Voltar

Como o reconhecimento falho em delegacias leva negros e pobres para a prisão

Com caráter racista, reconhecimento fotográfico ou pessoal falho coloca inocentes no sistema penal; CNJ e Congresso Nacional discutem o tema para estabelecer regras mais objetivas e técnicas

Estudo da Defensoria Pública do Rio de Janeiro mostra que  60% dos casos de reconhecimento fotográfico falho em sede policial implicaram na decretação da prisão preventiva. Foto: Luiz Silveira/CNJ Estudo da Defensoria Pública do Rio de Janeiro mostra que 60% dos casos de reconhecimento fotográfico falho em sede policial implicaram na decretação da prisão preventiva. Foto: Luiz Silveira/CNJ

Basta um reconhecimento fotográfico ou pessoal conduzido sem critérios objetivos e técnicos para que uma pessoa — considerada suspeita de um crime — seja retirada de sua família, de seu trabalho e jogada em uma prisão.

Pessoas inocentes tornam-se, portanto, vítimas do sistema penal brasileiro, movido, em grande parte, pelo racismo estrutural: 83% das pessoas vítimas de reconhecimento equivocado em delegacias são negras, como aponta estudo recente realizado em 10 estados pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. O levantamento também apurou que 60% dos casos de reconhecimento fotográfico falho em sede policial implicaram na decretação da prisão preventiva, sendo o tempo médio dessas prisões de 281 dias – aproximadamente nove meses.

“A realidade demonstra que o objetivo não é esclarecer um possível crime, mas encontrar, a todo custo, um culpado, mesmo que isso seja feito sem seguir critérios e desrespeitando os direitos fundamentais”, afirma Gabriel Sampaio, coordenador do programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas. 

Reconhecimento sem rigor técnico 

O reconhecimento de supostos autores de crimes por parte de vítimas pode envolver a identificação por foto — por meio de catálogos das delegacias, que nem sempre são atualizados — e outros métodos, como a identificação presencial, quando a vítima observa uma pessoa tida como suspeita. O CPP (Código de Processo Penal) estabelece que nestes procedimentos a testemunha deve, antes de tudo, fornecer as características da pessoa que será reconhecida. Em seguida, ela deve ser levada a um local onde a pessoa suspeita estará ao lado de outras, se possível parecidas. E ali ela deve apontar a pessoa que é a suposta autora do fato.

Para o ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça), Rogerio Schietti Machado Cruz, os procedimentos para o reconhecimento pessoal em processos criminais, determinados pelo CPP não são seguidos com rigor. “Na prática, o que se observava é que a pessoa [vítima de um crime] não descreve antes, é levada a um local onde só está o suspeito para ser reconhecido. E esse suposto autor é praticamente indicado pela autoridade policial, que pergunta se é aquele indivíduo”, afirmou o magistrado ao portal do CNJ. 

Sampaio lembra, por sua vez, que, apesar de todos esses problemas, o reconhecimento é, em muitos casos, a única suposta prova existente contra a pessoa acusada, aumentando ainda mais as chances de erros graves, que, na prática, leva gente inocente para a prisão.

Jurisprudência

Em outubro de 2020, o STJ determinou que o reconhecimento pessoal em sede policial não pode ser a única prova para julgar e condenar uma pessoa. A decisão, motivada por um habeas corpus coletivo apresentado pela Defensoria Pública de Santa Catarina, tem como referência o caso de um homem que foi condenado a cinco anos e quatro meses de prisão com base, exclusivamente, em reconhecimento fotográfico extrajudicial realizado pelas vítimas de um roubo no estado de Santa Catarina. 

O inquérito policial, contudo, mostra que as vítimas disseram que os dois assaltantes estavam “de capuz” e “com a cara coberta” e que mediriam 1,70m de altura. O próprio juiz da primeira instância, responsável pela condenação, afirmou que “as vítimas foram abordadas e surpreendidas dentro do restaurante enquanto jantavam, sendo ameaçadas para que não olhassem para os acusados”. Informações que não impediram a condenação. Soma-se ao cenário o fato de que a pessoa condenada mede 1,95m.  

Grupo de trabalho no CNJ 

O caso de Santa Catarina, as discussões internacionais e os dados sobre o assunto chamaram a atenção de membros do judiciário brasileiro. Sob coordenação do ministro do STJ Rogerio Schietti Machado Cruz, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) criou, em setembro, o GT (grupo de trabalho) “Reconhecimento Pessoal”, focado em criar estudos e propostas sobre o tema. O grupo, de acordo com seus objetivos, deve “sugerir proposta de regulamentação de diretrizes e procedimentos para o reconhecimento pessoal no país e a sua aplicação no âmbito do Poder Judiciário”.

Sampaio, da Conectas, é um dos 31 membros do GT, que reúne juízes, promotores, pesquisadores e membros de forças policiais. Além da Conectas, outras entidades da sociedade civil fazem parte do grupo, como o Instituto de Defesa do Direito de Defesa e o Innocence Project Brasil. “O movimento de discutir o tema no âmbito do judiciário é importante”, diz Sampaio, “o enfrentamento ao racismo estrutural pelas instituições públicas e pela sociedade civil deve assumir um senso de urgência.”

Discussão no Congresso 

Já aprovado pelo Senado Federal, o PL 676/2021 quer estabelecer regras sobre a identificação de suspeitos por fotografias. O texto enviado à Câmara dos Deputados pelos senadores proíbe que as vítimas vejam os catálogos fotográficos de modo informal e orienta que o processo de identificação seja gravado, quando possível. Além disso, a pessoa que estiver realizando o reconhecimento deverá fazer uma autodeclaração de raça. 

O PL 676/2021 determina também que a vítima não deve ser induzida por perguntas ou sugestões de respostas que influenciem o seu relato. O agente de segurança deverá perguntar a distância que a pessoa estava do autor do crime, o tempo de contato direto entre a vítima e o autor do crime e as condições de visibilidade. Antes de iniciar a identificação, a vítima deverá ser informada que o responsável pelo crime pode não estar nas fotos apresentadas, por exemplo, e que a investigação irá prosseguir, independente do resultado do reconhecimento. 


Informe-se

Receba por e-mail as atualizações da Conectas