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18/05/2020

Entrevista: O panorama da exploração sexual infantil no Brasil

Luciana Temer, diretora da ONG Liberta, fala sobre a invisibilidade deste crime e o papel da escola como espaço de formação e denúncia

Silhouette of a girl with extended hand on which is written the word “no”. Silhouette of a girl with extended hand on which is written the word “no”.

No Brasil, o 18 de maio é lembrado como o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes — uma data  para trazer visibilidade ao tema. De acordo com o Ministério da Saúde, entre 2011 e 2017, foram registrados 141.105 casos. Dentre as vítimas, 74,2% são meninas e 71,2% dos casos ocorrem dentro de casa.

Em entrevista para a Conectas, Luciana Temer, diretora-presidente da ONG Liberta e professora na faculdade de direito da PUC-SP e da Uninove, explica os fatores sociais que contribuem para a continuidade desta prática e os mitos criados em torno do perfil dos agressores

Para a ex-delegada de defesa da mulher, que também teve passagens pela Secretária da Juventude, Esporte e Lazer do Estado de São Paulo (2001 a 2002) e pela Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social da capital paulista (2013 – 2016), a escola deve ter tem um papel fundamental na discussão sobre sexualidade e gênero entre crianças e adolescentes, e deve ser um espaço seguro para denúncias.

Confira a entrevista:

 

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Luciana Temer, diretora presidente da ONG Liberta, que atua no combate à exploração sexual infantil.

Conectas: Qual é o panorama da exploração sexual infantil no Brasil? Quais fatores contribuem para a prática deste crime?

Luciana Temer: O Brasil é o segundo país no mundo com mais casos de exploração sexual infantil e existem diversos fatores sociais que contribuem para a prática deste crime. Em nossa sociedade, quando vemos uma menina de roupa curta, por exemplo, as pessoas deixam de ver aquela menina como vítima e passam a julgar a violência como algo merecido. A figura da vítima some. Isso acontece porque vivemos em uma cultura machista, que culpabiliza a mulher pela violência. A sociedade não olha com seriedade para este problema e não age porque não se importa. Em pesquisa que realizamos com o DataFolha, em 2018, um dado mostrou que 72% das pessoas que testemunharam exploração de adolescentes de 16 anos não denunciaram o crime. Existe, portanto, um fator cultural. 

 

Conectas: Qual é o perfil da vítima, na maior parte dos casos? E quem são os agressores?

Luciana Temer: Um dos nossos esforços é desconstruir estereótipos. Quando se fala do agressor, estamos falando de todas as classes sociais. Tem empresários, políticos, pessoas de várias classes sociais. Não é verdade que a exploração sexual infantil é coisa restrita ao Norte e Nordeste. Isso é uma questão endêmica. Eu costumo dizer que existe em todas as regiões, só muda o “preço” da menina e o tipo de pessoa que “compra”. A cultura do abusador está conectada à cultura machista da nossa sociedade. Já a vítima, normalmente, tem um perfil de maior vulnerabilidade social. Ou seja, enquanto você tem um conjunto imenso de agressores de todas as classes sociais, as vítimas, na maior parte dos casos, são meninas pobres e vulneráveis.

Por outro lado, é importante fazer um outro alerta. Existe uma modalidade de exploração sexual infantil que quebra a lógica da menina de maior vulnerabilidade social: é chamado de “sex extortion”, ou seja “extorsão sexual”. Acontece quando meninas caem em armadilhas na internet de pessoas que lidam com pornografia infantil. Elas enviam uma foto de biquíni, então o explorador ameaça divulgar a imagem se ela não mandar uma foto nua. É a violência sexual infantil atuando pelos meios digitais. 

Conectas: Qual a diferença entre abuso e exploração?

Luciana Temer: Existem dois tipos penais que ajudam a definir estes conceitos. O Código Penal fala em estupro de vulnerável, ou seja, ter relação sexual com crianças de até 14 anos de idade pressupõe estupro. Existe também o crime de exploração sexual, que é quando alguém paga para ter relação sexual com meninas ou meninos de 14 a 18 anos. Neste caso, o pagamento não precisa ser apenas em dinheiro, mas também em comida, carona, celular ou qualquer tipo de troca para obter o sexo. Conceitualmente, não podemos falar em prostituição infantil porque criança não se prostitui.

Conectas: Por que estes crimes são considerados “invisíveis”?

Luciana Temer: Sou o exemplo vivo desta invisibilidade. Já fui secretária de Assistência e Desenvolvimento Social da gestão do [então prefeito Fernando] Haddad; por cinco anos fui delegada da mulher, na polícia de Osasco; trabalhei na Secretaria da Juventude do governo Alckmin… apesar disso, nunca tinha me dado conta da dimensão e das consequência de a gente prestar pouca atenção a esta questão. Somente quando fui convidada pelo Instituto Liberta para ajudar no enfrentamento à exploração sexual infantil, cerca de quatro anos atrás, é que me dei conta do pouco que eu sabia sobre o tema. Uma coisa é saber que este tipo de crime existe, outra coisa é conseguir ranquear este crime e entender a sua real dimensão. Enquanto falar sobre isso for desconfortável para a sociedade, enquanto isso não for um problema na vida das pessoas, a busca por soluções também não será uma questão. A luta é para que este crime se torne um assunto. 

Conectas: Existe relação entre pornografia e violência sexual? 

Luciana Temer: Precisamos pensar na relação da sociedade com a pornografia. Hoje, a indústria pornografica é do tamanho da indústria do álcool e do tabaco e não tem regulamentação. Essa pornografia é muito violenta e coloca a mulher numa posição de submissão. No mundo, um dos termos mais procurados na internet é “teen porn”, ou seja sexo adolescente. Temos uma geração inteira sendo formada pela pornografia. Antigamente,  quando um menino tinha curiosidade sexual, procurava a [revista] Playboy do pai. Hoje, essa mesma criança digita no Google “mulher pelada” ou “sexo” e vai se deparar com todos os sites pornográficos gratuitos e abertos. Quando crescer, esse menino vai entender sua relação com a namorada a partir desses vídeos. Nas escolas, os meninos estão começando a repetir o que vêem nos vídeos. Se você abrir sites pornográficos, vai encontrar filmes com títulos absurdos como “pai trepa com filha rabuda”, “tio arromba sobrinha gostosa”. Ou seja, há uma incitação a esta prática. Algumas pessoas podem dizer que, muitas vezes, são atores ou que não são pai e filha de verdade. Isso não importa. O importante aqui é que não é aceitável que qualquer pessoa abra um site pornográfico e tenha isso disponível. Estou, portanto, falando de uma mudança de cultura. Não podemos ter espaços de incentivo a esta cultura, ainda mais quando falamos de uma indústria poderosíssima como esta. 

Conectas: Qual a importância da educação sexual nas escolas para combater a exploração sexual infantil e como o Escola Sem Partido afeta essa pauta?

Luciana Temer: Temos apostado muito na escola. Se construirmos a escola como um espaço de formação da cidadania, teremos um espaço privilegiado de discussão de sexualidade, de gênero, de escolha de caminhos. Qualquer lei que venha a cercear a possibilidade da livre discussão [como pregam as discussões ao redor do movimento Escola sem Partido] é altamente prejudicial. Até porque, segundo o Ministério da Saúde, mais de 70% das violências sexuais acontecem dentro de casa. É necessário um espaço seguro onde a criança possa pedir socorro. Na nossa concepção, a escola é este espaço. As vezes é preciso um gatilho para a criança falar. A partir daí, a criança pode encontrar um espaço de denúncia.

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