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16/07/2021

Entenda os principais problemas da Justiça Militar no Brasil

Agentes oficiais das Forças Armadas podem julgar os próprios colegas que atentam contra a vida de civis? A ADI 5901 questiona essa competência

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

As primeiras notícias davam conta de 80 tiros, mas a perícia constatou que 257 balas vieram na direção do carro em que estava o músico Evaldo Rosa dos Santos. Dentro do veículo, além do músico, estavam seu sogro, sua esposa, seu filho, com sete anos, e uma amiga. Evaldo morreu no local. Onze dias depois do fuzilamento, o catador de lixo reciclável Luciano Macedo, que foi atingido ao tentar ajudar a família, também perdeu a vida. 

Os disparos foram feitos por militares do Exército, num domingo, dia 7 de abril de 2019. Os oficiais faziam um patrulhamento regular no perímetro de segurança da Vila Militar, zona norte do Rio de Janeiro. Há mais de dois anos na Justiça Militar, o crime continua sem julgamento. 

Até 2017, denúncias contra militares eram investigadas e julgadas tanto pela Justiça Militar quanto pela Justiça Comum. Mas, naquele ano, o então presidente Michel Temer sancionou a Lei 13.491/2017, que alterou dispositivos do Código Militar e, com isso, transferiu somente para a Justiça Militar a competência em investigar e julgar integrantes das  Forças Armadas que cometem crimes dolosos contra a vida de civis.

A Justiça Militar é composta por duas instâncias: os Conselhos de Justiça Militar, tribunais inferiores formados por quatro militares da ativa e um juiz civil; e o Superior Tribunal Militar, composto por 15 ministros, sendo a maioria militares ativos. 

Em fevereiro de 2021, pouco antes das mortes de Evaldo e Luciano completarem dois anos, a CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) declarou, em um relatório, que o “caso reitera as dúvidas sobre a capacidade da justiça militar de apreciar, com isenção, a conduta” de seus pares.  

 Ação no STF questiona competência da Justiça Militar 

A burla à competência do Tribunal do Júri para julgar homicídios dolosos praticados por militares durante operações de GLO (Garantia da Lei e da Ordem), por exemplo, retira da sociedade civil importante instrumento de controle da atividade militar. “No âmbito da Justiça Militar, não há estruturas de controle externo, não há exercício de controle civil, nem de controle social sobre as instâncias investigatórias”, diz Gabriel Sampaio, coordenador do programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas. “As situações de abuso devem ser apuradas por instâncias civis e julgadas, no caso de crimes dolosos contra a vida, pelo Tribunal do Júri”.  

Além disso, “estas alterações trazidas pela Lei 13.491/2017 geram um conflito entre os princípios básicos da justiça e as obrigações do Brasil diante do direito internacional que autorizam apenas a aplicação restrita da competência da justiça militar e voltada para crimes funcionais. “Não se deve criar diferenças de tratamento para militares das forças armadas em relação a policiais e nem mesmo em relação à população civil. Os crimes praticados devem ser apurados e julgados pelas instâncias civis”, completa Sampaio. 

Na prática — além de afrontar a Constituição Federal —, a lei pode beneficiar o corporativismo e criar uma espécie de salvo-conduto para que os militares não sejam responsabilizados pelos excessos que possam cometer.  Diante disso, a ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 5901, ajuizada pelo PSOL no STF (Supremo Tribunal Federal) questiona esta competência atribuída aos tribunais da Justiça Militar. 

Em pedido de amicus curiae na ADI 5901, a Conectas e a Clínica Internacional de Direitos Humanos Allard K. Lowenstein, vinculada à Escola de Direito de Yale, afirmam que a falta de imparcialidade e independência “impede o acesso à justiça e facilita a impunidade em caso de violações dos direitos humanos”. Ainda de acordo com as organizações, “os Estados que não limitam a jurisdição militar a crimes de natureza estritamente militar, frequentemente, toleram ou encobrem violações de direitos humanos cometidas por forças militares”.

Os especialistas Masha Lisitsyna, advogada de direitos humanos especializada em litígios internacionais, e Eugene R. Fidell, professor adjunto da New York University Law School e pesquisador sênior da Escola de Direito de Yale, também colaboraram na construção do documento que sustenta o pedido de amicus curiae. 

A ADI 5901 busca evitar que a Justiça Militar se torne uma entidade praticamente à parte da sociedade, com dinâmicas e regras estranhas à população e outras instituições jurídicas civis. Tornar mais transparente os meios pelos quais ela opera é uma forma de garantir que os direitos humanos sejam incluídos no debate e respeitados.

 

 

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