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26/05/2017

Na direção errada

Para John Knox, relator da ONU sobre meio ambiente e direitos humanos, as flexibilizações de normas ambientais em curso no Brasil podem gerar retrocessos



Na esteira de fortes e preocupantes ofensivas de setores ruralistas para flexibilizar a legislação ambiental do Brasil, enquanto o país figura no topo do ranking de mortes de defensores ambientais, o relator especial da ONU para meio ambiente e direitos humanos, John Knox, esteve no Brasil para uma visita não-oficial, em que participou de conferências na USP e no Senado Federal.

Na última sexta-feira (19/5), o relator da ONU participou do seminário “Meio ambiente e direitos de povos tradicionais: efeitos da flexibilização das leis ambientais”, organizado pela Conectas, ISA (Instituto Socioambiental) e a SGA/USP (Superintendência de Gestão Ambiental da Universidade de São Paulo). Assista à íntegra do evento aqui.

Para o relator, os esforços vistos no Brasil no sentido de restringir os direitos de povos indígenas, retardar demarcações de terra e facilitar a obtenção de licenças ambientais são passos na direção errada. Knox também apontou grande preocupação com a impunidade relacionada ao grande número de assassinatos de defensores ambientais no país.

Confira a entrevista realizada pela Conectas com o relator a respeito de seu mandato na ONU e dos rumos do Brasil em matéria de proteção meio ambiente e direitos humanos:

 

Conectas | Quais são as principais questões em que você tem focado? Para os relatórios futuros, de que temas você irá tratar?

John Knox | Fui a primeira pessoa nomeada para a posição de relator sobre direitos humanos e meio ambiente e, portanto, para o meu primeiro mandato de 3 anos, o Conselho de Direitos Humanos da ONU pediu que eu me concentrasse em esclarecer essa relação e as obrigações que os Estados têm de proteger o meio ambiente para realizar os direitos humanos. Em 2015, o Conselho renovou meu mandato por mais três anos e mudou meu título de especialista independente para relator especial, e isso significa que os Estados-membros acreditavam que as normas, as obrigações já estão suficientemente claras. Então eu identifico boas práticas, eu vou em missões em países e recebo comunicações. No meu último ano, vou apresentar princípios orientadores sobre direitos humanos e meio ambiente. Tentamos resumir essas obrigações e o trabalho que fiz ao longo dos últimos 6 anos de forma a tornar mais fácil para as pessoas entenderem exatamente quais são as obrigações de direitos humanos.

 

Vimos alguns casos específicos que demonstram muito claramente a estreita relação entre os direitos humanos e o meio ambiente, como o desastre do colapso da barragem em Mariana no Brasil, em 2015. Qual é o reconhecimento atual, especialmente dos órgãos de direitos humanos, desta relação entre direitos humanos e meio ambiente? Como os espaços de negociação ambiental como a COP também estão incorporando preocupações de direitos humanos em seus marcos?

JK | Apenas nos cinco anos que tenho trabalhado neste mandato, tenho visto um enorme aumento na conscientização da relação entre os direitos humanos e o meio ambiente, tanto da comunidade de direitos humanos quanto da comunidade ambientalista. O sistema interamericano, por exemplo, emitiu um grande número de opiniões sobre os direitos dos povos indígenas em relação aos danos ambientais. Muitos outros tribunais criaram uma jurisprudência semelhante e, de fato, é nisso que eu me baseio quando descrevo as obrigações que os Estados têm em relação a leis de direitos humanos com a perspectiva do meio ambiente. No lado ambiental, eu acho que há uma consciência crescente também. Muitas vezes, porém, essas discussões sobre o contexto ambiental não usam o termo “direitos humanos”, ou seja, podem falar de direitos à informação ou participação, mas nem sempre estão cientes de que há jurisprudência sobre direitos humanos, embora isso seja relevante. Então, parte do que tentei fazer em meu trabalho é fortalecer esses tipos de relacionamentos e esse entendimento de ambos os lados.

 

O que você espera do Brasil, um país que tem demonstrado liderança histórica nas negociações de tratados e declarações ambientais — sediamos a Conferência do Rio e a Rio 20 — em termos de atitude internacional e doméstica?

JK | O que cada país faz afeta não só o seu próprio povo, porque no contexto ambiental todos nós dependemos do meio ambiente global. Alguns países têm maior potencial de afetar outros e o Brasil tem um papel particularmente importante na proteção do meio ambiente, por causa de seu alto grau de diversidade biológica e por causa de sua floresta. Eu acho que é muito importante que o Brasil não ande para trás na perspectiva da proteção do meio ambiente. Um dos princípios fundamentais em relação aos direitos humanos é o  não-retrocesso. Quando você atinge um certo nível de proteção dos direitos humanos, enquanto você ainda tem o status de em desenvolvimento, pode ser difícil avançar a um ritmo acelerado, mas você deve sempre resistir muito fortemente a esforços de ir para trás. Eu acho que os esforços para restringir os direitos dos povos indígenas, para retardar a demarcação de seus territórios, para facilitar a obtenção de licenças ambientais para a agricultura e outros projetos de desenvolvimento, tudo isso seriam passos na direção errada.

 

Os países em desenvolvimento costumam argumentar que as salvaguardas socioambientais das instituições de financiamento atrasam ou aumentam o custo dos projetos. Essa é inclusive uma das razões para a criação do Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS. Como você enxerga isso?

JK | Bem, eu acho que é muito importante distinguir entre salvaguardas e condicionalidade. Eu acho que é uma coisa um financiador dizer “só vamos dar-lhe dinheiro para este projeto se você fizer outras mudanças em seu sistema doméstico que não têm nada a ver com este projeto específico”. Isso eu acredito que seja condicionalidade e entendo completamente porque os países em desenvolvimento se opõem a isso. No entanto, não creio que seja correto pensar o mesmo de uma salvaguarda que diz “antes de prosseguir com este projeto, você precisa ter certeza de que você fez uma avaliação de impacto ambiental dos efeitos do projeto sobre os direitos humanos das pessoas que serão mais afetadas”. Isso é simplesmente garantir que o projeto em si não está violando as normas de direitos humanos e é perfeitamente apropriado para todos os envolvidos. As salvaguardas tornam os projetos mais robustos, mais sustentáveis, evitam a reação das pessoas que vivem mais próximas ao projeto, além de garantir que o próprio projeto faça mais sentido nos aspectos ambiental e econômico. Sim, o procedimento pode ser um pouco mais demorado, mas no final do dia você poderá ter certeza de que o projeto é realmente sustentável e que você não terá problemas com ele mais tarde.

 

A América Latina é o lugar mais perigoso do mundo para os defensores ambientais, e infelizmente o Brasil é o número um deste ranking. O que pode ser feito por todos os atores envolvidos (governo, empresas e sociedade civil) para reverter esse cenário?

JK | Eu acho que em países, infelizmente como o Brasil, que têm um grande número de mortes de ambientalistas e de defensores dos direitos humanos, um fator importante para esse problema é as pessoas acreditarem que podem cometer esses crimes sem serem punidos por eles. A coisa mais importante que os governos têm a fazer é responder rapidamente às ameaças de morte, violência e outros tipos de sinais de alerta. E se um assassinato ocorrer os governos têm que investigar e prender as pessoas envolvidas. Muitas vezes os assassinos estão agindo em nome de algum superior, então os governos têm que subir a cadeia para prender e julgar essas pessoas. Para as empresas eu acho que é muito importante que elas tenham seu próprio senso de responsabilidade. As empresas têm de condenar e se opor a esses atos o mais fortemente que puderem. As organizações da sociedade civil muitas vezes estão sob ameaça direta e, obviamente, não é sua responsabilidade tentar se proteger, mas há outras coisas que as organizações da sociedade civil podem fazer, como trabalhar em conjunto para divulgar casos, levar assistência jurídica a grupos locais e, em geral, treinar as pessoas que estão na linha da frente da luta pela proteção do meio ambiente.

 

Confira as fotos do seminário “Meio ambiente e direitos de povos tradicionais: efeitos da flexibilização das leis ambientais”:

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