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O cenário do uso medicinal da maconha no Brasil

Congresso Nacional analisa projeto visto como “porcaria” por Bolsonaro; governo federal adota política proibicionista e prejudica avanços sociais e de saúde pública

Foto: Kimzy Nanney/Unsplash Foto: Kimzy Nanney/Unsplash

Em uma votação acirrada, a Câmara dos Deputados aprovou, no âmbito de uma comissão especial no início de junho, o Projeto de Lei 399/15 que legaliza a fabricação e comercialização de produtos à base de cannabis sativa, a maconha, para fins médicos, veterinários e científicos. Foram 17 votos a favor e 17 contra, cabendo ao relator, portanto, o desempate.

Como tramita em caráter conclusivo, o texto poderia ser enviado diretamente ao Senado, sem passar pelo plenário da Câmara, mas isso não deve ocorrer por conta de deputados contrários ao projeto que apresentarão recursos para levar a pauta ao plenário na expectativa de que a maioria dos deputados vote contra o projeto.

Resistência no governo federal

A resistência ao tema não está somente no Congresso Nacional. O governo federal, responsável por sancionar ou vetar o PL, caso seja aprovado pelos parlamentares, já demonstrou em diferentes momentos o descaso com as possibilidades medicinais da maconha. O presidente Jair Bolsonaro chamou o projeto de “porcaria” e indicou que deve vetá-lo. Apesar desta posição do governo, 78% dos brasileiros são favoráveis aos medicamentos derivados da maconha, de acordo com uma pesquisa da Exame/Ideia, que ouviu 1.243 pessoas em maio de 2021.

No cenário internacional, o governo brasileiro, ao lado da Rússia e Cuba, votou contra uma resolução da Comissão de Narcóticos da ONU que, em dezembro de 2020, deixou de considerar a maconha um entorpecente perigoso e reconheceu suas capacidades terapêuticas. Enquanto apenas os três países mencionados votaram contra, 27 foram favoráveis à medida que segue recomendação da OMS (Organização Mundial da Saúde). O Brasil justificou seu voto dizendo que adota uma “política de tolerância zero com as drogas” e que o uso médico pode expandir o uso recreativo.

Para Henrique Apolinario, advogado do Programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas, “proibir o uso terapêutico de maconha, já comprovado cientificamente, fere o direito à saúde de inúmeras famílias, sobretudo negras e pobres, que não tem os meios necessários para importar a cannabis, enquanto que a recusa de qualquer possibilidade de pesquisa limita o trabalho dos cientistas brasileiros, que ficarão atrasados em relação a seus pares na maioria dos países”.

Aprovação na Anvisa

Em 2016, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) aprovou o primeiro medicamento à base de maconha. Trata-se de um produto indicado para o tratamento de espasmos causados pela esclerose múltipla.  Em março de 2020, a Anvisa também concedeu a primeira autorização para a comercialização de um produto com quantidade de THC de até 0,2%, inaugurando a categoria “produto à base de cannabis” na agência. As pessoas só podem comprá-lo pronto e com indicação médica, rejeitando a proposta de regulamentação do plantio de maconha para os usos medicinais e científicos. 

“A Anvisa vem evoluindo seu posicionamento sobre o uso medicinal de cannabis no Brasil, ainda limitando o consumo a produtos industrializados, que na prática impede que famílias de baixa renda tenham acesso ao produto. A agência sofreu pressão direta do governo Bolsonaro ao discutir a pauta, inclusive tendo um militar sido apontado como seu diretor”, diz Apolinario.

 

Acesso ainda é restrito

Apesar de possível, o acesso a estes medicamentos é bastante restrito e geralmente associado a uma estratégia jurídica para obter autorização para manusear a planta ou a recursos financeiros para importação. Sendo assim, pesquisadores, pessoas físicas e associações buscam HC (habeas corpus) para realizar estudos e produzir medicamentos.

Em fevereiro deste ano, a Cultive — Associação de Cannabis e Saúde conseguiu o primeiro HC coletivo na esfera criminal para trabalhar com a planta. Antes, todos os HCs concedidos eram na esfera cível.

A decisão judicial afirma que “a efetivação do princípio da dignidade, bem como dos direitos à vida e à saúde, os quais devem prevalecer sobre a proibição de se cultivar a planta de onde se extrai a substância utilizada especificamente para o tratamento dos pacientes em um contexto de necessidade, adequação e proporcionalidade.” A lei 11.343/2006 — que dá à União o direito de permitir o plantio para uso exclusivamente médico e científico — está na base desta decisão.

“Depender de decisões judiciais frágeis é uma situação cruel a que são submetidos milhares de brasileiros que encontraram na cannabis um remédio, muitas vezes para doenças gravíssimas. Enquanto alguns políticos tentam atrasar o debate com argumentos atrasados sobre os malefícios da cannabis, o Brasil anda na contramão do mundo e pessoas seguem enfrentando persecução policial pelo uso de drogas”, avalia Apolinário.

 


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