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Constituinte chilena: como tecer uma democracia

Em entrevista para Conectas, Cynthia Imaña, diretora do coletivo Memorarte: Arpilleras Urbanas avalia os desafios e expectativas para a redação de uma nova Constituição

A historiadora e professora chilena Cynthia Imaña é diretora do coletivo Memorarte: Arpilleras Urbana (foto: acervo pessoal/divulgação) A historiadora e professora chilena Cynthia Imaña é diretora do coletivo Memorarte: Arpilleras Urbana (foto: acervo pessoal/divulgação)

Um novo capítulo da história chilena está sendo escrito neste momento. Após fortes protestos que eclodiram em todo o país em 2019, ficou escancarada a insatisfação da população com o modelo econômico e social determinado pela Constituição de 1980, redigida em plena ditadura Pinochet.

Desse movimento, o resultado mais emblemático foi a convocação de eleições para formar uma Assembleia Constituinte com paridade de gênero em seus assentos e que contemple representantes dos povos indígenas. Sob a presidência de uma mulher Mapuche, a Assembleia Constituinte está encarregada de estabelecer um novo acordo nacional, que atenda aos anseios da população que há dois anos saiu às ruas pedindo um Estado de bem-estar social e mais igualdade.

Para analisar estes acontecimentos, Conectas conversou com a historiadora e professora chilena Cynthia Imaña. Ela é diretora do coletivo Memorarte: Arpilleras Urbanas, que utiliza técnicas de bordado em retalhos coloridos para produzir as “arpilleras” – peças artísticas historicamente utilizadas por coletivos de mulheres para denunciar a violência e opressão da ditadura chilena.

Nesta entrevista, Imaña destaca a importância da luta coletiva e popular para buscar mudanças na política, bem como o papel das mulheres no processo que resultou na nova Assembleia Constituinte. “Se forem abertos espaços para as mulheres na vida pública, acordos e soluções para conflitos coletivos serão facilitados”, comenta.

Leia a entrevista a seguir:

Conectas – Como você avalia o resultado da eleição para a Assembleia Constituinte chilena?

Cynthia Imaña – A eleição dos 155 parlamentares que vão redigir a nova Constituição do Chile é um reflexo fiel dos anseios de meus compatriotas por um país melhor, mais digno, solidário e igualitário. A maioria dos eleitos têm origem em movimentos sociais que se organizaram durante os protestos de outubro de 2019. A chamada “Lista do Povo”, composta por moradores, cidadãos e cidadãs independentes sem filiação partidária foi a que contribuiu com grande número de parlamentares, bem como líderes ambientais, regionais e representantes de nossos povos indígenas. No entanto, acho que o mais importante resultado desta eleição é a igualdade [de gênero]. Pela primeira vez na história, uma Constituição será escrita pela mesma quantidade de homens e mulheres, um direito conquistado nas ruas pelo movimento feminista chileno. Em resumo, o resultado da eleição constituinte garante que será escrito por um grupo de pessoas que interagem horizontalmente, sem influência das elites dominantes ou partidos políticos e que trabalharão pelo bem comum do país.

Conectas – O que representa a aprovação de uma nova Constituição para a história atual do Chile?

Cynthia Imaña – Significa romper com um continuísmo que nos dominou por mais de 30 anos após a aprovação da Constituição de 1980, feita durante a ditadura [a atual constituição chilena só teve vigência plena em 1990]. Apesar de recuperar a democracia em 1990, a ditadura instalou um modelo neoliberal que impede a mobilidade social, mantém os privilégios da classe dominante e aumenta a desigualdade da população. Todos os serviços públicos foram privatizados e são administrados como empresas privadas, sem considerar o objetivo social que devem cumprir. Esse sistema injusto entrou em crise em 2019. A população saiu às ruas exigindo dignidade, igualdade e uma mudança profunda na sociedade chilena. Uma das soluções foi conseguir um Novo Acordo, mudando as normas que nos regem como país. Criar uma nova Constituição canalizou muitas das demandas que surgiram com a eclosão social, pois será a base ética e legal para realizar as mudanças que o país precisa para caminhar em direção a uma sociedade mais igualitária.

Conectas – Quais são as expectativas e desafios para a nova Constituição?

Cynthia Imaña – Muitas das esperanças de um país melhor estão colocadas na nova Constituição. As principais expectativas são alcançar mudanças profundas no papel do Estado, que deve garantir o bem-estar de toda a população, satisfazer suas necessidades básicas e garantir oportunidades iguais para uma sociedade mais justa. As expectativas também estão ligadas a um maior respeito pelo meio ambiente e ao reconhecimento e valorização de nossos povos nativos e suas culturas. O desafio desse processo é chegar a acordos entre os diversos grupos representados na Assembleia Constituinte, uma vez que as diferenças sociais polarizaram fortemente a população chilena em posições estanques. Também é importante garantir que as minorias representadas na Assembleia não se sintam excluídas dos grandes acordos e que suas opiniões e ideias sejam levadas em consideração. Outro desafio importante é que o processo não gere muitas expectativas na população, que pode acreditar que a nova Constituição resolverá todos os problemas que temos como sociedade. É um passo importante, mas não é a panaceia que nos tornará um país modelo e perfeito. Isso tem que ficar claro desde o início da Constituinte, caso contrário, causará muita frustração e desesperança.

Conectas – A presidenta da Assembleia Constituinte é uma mulher Mapuche. Qual a importância desse fato e o que você espera do seu trabalho?

Cynthia Imaña – Ao longo da história chilena, os povos indígenas foram invisibilizados pelo Estado e sua cultura não foi devidamente valorizada. No entanto, a longa luta e resistência do povo Mapuche contra o sistema neoliberal, caracterizado pela luta pela recuperação da terra, defesa do meio ambiente e orgulho de sua cultura, tornou-os símbolos de resistência durante as manifestações [de 2019]. Durante as marchas de protesto em massa que foram realizadas em todo o país, a bandeira Mapuche foi sempre hasteada acima dos símbolos partidários. Muitos monumentos que representam o colonialismo foram demolidos como símbolos de opressão e colonização. É por isso que a eleição de Elisa Loncón como presidenta da Convenção Constituinte só veio coroar um processo que nasceu dos sentimentos profundos do povo oprimido, que foi reconhecido na submissão histórica de nossos povos indígenas. Da mesma forma, é importante que ela não seja apenas Mapuche, mas também mulher. Sua eleição é também o corolário da reivindicação dos direitos das mulheres após a Onda Feminista que surgiu no Chile em 2018. O movimento feminista chileno contribuiu em grande parte com os movimentos sociais que tornaram possível o processo constituinte – o primeiro no mundo com paridade de gênero. Esta paridade [entre homens e mulheres] foi conquistada nas ruas após massivas manifestações de mulheres que vieram reivindicar seus direitos e lutar contra o patriarcado. Tenho muita confiança no trabalho da presidenta da Assembleia Constituinte, pois ela é uma mulher que abre espaços de diálogo e promove o pluralismo em tudo o que está sendo debatido.

Conectas – O que o exemplo chileno ensina aos demais países latino-americanos na atualidade em que vivemos?

Cynthia Imaña – O exemplo do Chile mostrou ao resto do território latino-americano a importância da organização popular. Após os protestos de 2019 surgiram várias assembleias populares em todo o Chile para debater quais mudanças queríamos para alcançar um país mais justo e igualitário. Nessas assembleias, o povo comum concordou que o primeiro passo era mudar o contrato que tínhamos com o Estado, que mantinha uma Constituição herdada da ditadura e que resultava em uma sociedade fragmentada pela desigualdade e oprimida por uma elite dominante absorta em seus privilégios. A raiva e o desespero da população levaram à busca de uma solução coletiva, e um dos primeiros passos para isso foi mudar as regras do jogo. De forma mais coloquial, posso dizer que o exemplo chileno mostra que ninguém se salva sozinho. Somente com uma sociedade civil organizada e plural podemos superar nossos problemas. O bem-estar comum é alcançado de forma coletiva e colaborativa. Também quero destacar o papel das mulheres [neste processo] como poderosas geradoras de mudança através da busca pelo bem-estar delas mesmas e de suas famílias. Que seja um exemplo para a América Latina: quando as mulheres se organizam para exigir direitos iguais, para melhorar a qualidade de vida de suas famílias, para lutar contra a violência de gênero, para melhorar o meio ambiente onde vivem, sempre haverá uma transformação positiva. Se forem abertos espaços para as mulheres na vida pública, acordos e soluções para conflitos coletivos serão facilitados. Por fim, como país, provamos que ainda há esperança para nossos povos.


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