Em um voto de consenso – conhecido pelo termo per curiam –, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu, no início de abril de 2025, a omissão parcial do Estado do Rio de Janeiro na proteção dos direitos fundamentais da população que vive em favelas e periferias. O julgamento do mérito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635 — a chamada ADPF das Favelas — ocorreu após mais de cinco anos de tramitação e mobilização intensa da sociedade civil, especialmente de moradoras e de moradores de favelas no Rio de Janeiro.
A ação foi apresentada ao judicário em 2019 pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e teve participação de muitas organizações de direitos humanos, movimentos negros, coletivos de favelas e familiares de vítimas da violência policial como amici curiae (amigas da Corte). Muitas dessas organizações foram admitidas pela primeira vez em uma ação estruturante no STF.
A petição inicial sustenta que há violação massiva de direitos fundamentais em razão da omissão estrutural do poder público estadual em elaborar um plano para reduzir o índice de mortes em ações policiais.
Desde o início, portanto, no centro da disputa jurídica está o enfrentamento à letalidade das operações policiais nos territórios periféricos da Grande Rio — um problema crônico e racializado, que atinge de forma desproporcional a população negra.
A ADPF das Favelas chegou à Suprema Corte em meio ao crescimento vertiginoso da letalidade policial no estado fluminense. Só naquele ano, 1.814 pessoas foram mortas por intervenção das polícias, segundo o Instituto de Segurança Pública. A ação buscava responsabilizar o poder público por essas mortes, regulamentar as operações policiais, garantir transparência nos dados, exigir o uso obrigatório de câmeras corporais e, sobretudo, preservar vidas nas favelas. Também solicitava a proibição do uso de helicópteros como plataformas de tiro, a limitação de operações próximas a escolas, hospitais e creches, e a exigência de perícias técnicas independentes em mortes provocadas por agentes do Estado.
Apesar de o número de mortes já ser alarmante por si, alguns casos ganharam repercussão nacional, como o de Ágatha Vitória Sales Félix, uma menina de oito anos, morta em setembro de 2019 no Complexo do Alemão, Rio de Janeiro, e de João Pedro Matos Pinto, um adolescente de 14 anos, morto em maio de 2020 durante uma operação conjunta das polícias Civil e Federal no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo.
Em 2020, as populações das favelas lutavam para sobreviver não apenas ao vírus causador da Covid-19, mas também aos tiros que atingiam moradoras e moradores desses territórios. Nesse contexto, sob a relatoria do ministro Edson Fachin, o STF emitiu medidas cautelares importantes, especialmente durante a pandemia, como a restrição de operações policiais, a exigência de comunicação prévia ao Ministério Público e a adoção de tecnologias de controle, como GPS e câmeras.
Segundo especialistas em segurança pública e direitos humanos, essas medidas podem ter contribuído para a redução da letalidade na região: entre 2019 e 2023, o número de mortes decorrentes de ações policiais caiu 52% no estado, passando de 1.814 para 871, aponta o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
No julgamento de mérito, contudo, o Supremo Tribunal Federal adotou uma posição intermediária. De um lado, determinou que o governo do Rio de Janeiro revise, em até 180 dias, o plano de redução da letalidade policial e de monitoramento das ações das forças de segurança, estabelecendo indicadores específicos e desagregados sobre uso excessivo da força e mortes de civis. Estabeleceu também a obrigatoriedade do uso de câmeras em fardas e viaturas, além da divulgação pública de dados sobre operações e vítimas. De outro lado, a Corte deixou de acolher alguns pedidos centrais da ação, como a proibição do uso de helicópteros como plataformas de tiro — prática associada a operações mais letais nas favelas —, a exigência de perícias independentes e a vedação de operações em áreas próximas a escolas e unidades de saúde. Nesses casos, o STF limitou-se a determinar que o uso da força seja proporcional e que a ocupação de equipamentos públicos esteja fundamentada em evidências concretas de uso criminoso.
O voto conjunto dos ministros afirma que segurança pública e direitos humanos não são incompatíveis. “Esta Corte reitera que não há, nem pode haver, antagonismo entre a proteção de direitos humanos e fundamentais e a construção de políticas de segurança pública compatíveis com a Constituição”, escreveram. Apesar da reafirmação dos princípios constitucionais, algumas partes da decisão preocupam e exigirão que a sociedade civil siga mobilizada para acompanhar os próximos passos a serem dados pelo governo estadual.
No Complexo da Maré, as estatísticas mostram a dimensão do problema. Em 2024, a taxa de mortes por intervenção policial foi de 16 por 100 mil habitantes, segundo a Redes da Maré — quase quatro vezes a média estadual (4,3) e mais de cinco vezes a nacional (2,9). Em 2019, essa taxa havia sido ainda mais alta, com 30 mortes (24 por 100 mil). Os dados indicam que, apesar da queda, a violência letal nas favelas continua acima da média e está longe de ser resolvida.
O uso de helicópteros em operações, por exemplo, esteve presente em apenas 8% das ações entre 2019 e 2024, mas respondeu por 65% das mortes ocorridas. Em 2024, duas operações com helicópteros resultaram em nove das 20 mortes registradas no ano. Também é alto o número de violações durante as ações: só em 2024, a Redes da Maré documentou 93 invasões domiciliares, muitas delas com relatos de violência, ameaças e roubo de bens.
A decisão do STF também determinou que o governo estadual elabore um “plano de reocupação territorial” em áreas sob domínio de ditas organizações criminosas e milícias — medida que acendeu alertas entre especialistas e movimentos sociais, por reforçar a narrativa de ocupação em detrimento da redução da violência.
Para Gabriel Sampaio, diretor de Litigância e Incidência da Conectas, a decisão do Supremo reconhece uma realidade há muito denunciada por organizações e movimentos de base. “O STF admite a omissão do Estado e a persistência da letalidade policial. Mas a ação não se encerra com essa decisão. O acompanhamento da implementação será um dever contínuo da sociedade civil”, afirma. Ele destaca que foi justamente a força da mobilização popular — de movimentos sociais, coletivos de favelas e organizações de direitos humanos — que levou o caso até a mais alta Corte do país.
A decisão do STF representa, portanto, um marco no reconhecimento da responsabilidade do Estado, mas deixa brechas que precisam ser monitoradas. “O futuro da ADPF das Favelas dependerá da capacidade da sociedade civil de acompanhar e pressionar pela implementação das medidas determinadas — e de continuar afirmando que o direito à segurança pública deve incluir, antes de tudo, o direito à vida”, afirma Carolina Diniz, coordenadora do programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas.
A participação da sociedade civil, especialmente dos movimentos de favelas e das mães e familiares de vítimas, foi um dos elementos mais relevantes do processo. Em diferentes momentos, as cadeiras do Supremo Tribunal foram ocupadas por pessoas que vivenciam diariamente o horror da violência
Em artigo publicado na Folha de S.Paulo, Gabriel Sampaio e Camila Asano, da Conectas Direitos Humanos, sintetizam o que está em jogo com a ADPF ao afirmarem que “o Estado de Direito deve subir o morro” — ou seja, a legalidade democrática precisa alcançar os territórios sistematicamente negligenciados. A frase ecoa o sentido profundo da ação: garantir que as favelas não sejam espaços de exceção, mas territórios onde direitos básicos sejam respeitados e protegidos.