de todo o Brasil. Este evento, em 26 de janeiro, é a reunião de diversas ações, em Brasília, para demonstrar nosso movimento e buscar mais políticas de inclusão para uma população ainda excluída.
Conectas: Quais são as principais demandas e prioridades da associação para o ano de 2025?
Keila Simpson: A Antra tem focado bastante em formação política. Estamos desenvolvendo projetos nesse sentido, além de trabalhar com produção de conhecimento. Continuaremos nesse caminho. Estamos realizando uma pesquisa chamada Traviarcas, da qual sou uma das pesquisadoras. O projeto está escutando pessoas trans e travestis com mais de 45 anos em diferentes estados e regiões do Brasil, fazendo um diagnóstico de suas condições de vida, sociabilidade e o ambiente das cidades. Estamos analisando se as cidades têm condições adequadas para receber esse corpo trans envelhecido […] A partir desse diagnóstico, publicaremos o estudo para reivindicar políticas públicas.
Temos outro projeto, em parceria com as redes nacionais ABONG e ABGLT, focado no fortalecimento institucional dessas organizações e no mapeamento das organizações afiliadas à Antra e à ABGLT, para diagnosticar o processo de debilidade dessas entidades. As organizações da sociedade civil têm enfrentado um grande retrocesso no apoio, especialmente financeiro. O projeto da Luminate, nossa instituição financiadora, vai também trabalhar nesse fortalecimento institucional. Então, nossos pilares para 2025 são: fortalecimento institucional, produção de dados, formação e mobilização para a Marsha. Esses são os focos principais para o próximo ano.
Conectas: Como você avalia o impacto das fake news e da desinformação especificamente na população LGBTI+? Quais são as principais ameaças? Há possibilidades de criar estratégias para garantir os direitos humanos nos ambientes digitais?
Keila Simpson: A desinformação é extremamente danosa. Ela não só espalha mentiras, mas também contamina as pessoas, que constroem narrativas para confirmar essas mentiras. Isso é perigoso, violento e desagregador. Potencializa a violência, permitindo que pessoas cometam atos violentos contra outras, muitas vezes sem sequer conhecê-las. As fake news criam tensões e, muitas vezes, nos vemos em discussões nas redes sociais com pessoas distantes, defendendo suas “verdades” como se fosse natural em um mundo tão complexo e diverso. A desinformação, portanto, agrava essa situação.
A fake news, além de violenta, dificulta nossas possibilidades de reação. O que temos feito são ações positivas nas redes sociais, promovendo o que entendemos como o correto. Não estamos impondo nossa visão, mas pedindo respeito à nossa liberdade de expressão, dentro de um contexto democrático e plural. Nossos canais de comunicação são informativos, e buscamos tornar cada vez mais didáticos e elucidativos, para que a sociedade use esses espaços para disseminar saberes e refletir. Apesar de atingirmos uma parcela da população, sabemos que ainda há resistência de quem se opõe ao que acreditamos ser importante. Mas seguimos firme, buscando garantir que nossa população seja tratada com respeito.
Conectas: Em 2013, você recebeu o Prêmio Nacional de Direitos Humanos pelos serviços prestados à comunidade LGBTQIA+ no Brasil. Olhando para trás, quais foram os avanços mais significativos que você testemunhou desde então? E quais são os desafios mais urgentes que ainda precisamos enfrentar para garantir a plena cidadania e respeito às pessoas trans no Brasil?
Keila Simpson: Recebi o prêmio em 2013, já faz 21 anos. Naquele período, o panorama era bem diferente. Não havia essa violência gratuita, a polarização política ainda não tinha chegado às redes sociais e ruas. A violência existia, mas não era tão orgulhosa como é hoje. As pessoas agora se orgulham de ser violentas, de espalhar mentiras, algo que não acontecia há 20 anos. O processo de retrocessos começou, e com isso, a política entrou nas pautas dos movimentos sociais. Surgiram os “salvadores da pátria”, os “anticorrupção”, e começamos a ver a distorção das críticas, o que impactou diretamente nossos movimentos. Os governos de direita pioraram a nossa capacidade de atuar, e sair desse processo não é simples.
Temos atuado muito no fortalecimento das nossas organizações e buscando diálogo mais direto com o poder público para avançar na cidadania e criar condições para a população trans. A Antra tem feito projetos de formação, capacitação e ações de massa. Em meio aos retrocessos, continuamos criando ações para reparar o que vivemos. Um avanço significativo foi a entrada de pessoas trans na política, com algumas se elegendo. Embora ainda sejamos poucos, essa é uma possibilidade importante de ampliação. A cada ano, vemos um processo mais qualificado de pessoas trans nas disputas eleitorais. As lideranças estão mais maduras e conscientes de que não é necessário discutir pautas que desrespeitem suas identidades. As parlamentares trans, em diferentes níveis, trabalham pela comunidade em geral, sem se limitar a um segmento específico. Trabalham amplamente nas pautas políticas das cidades e estados onde atuam.