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Justiça Militar não pode investigar casos de desaparecimento forçado, afirma relatório da ONU sobre Brasil

Em tom crítico, documento das Nações Unidas diz que governo deve tomar medidas urgentes para se adequar a tratado internacional sobre desaparecimento forçado

Dona Débora, leader of the Mothers of May Movement, in an interview with Conectas on the Crimes of May. Foto: Divulgação/Movimento Mães de Maio Dona Débora, leader of the Mothers of May Movement, in an interview with Conectas on the Crimes of May. Foto: Divulgação/Movimento Mães de Maio

Em relatório divulgado nesta quarta-feira (29), a ONU demonstrou preocupação com a falta de medidas do governo brasileiro em prevenir e investigar o desaparecimento forçado de pessoas. O documento afirma, entre outras coisas, que as investigações de homicídios e desaparecimentos cometidos por agentes de segurança pública e militares devem ser conduzidas por tribunais do júri e Justiça Comum, não pela Justiça Militar, como geralmente ocorre no país.

O relatório, que adota um atípico tom crítico ao Brasil, é resultado de uma série de discussões ocorridas no início deste mês no âmbito do Comitê sobre Desaparecimentos Forçados das Nações Unidas, órgão que monitora a implementação da Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, da qual o Brasil é signatário desde 2007. O comitê ouviu integrantes da sociedade civil e do governo brasileiro.  

Imparcialidade da Justiça Militar

Ainda sobre as investigações em tribunais militares, os peritos afirmam estar preocupados com uma decisão do Tribunal de Justiça da Bahia que decidiu que a jurisdição militar era competente no caso do desaparecimento forçado de Davi Fiuza, em 2014. “O Comitê reafirma sua posição de que, como questão de princípio, todos os casos de desaparecimento forçado devem ser tratados somente pelas autoridades civis”, diz o relatório. 

“A ONU deixa claro que o Brasil fere princípios básicos da justiça ao permitir que integrantes militares julguem seus pares investigados por cometer crimes dolosos”, diz Carolina Diniz, assessora do programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas.

Diniz lembra que esta não é a primeira vez que um organismo internacional adverte o Brasil da necessidade de estabelecer mecanismos independentes de investigação. Em fevereiro de 2017, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, da OEA (Organização dos Estados Americano), na sentença em que condenou o país pelos crimes na Favela Nova Brasília, demandou que em casos de tortura, homicídio ou outros crimes praticados por agentes do estado, seja garantida a perícia, investigação e julgamento por órgão alheio ao que pertença o possível acusado, ou acusados.  

Ação avalia papel da Justiça Militar 

No STF (Supremo Tribunal Federal), a ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 5901 também coloca em discussão o papel dos tribunais da Justiça Militar. Em pedido de amicus curiae na ação, a Conectas e a Clínica Internacional de Direitos Humanos Allard K. Lowenstein, vinculada à Escola de Direito de Yale, afirmam que a falta de imparcialidade e independência “impede o acesso à justiça e facilita a impunidade em caso de violações dos direitos humanos”. Ainda de acordo com as organizações, “os Estados que não limitam a jurisdição militar a crimes de natureza estritamente militar, frequentemente, toleram ou encobrem violações de direitos humanos cometidas por forças militares”.

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Preocupação com negros e Lei da Anistia 

O relatório da ONU pede ainda que o Brasil “garanta que todos os casos de desaparecimento forçado sejam investigados prontamente, de forma completa e imparcial, mesmo que não tenha havido uma queixa criminal formal”. Em outro ponto, o documento demonstra preocupação com informações sobre o desaparecimento forçado de pessoas negras e moradoras de periferias.

Entre os casos de desaparecimento forçado mais emblemáticos, estão os Crimes de Maio, ocorridos há 15 anos em São Paulo. Além da morte de centenas de pessoas, o episódio é marcado pelo desaparecimento de pessoas. As vítimas foram, especialmente, jovens, negros e moradores de bairros periféricos. 

 Em maio de 2021, a Defensoria Pública de São Paulo, o Movimento Mães de Maio e a Conectas enviaram uma petição à CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) para pedir que seja reconhecida a responsabilidade internacional do Estado brasileiro pela violação da Convenção Americana de Direitos Humanos e da Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, e que recomende ao Brasil que investigue e responsabilize os agentes envolvidos nas violações de direitos humanos cometidas nestes episódios.

Os casos de desaparecimento forçado cometidos durante a ditadura militar (1964-1985) também são considerados pelo relatório. Segundo o comitê, a Lei da Anistia não pode impedir investigação de crimes ocorridos durante a ruptura democrática no país, já que o crime de desaparecimento deve ser considerado um crime continuado. Nesse sentido, a Comissão Nacional da Verdade, criada em 2011 pelo governo federal, é citada pela ONU como um aspecto positivo. 


Veja cinco pontos importantes do relatório: 

1 – A não tipificação do crime de desaparecimento no Brasil é um dos gargalos para a plena implementação da Convenção da ONU que trata do tema. 

2 –  Brasil deve elaborar estatísticas detalhadas sobre desaparecimento de pessoas. 

3 – Justiça Militar não tem competência para investigar e julgar casos de desaparecimento forçado em que agentes de segurança são suspeitos. 

4 –  Convenção da ONU é aplicável para crimes cometidos durante a ditadura militar, que devem ser investigados. 

5 – Reconhecimento de que o crime de desaparecimento forçado segue ocorrendo mesmo durante a democracia no país, especialmente contra a população negra.


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