Voltar
-
19/12/2023

Entenda como as ondas de calor extremo estão relacionadas com o racismo ambiental

Um homem refresca-se numa fonte no centro de Porto Alegre, Brasil, em dezembro de 2023. (Foto de SILVIO AVILA / AFP) Um homem refresca-se numa fonte no centro de Porto Alegre, Brasil, em dezembro de 2023. (Foto de SILVIO AVILA / AFP)

As ondas de calor extremo que vivenciamos no Brasil, sendo a mais recente de 14 a 17 de dezembro, elevaram as temperaturas a máximas acima do esperado. Esta é a nona vez que o fenômeno é registrado no país só neste ano, segundo o Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia). O instituto emitiu um alerta laranja pela onda de calor, que indica perigo. Ele é ativado quando há previsão de temperaturas 5ºC acima da média, que persistem por três a cinco dias consecutivos. A previsão era de que elas ultrapassassem os 40ºC em algumas regiões. 

Segundo o relatório preliminar publicado no fim de novembro pela OMM (Organização Meteorológica Mundial), ligada à ONU, o ano de 2023 foi o mais quente desde 1849. Até outubro deste ano, a temperatura global ficou 1,4ºC acima da média de 1950/1900, resultado das elevadas emissões de gases de efeito estufa, decorrentes de atividades poluidoras.

Embora o Sol seja para todos e as temperaturas se elevem sem distinção, as possibilidades de se proteger contra o calor é diferente conforme a classe social, a raça e a renda. São os mais empobrecidos, em geral pessoas negras, indígenas e periféricas, que sofrem mais com as mudanças climáticas, apesar de serem os agentes com a menor parcela de responsabilidade pelos efeitos catastróficos que têm sido gerados.

Estima-se que mais de 1 bilhão de pessoas – a maioria no Sul Global  – estão sob risco devido ao calor extremo por falta de acesso a equipamentos de resfriamento do ar, segundo o Pnuma (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente). No Brasil, enquanto 26,7% dos brancos têm ar-condicionado em casa, a proporção de pretos e pardos com acesso a esse bem é de 12,6% e 15,3% respectivamente, aponta o IBGE.

A esse desbalanço sobre quem mais sofre os impactos negativos dos problemas ecológicos se dá o nome de racismo ambiental. O conceito foi criado na década de 1980 por Benjamin Franklin Chavis Jr, liderança do movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, porém desde muito antes comunidades tradicionais já mapeavam esse fator ainda que não utilizando a mesma terminologia. 

O termo está em um relatório da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre raça e crise climática. Em 2021, sob o governo de Jair Bolsonaro, o Brasil rejeitou a expressão em uma reunião do Conselho dos Direitos Humanos da entidade – mas isso não exclui, claro, a relação entre injustiça racial e ambiental. 

A situação vem se agravando. Segundo relatório da OMM, de 2011 a 2020, o número de países com registros de temperaturas recordes foi maior do que em qualquer outra década. Isso tem consequências diretas na segurança alimentar, nos deslocamentos e migrações.

“Grupos socialmente vulnerabilizados sofrem mais com a destruição ambiental. O desmatamento, a contaminação dos rios e a falta de saneamento básico impactam mais as pessoas negras, indígenas e pobres”, afirma Julia Neiva, coordenadora do programa de Defesa dos Direitos Socioambientais da Conectas.

Para a socióloga Maria Rita da Silva Passos, membra da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, existe uma carga desproporcional de riscos, danos e impactos sociais e ambientais que recaem sobre os grupos étnicos mais vulnerabilizados.

Entre as pessoas sem acesso ao abastecimento de água, mais da metade (66%) é de pretos e pardos e 70,2% dos que vivem sem água tratada estão abaixo da linha da pobreza (com renda inferior a R$ 417,45 por mês). Os dados são do Instituto Trata Brasil

A falta de água em casa, banheiro e coleta de esgoto acaba atingindo a saúde dessa população que, com maior frequência, tem diarreia e vômito, o que afeta os dias de trabalho e estudo, afirma o instituto. 

“Políticas públicas que não se atentam para a existência do racismo ambiental acabam reproduzindo essa lógica racista. É fundamental priorizar investimentos em saneamento básico em comunidades periféricas não só como uma forma de garantia de direitos sociais, mas também de justiça climática”, afirma Neiva.

Altas temperaturas e risco de chuvas elevadas

Com a proximidade da estação mais chuvosa do ano, acendem os alertas para os riscos de cheias e deslizamentos. Em geral, essas tragédias atingem mais as populações que vivem em moradias precárias – a maior parte, negros.

Segundo o CNDH (Conselho Nacional dos Direitos Humanos), embora as tragédias desses períodos de fortes chuvas sejam fruto das mudanças climáticas e degradação socioambiental, elas poderiam ser evitadas ou amenizadas com ações do poder público. A omissão é mais uma manifestação do racismo ambiental.

“São principalmente causadas pela falta de infraestrutura, planejamento e políticas urbanas, o que tem sido agravado pela crise econômica e pela paralisação de programas de construção de moradias, resultando no aumento do número de famílias morando em áreas de risco em todo o país”, diz o texto do colegiado.

Resfriamento global

A emergência climática está deixando quase um terço da população mundial exposta a ondas de calor extremo que duram mais de 20 dias ao ano. 

E, sem que haja mudanças estruturais de longo prazo, a solução imediata para enfrentar o calor retroalimenta o aquecimento global: o resfriamento convencional, por meio de ares-condicionados, emite mais de 7% de gases de efeito estufa em todo o mundo. Caso as tendências de crescimento se mantenham, esses equipamentos serão responsáveis pelo consumo de 20% do total de eletricidade do mundo, e podem dobrar até 2050, afirma a ONU. 

Por isso, durante a COP28 (Conferência das Partes), promovida pela ONU entre o fim de novembro e início de dezembro, em Dubai, foi lançado o Compromisso Global de Resfriamento. A conferência faz parte das ações da UNFCCC (Convenção-Quadro sobre Mudança do Clima), e debate a emergência climática no mundo.

O objetivo é traçar ações para fazer um resfriamento passivo, como isolamento, sombreamento natural, ventilação e superfícies refletivas, padrões de eficiência energética mais altos e redução dos gases de refrigeração, ou hidrofluorcarbonetos (com hidrogênio, flúor e carbono).

Caso as recomendações sejam seguidas, será possível reduzir em 3,8 bilhões de toneladas as emissões de CO2 equivalente previstas para 2050, afirma a ONU – CO2 equivalente é uma medida que compara as emissões de vários gases de efeito estufa com seu potencial de aquecimento. Como exemplo, podemos citar o gás metano, que tem 21 vezes mais potencial de aquecimento que o gás carbônico, então seu CO2 equivalente é 21.

Emergência climática e direitos humanos

O direito a um meio ambiente limpo e saudável foi incorporado à lista de direitos humanos  da ONU em 2022. O texto da resolução afirma que emergência climática e a degradação ambiental são algumas das ameaças mais urgentes ao futuro da humanidade. 

No mesmo ano, o STF (Supremo Tribunal Federal) declarou que o Acordo de Paris de 2015 – que prevê ações para que a temperatura média global não fique mais do que 1,5 ºC acima dos níveis pré-industriais –, é um tratado de direitos humanos. 

A decisão se deu na análise da ADPF 708 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 708), sobre a omissão do governo Bolsonaro em destinar recursos do Fundo Clima, caso em que a Conectas é amicus curiae. Com isso, a Corte firmou a tese de que o Poder Executivo tem o dever constitucional de alocar recursos para o clima visando proteger o meio ambiente.

“Estas resoluções podem parecer abstratas, mas são um catalisador para a ação, e dão poder às pessoas comuns para responsabilizar seus governos de uma forma muito poderosa”, disse David Boyd, o Relator Especial das Nações Unidas para os Direitos Humanos e o Meio Ambiente, em uma publicação da ONU.

Informe-se

Receba por e-mail as atualizações da Conectas