Dossiê SUR Sessenta anos da Declaração Universal de Direitos Humanos

Os sessenta anos da Declaração Universal

Paulo Sérgio Pinheiro

Atravessando um mar de contradições

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RESUMO

Pinheiro ressalta alguns dos pontos principais no desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos no últimos 60 anos, a partir de sua experiência de trabalho tanto no Sistema Interamericano quanto no Sistema das ONU de Direitos Humanos.

Palavras-Chave

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Para Paulo de Mesquita Neto, in memoriam

01

Neste ano em que celebramos 60 anos da Declaração Universal de Direitos Humanos, perguntamo-nos: onde estamos exatamente? 1 Temos realmente algo a comemorar? Aniversários de declarações e tratados internacionais carregam, em geral, certa carga de frustração, o que é inevitável se compararmos os ideais neles consagrados com a realidade atual alarmante. Por outro lado, o processo de estabelecimento de parâmetros internacionais em direitos humanos, bem como de elaboração de convenções juridicamente vinculantes constituem avanços claros. Conforme reconheceu o meu antigo colega Absjorn Eide, “a Declaração Universal, por inspirar e moldar a concepção de valores comuns, tem contribuído mais do que qualquer outro instrumento para que a construção de tais valores seja possível”. 2 A criação da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas (sigla original em inglês, UNCHR *) em 1946 e, posteriormente, do Conselho de Direitos Humanos (sigla original em inglês, UNHRC), do Tribunal Penal Internacional e dos tribunais internacionais ad hoc representam proezas extraordinárias. Houve também mudanças decisivas do ponto de vista do estado democrático e da sociedade civil. Neste sentido, foram reconhecidos os direitos de algumas categorias específicas de vítimas – trabalhadores, mulheres, crianças, gays, povos indígenas, migrantes, pessoas com necessidades especiais e afro-descendentes – embora tais direitos ainda não sejam protegidos em sua plenitude.

No entanto, se nos colocarmos no lugar das vítimas de direitos humanos, veremos que ainda há 4 bilhões de pessoas excluídas do estado de direito, sem conhecerem os seus direitos, conforme a Comissão sobre o Empoderamento Jurídico das Populações Carentes [originalmente em inglês,Commission on Legal Empowerment of the Poor] tem demonstrado. Muitas destas vítimas são submetidas a múltiplas violações de direitos humanos e não possuem meios para sair da condição de pobreza. De fato, “apenas uma parcela minoritária da população mundial possui condições de se beneficiar das normas e regulações jurídicas. A maioria da humanidade encontra-se à parte do sistema jurídico, contemplando-o, sem contudo poder contar efetivamente com a proteção da lei” 3 Estimativas apresentadas no Relatório Mundial sobre Violência contra Crianças 4 sugerem que 5,7 milhões de crianças são submetidas ao trabalho por dívida, 1,8 milhões são obrigadas a se prostituir e 1,2 milhões são vítimas de tráfico humano. Embora comumente se pense que a escravidão tenha acabado há décadas atrás, existem hoje mais escravos no mundo do que em qualquer outro momento da história. Apenas 2.4% das crianças no mundo desfrutam de proteção jurídica contra castigos físicos. Anualmente, dentre 11 milhões de recém-nascidos na América Latina e Caribe, 2 milhões nunca serão registrados – em sua maioria, crianças economicamente desfavorecidas, afro-latinas, provenientes de regiões rurais e indígenas. Embora estas crianças tenham de fato nascido, sem o registro civil, elas não existem do ponto de vista jurídico e administrativo.

Ao se fazer uma retrospectiva do século XX, percebemos que este século não foi apenas marcado por períodos de guerra e conflito, holocausto, genocídio, limpeza étnica, apartheid, terrorismo e catástrofes naturais – tempos obscuros que ainda sondam a humanidade. Reconhecemos, porém, que mesmo no seio de tais horrores a luta pelos direitos humanos progrediu mais do que o esperado.

Como poderíamos imaginar, no início do século XX, que o poder supremo do Leviatã, o princípio sacrossanto de soberania, poderia ser mitigado por órgãos internacionais e desafiado por relatores especiais, contrários ao uso da soberania como forma de acobertar violações de direitos humanos no âmbito nacional? Mesmo que essa evolução possa ser considerada formidável, ela sempre sofreu a interferência da outra face do estado moderno, a saber, aquela que detém o monopólio do uso legítimo da força física. Neste sentido, o estado é, ao mesmo tempo, o maior violador de direitos humanos e defensor pacis, protetor dos fracos. Não obstante, no estado as relações sociais contraditórias tomam forma; suas ações e sua estrutura refletem tal contradição 5 , muito clara no que se refere à proteção de direitos humanos.

Nós nos iludimos ao pensar que estas contradições, de certa maneira, foram solucionadas na Conferência Mundial sobre Direitos Humanos de Viena, em 1993, por sua Declaração e Programa de Ação, nos quais a democracia figura como o regime que mais tende a proteger os direitos humanos. A democracia, no entanto, não é uma panacéia capaz de, por si só, eliminar o autoritarismo e prevenir violações de direitos humanos, como pudemos aprender à chaud na America Latina.

Decerto, a democracia tende a promover os direitos humanos com maior facilidade, contudo, tanto em regimes democráticos consolidados, quanto naqueles recém-instaurados, ela não representa necessariamente uma garantia contra violações de direitos humanos. No hemisfério sul, as transições políticas da ditadura para a democracia têm, em grande medida, mantido ostatus quo e não garantido uma mudança concreta. Na América do Sul e no Leste Europeu, democracias ocultam, com freqüência, a opressão sofrida pela parcela da população economicamente mais desfavorecida, a corrupção de políticos e agentes estatais e a cumplicidade de ambos com o crime organizado. No hemisfério norte, o governo dos EUA tem permitido o uso da tortura contra suspeitos e prisioneiros por terrorismo 6 . Na Europa, estados democráticos tem sotto voce colaborado com a transferência de prisioneiros para serem torturados em outros países. 7 Neste exato momento, estes governos estão implementando diretrizes sobre a repatriação daqueles que migraram ilegalmente por razões econômicas, migrantes estes que têm sido explorados economicamente por mais de um século por estes mesmos países onde hoje vivem; tais medidas incluem o confinamento de famílias e crianças em centros de detenção pelo prazo máximo de 18 meses 8 (devo dizer, com pesar, que tive a oportunidade de visitar alguns destes centros). Os países ricos desembolsam mais de 300 bilhões de dólares por ano em subsídios agrícolas, seis vezes mais do que o montante da ajuda por eles prestada aos países em desenvolvimento, o que contradiz o espírito dos acordos da Organização Mundial do Comércio (OMC) e faz com que a produção agrícola dos países ricos seja despejada, a um custo artificialmente reduzido pelos subsídios, no mercado dos países menos favorecidos. 9 A luta pelos direitos humanos deve combater tais contradições.

02

Após ter apresentado o contexto em que se insere a comemoração dos sessenta anos da Declaração Universal, limitarei minhas observações na segunda parte deste artigo a uma breve análise de duas instituições com quais eu tenho trabalho mais proximamente nos últimos treze anos; uma delas no âmbito regional, a saber, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, CIDH, da qual faço parte desde 2004 e, a outra, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (UNHRC) e a Comissão de Direitos Humanos (UNCHR), que o precedeu, onde atuei de 1995 a 2008. Em minha conclusão, ousarei tratar muito brevemente do que o futuro nos reserva.

Embora estejamos celebrando os sessenta anos da Declaração Universal, devemos estender esta comemoração à Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, aprovada, por unanimidade, três meses antes da Declaração Universal pela recém-criada Organização dos Estados Americanos (OEA). Apesar deste precedente, por 11 anos nenhum esforço foi feito para transformar a Declaração Americana em realidade. No entanto, em 1959, talvez motivada pela Revolução Cubana, a OEA decidiu estabelecer a CIDH, adotando o modelo rejeitado pelos Estados fundadores da UNCHR: os seus membros não são representantes dos Estados Membros da OEA, mas sim sete especialistas independentes eleitos pela Assembléia Geral da OEA. Não obstante, nos vinte primeiros anos da CIDH, os “comissionários” (titulo com certo tom soviético) atuaram como delegados de seus respectivos governos, protegendo estes de quaisquer acusações. Felizmente, hoje os comissionários não mais participam em quaisquer deliberações sobre os seus respectivos países de origem.

A comissão é um órgão quase judicial, ao qual compete exercer o papel de promotor público do sistema interamericano. Quando os países não cumprem as recomendações da Comissão, o caso é encaminhado à Corte Interamericana de Direitos Humanos, um órgão judicial. Em 2007, a Comissão submeteu 115 casos à Corte. As decisões da Corte, consideradas vinculantes, têm como objetivo declarar quais direitos foram violados e impor reparações e indenizações aos Estados que tenham reconhecido a jurisdição da Corte; tais decisões os governos, em geral, respeitam.

Apesar de haver semelhanças consideráveis entre o sistema interamericano e o sistema europeu de direitos humanos, os assuntos com os quais esses dois sistemas têm lidado ao longo de sua história são diferentes: a maioria dos casos no sistema interamericano diz respeito a desaparecimentos forçados, massacres, execuções sumárias ocorridos nas décadas de 70 e 80 – violações referentes a um não-estado de direito que predominou, em quase toda a região, até meados da década de 80. Em comparação, na Europa os assuntos tipicamente submetidos à Corte referiam-se à melhora do estado de direito já existente. Desde a criação da Comissão Interamericana, foram realizadas mudanças bem sucedidas no sistema interamericano de direitos humanos, que ampliaram as prerrogativas desfrutadas pela população da região. Atualmente, dos 35 membros da OEA, 25 ratificaram o documento base do sistema interamericano, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, elaborada em 1969, e 22 reconheceram a jurisdição da Corte. Contudo, mesmo entre aqueles Estados que já ratificaram a Convenção e reconheceram a jurisdição da Corte, muitos têm agido de maneira contraditória e, portanto, mostram-se em alguns momentos avessos a estes mesmos órgãos.

Apenas após a consolidação dos regimes militares no Cone Sul, a CIDH começou a monitorar a situação de direitos humanos, influenciada por relatórios de graves violações de direitos humanos apresentados à Comissão. 10 No caso da UNCHR, os acontecimentos se desenrolaram de maneira muito semelhante; somente após denúncias de tortura praticada pela ditadura militar de Pinochet e de apartheid na África do Sul, a UNCHR passou a monitorar a situação de direitos humanos, no final da década de 70. Igualmente influenciada pela atuação da antiga UNCHR, a CIDH tem instituído mandatos de relatores temáticos e de relatores específicos por país, os quais, no segundo caso, acompanham os casos em discussão na Comissão sobre o país objeto de seu mandato ou, no primeiro caso, dedicam-se a temas específicos, além de conduzirem visitas e elaborarem relatórios.

O verdadeiro desafio para a Comissão vis- à- vis as novas democracias da América do Sul é que, embora a maioria das garantias políticas tenha sido restabelecida, os direitos civis, econômicos e sociais da maior parte da população da região ainda são continuamente desrespeitados. Os governos responsáveis deveriam, portanto, se empenhar por meio do diálogo para pôr fim às evidentes violações de direitos humanos relatadas nos casos admitidos pela Comissão.

Gostaria de discutir agora como as facetas contraditórias do estado moderno estão presentes na atuação da UNCHR e, posteriormente, do UNHRC. Seria precoce comparar a Comissão de Direitos Humanos (UNCHR), um órgão que progrediu ao longo de 60 anos, com o UNHRC, que ainda está em seu segundo ano e realiza sua 8 a sessão regular.

Durante a última década da UNCHR, com freqüência, alguns estados acusavam outros de politizar a Comissão. No entanto, conforme meu amigo muito querido, Sergio Vieira de Mello, observou criticamente em seu último discurso na 59 a sessão da Comissão, em abril de 2003, poucos meses antes de ser morto em Bagdá:

a maioria dos presentes nesta sala trabalham em governos ou buscam influenciar as ações de governos. Isto é política. Para alguns, acusar outros de serem políticos é quase o mesmo que um peixe criticar outro por estar molhado. Esta atitude tem se tornado uma maneira de demonstrar reprovação, sem de fato dizer o que se tem em mente.

Considerando que tanto o UNHRC, quanto a UNCHR são órgãos multilaterais compostos por representantes de Estados, seus membros continuam a proteger os interesses de seus Estados; a natureza política do UNHRC é um aspecto vital para o seu funcionamento. Seria ingênuo esperar que este comportamento político dos Estados Membros mudaria apenas em razão de alterações na estrutura deste órgão. De fato, a Comissão foi politizada imediatamente após a sua criação em 1946 e, em particular, nas décadas de 70 e 80, tornou-se profundamente dividida entre os blocos ocidental e socialista. Desde então, tornou-se cada vez mais evidente um abismo entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento. Ao se observar os votos proferidos no UNHRC, percebe-se que esta divisão tem persistido e, em alguns casos, tem se tornado mais perceptível do que no órgão que o precedeu, a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas (UNCHR). Há uma suspeita generalizada e crescente por parte dos países do Sul em relação à qualquer iniciativa apresentada pelo grupo regional formado pelos países da Europa Ocidental e outros (sigla original em inglês, WEOG).

Os relatores especiais, a “jóia da coroa” da UNCHR como certa vez corretamente os qualificou Kofi Annan, têm sido outro alvo preferido de críticas. Este mecanismo único nas Nações Unidas é capaz de monitorar a situação de direitos humanos e possui condições de ter algum impacto concreto sobre as vidas das vítimas. Claramente os relatores têm atuado dentro de uma estrutura contraditória e frágil, uma vez que são obrigados a tornar público o que observam e, ao mesmo tempo, tentar convencer os governos a cumprir com as suas obrigações em direitos humanos e estabelecer algum tipo de cooperação com a UNCHR (e agora com o UNHRC). De certa maneira, pode-se estabelecer uma analogia entre esta contradição presente no trabalho dos relatores especiais e a incongruência existente entre a face “repressiva” do Estado, que comete violações de direitos humanos, e a sua face “benevolente”, que implementa políticas de direitos humanos; os relatores possuem a obrigação prima facie de relatar a situação de direitos humanos e de procurar estabelecer um diálogo construtivo com a face “benevolente”, positiva do Estado. O trabalho dos relatores especiais é delicado e, freqüentemente, ingrato, para dizer o mínimo; contudo, é um trabalho vital – o próprio sistema de relatores especiais pode ser considerado um grande avanço que deve ser protegido. A luta para proteger este sistema ainda continua e a vitória inda não está garantida.

Atualmente, há certa preocupação com o papel reservado às organizações da sociedade civil no UNHRC. Durante a 8 a sessão, a última realizada pelo Conselho, alguns países tentaram repetidamente impedir a atuação de ONGs, dependendo de seu ponto de vista. O objetivo destes Estados não é mais meramente desafiar o princípio da participação de ONGs ou mesmo reduzir o seu tempo de discurso; desejam, na verdade, calá-las, solicitando a interrupção do discurso de seus representantes e a exclusão de parágrafos inteiros dos registros das reuniões do Conselho.

O papel do UNHRC em fortalecer o diálogo e a cooperação em direitos humanos tem sido também reforçado, em particular, com a possibilidade de realizar Sessões Especiais, “com vistas a prevenir violações de direitos humanos e a responder prontamente a emergências em direitos humanos”. 11 Até o momento, houve sete Sessões Especiais: três referentes a Israel e aos Territórios Palestinos Ocupados e as demais referentes, cada uma, às situações no Líbano, Darfur, Mianmar e, por fim, uma sessão sobre o direito à alimentação. Percebe-se que a decisão do Conselho de Direitos Humanos de realizar Sessões Especiais também leva em consideração o direito internacional humanitário, o que permite ao Conselho exercer um papel mais ativo após desastres naturais.

Não obstante, são extremamente parcos os resultados das Sessões Especiais. Por exemplo, a 5 a Sessão Especial sobre Mianmar foi uma rápida resposta à repressão perpetuada pela junta militar contra os formidáveis protestos realizados por monges budistas e pela população em geral. Apesar do notável consenso em adotar a resolução, o governo de Mianmar apenas convidou o relator especial para conduzir uma vista ao país, porém, não implementou as recomendações feitas pelo UNHRC, sem sofrer sanção alguma por isso. Penso que essa aparente irrelevância das sessões especiais e das resoluções aprovadas pelo UNHRC servirá como um grande incentivo para que outros países autoritários também não temam estas sessões e suas resoluções.

Não obstante, houve uma inegável melhoria no principal órgão inter-estatal em direitos humanos das Nações Unidas. A UNCHR era apenas uma comissão funcional (como a Comissão sobre o Status das Mulheres) e um órgão subsidiário do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (sigla original, ECOSOC), contudo, o seu sucessor, o UNHRC, desfruta de uma status elevado no sistema das Nações Unidas, atuando como um órgão subsidiário da Assembléia Geral da ONU.

Ademais, o mecanismo mais inovador estabelecido pelo UNHRC é o Mecanismo de Revisão Periódica Universal (sigla original, UPR), considerado o melhor instrumento para trazer à tona os problemas mais críticos em direitos humanos em todos os Estados Membros. Espera-se que o UPR levará o UNHRC a cooperar com os mecanismos de direitos humanos e a implementar, de maneira universal, as normas e parâmetros em direitos humanos. Com razão, este mecanismo demanda esforços a longo prazo, desta forma, devemos esperar para sabermos quais serão seus resultados.

03

Até aqui, eu tratei do passado e do presente. O que será que o Anjo da história reserva para nós?

Um quadro de [Paul] Klee intitulado ‘Angelus Novus’ mostra um anjo. Seu rosto está voltado para o passado. Quando pensamos estar diante de uma série de acontecimentos, ele vê somente a mesma catástrofe que se ergue em meio aos escombros que são arremessados a seus pés. O Anjo gostaria de permanecer, despertar os mortos e reunir os destroços. Uma tempestade, porém, sopra do Paraíso; ela se arremete contra suas asas com tanta força que o Anjo não pode mais fechá-las. Inevitavelmente, a tempestade o arrasta para o futuro, enquanto a pilha formada pelos escombros, que perante ele se ergue, cresce em direção ao céu. Esta tempestade é o que chamamos de progresso. 12

Essa tese IX sobre a história formulada por Walter Benjamin pode ser vista como uma metáfora da luta pelos direitos humanos, das ruínas do passado em direção ao progresso e, talvez, com novas catástrofes, ainda mais destrutivas, a nos aguardar no futuro.

É claro que não tenho muito contato com o Anjo da História, portanto, seria muito arriscado fazer previsões sobre o que acontecerá nos próximos 60 anos. Sejamos modestos e pensemos apenas nos próximos 10 anos.

Na próxima década, ainda teremos que atravessar um mar de contradições, beneficiando-nos de todas as “ambigüidades construtivas” decorrentes do processo de construção institucional do UNHRC, para utilizar uma expressão do Embaixador Luis Alfonso de Alba 13 , o primeiro presidente do Conselho, com vistas a implementar os direitos humanos. Não devemos nunca esquecer que quatro bilhões de pessoas estão excluídas da alegria desta comemoração. Está na hora de tornarmos os princípios da Declaração Universal e de outros importantes instrumentos de direitos humanos, que contribuíram para a criação de uma rede global de proteção de direitos, aplicáveis a todas as pessoas, independentemente de onde estiverem e para além de qualquer “excepcionalismo” cultural. 14 Há diversos assuntos, em todas as partes do mundo, que devem ser urgentemente tratados, como, por exemplo, a falta de execução das decisões judiciais, detenção, migração, mudança climática e crime organizado transnacional. O sistema global ou os sistemas regionais de proteção dos direitos humanos nos hemisférios sul e norte nunca serão eficazes por completo para os excluídos, se os países não solucionarem a deficiência da legislação interna, a ineficácia do poder judiciário, a inoperância do aparato repressivo do Estado e a implementação precária dos direitos no âmbito nacional. A proteção dos direitos humanos continuará a ser obstaculizada se o direito ao desenvolvimento, a eliminação da pobreza extrema, o direito à alimentação e à saúde não forem seriamente considerados questões cruciais não somente para os quatro bilhões de necessitados, mas também para o mundo desenvolvido, o qual, juntamente com o terceiro mundo, freqüentemente se omite por medo, discriminação e racismo. A privação social e a exploração econômica devem ser consideradas graves violações de direitos humanos, no mesmo patamar da opressão política, tortura e discriminação racial 15 . Apenas a indivisibilidade dos direitos humanos será capaz de reforçar a universalidade destes direitos.

Decerto, conforme disse uma vez Daw Aung Sang Suu Kyi,

Não é suficiente clamar por liberdade, democracia e direitos humanos. Deve-se perseverar determinadamente nesta luta, fazer sacrifícios em nome de verdades perenes, resistir frente às tentações, à má-fé, à ignorância e ao medo […] A partir do momento em que concebemos um mundo adequado a uma humanidade racional e civilizada, estaremos dispostos, se preciso, a sofrer para que seja possível a construção de sociedades livres da miséria e do medo. 16

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Notas

1. Outra versão deste texto foi apresentada no Painel de Altas Autoridades sobre os 60 anos da Declaração Universal de Direitos Humanos, intitulado: “Onde estamos agora?: Desenvolvimento da Proteção Internacional de Direitos Humanos” [originalmente, “Where are we now? Development in the International Protection of Human Rights”], em 7 de julho de 2008, Direitos Humanos: Interpretação e Implementação [“Human Rights: Interpretation and Implementation”]. Uma Conferência de Ex-Alunos nos 25 anos do Centro de Direitos Humanos da Universidade de Essex. Eu gostaria de agradecer aos meus amigos, Michael Hall, do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP e o Professor John Packer, diretor do Centro de Direitos Humanos da Universidade de Essex, por seus comentários e sugestões a este texto, embora obviamente eu seja responsável por esta versão final. Este texto foi preparado com o apoio da FAPESP e do CNPq, Brasil.

2. EIDE, A. The Historical Significance of the Universal Declaration. International Social Science Journal, UNESCO, v.50, n. 158, p. 475-97, dez. de 1998, p. 497.

No caso das duas siglas aqui apresentadas originalmente (UNCHR e UNHRC), decidimos excepcionalmente mantê-las conforme constam no original em inglês, pois, a rigor, a sigla usada em português para designar tanto a Comissão de Direitos Humanos, quanto o Conselho de Direitos Humanos é a mesma: CDH (N. do T.).

3. COMMISSION ON LEGAL EMPOWERMENT OF THE POOR AND UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAM (UNDP). Making the Law for Everyone – Report of the Commission on Legal Empowerment of the Poor, Nova York, v. 1, 2008, p. 16.

4. PINHEIRO, P. S. Especialista independente do Secretário-Geral das Nações Unidas para estudo da violência contra as crianças. World Report on Violence against Children. Genebra, Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, 22 de junho de 2006, p. 364. Disponível em: . Último acesso em: 21 de set. de 2008.

5. REY, M. T. The State as a contradiction. Capital and Class, Londres, n. 85, primavera de 2005. Disponível em: <http://findarticles.com/p/articles/mi_qa3780/is_200504/ai_n13498475>. Último acesso em 21 de set. de 2008.

6. Ver HUMAN RIGHTS WATCH. The Road to Abu Ghraib, Nova York, 2004. Disponível em: <http://hrw.org/reports/2004/usa0604/>. Último acesso em 21 de set. de 2008. Ver também GOUREVICH, P. & MORRIS, E. Standard Operating Procedure Inside Abu Ghraib. Nova York: The Penguin Press, 2008, p. 368.

7. Ver COUNCIL OF EUROPE. Parliamentary Assembly – Committee on Legal Affairs. Secret Detentions and illegal transfers of detainees involving Council of Europe Member States: Second Report, 7 de junho de 2007. Disponível em: <http://news.bbc.co.uk/1/shared/bsp/hi/pdfs/marty_08_06_07.pdf.> Último acesso em: 1 de out. de 2008.

8. Ver ORGANIZATION OF AMERICAN STATES (OEA). Inter-American Commission on Human Rights. Resolution 03/08 Human Rights of Migrants, International Standards and the Return Directive of the EU, junho de 2008.

9. ACTION AID, Farmgate: the developmental impact of agricultural subsidies. Report 2002. Disponível em: <http://www.ukfg.org.uk/docs/AAFarmgate%20briefing.pdf>. último acesso em: 11 de out. de 2008.

10. Esta evolução é relatada de maneira magnífica no livro do Professor James Green, que será publicado em breve: GREEN, J. We cannot remain silent: opposition to the Brazilian military dictatorship in the United States, 1964-85. Durham: Duke University Press, 2009. Ver também a versão em português: GREEN, J. Apesar de vocês: a oposição à ditadura militar nos Estados Unidos, 1964-85. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

11. ICC POSTION PAPERS/NATION HAUMN RIGHTS INSTITUTIONS AND THE UNHRC. GA Resolution 60/251, 22 de set. de 2006, par. 5-f.

12. Ver BENJAMIN, W. Theses on the Philosophy of History. Illuminations. Nova York: Schocken Books, p. 257-258, 1969; LÖWY, M. Walter Benjamin. Avertissement d’incendie. Une lecture des thèses Sur le concept d’histoire. Paris: PUF, 2001, p. 75.

13. Embaixador Luis Alfonso de Alba é o Representante Permanente do México perante as Nações Unidas e demais organizações internacionais em Genebra e foi o primeiro presidente do Conselho de Direitos Humanos, no qual conduziu com grande habilidade o processo de construção institucional deste órgão em 2006.

14. FRANCK. Are Human Rights Universal?. Foreign Affairs, Nova York, v. 80, n.1, jan.-fev., 2001.

15. TAROOR, S. Are Human Rights Universal?. World Policy, Cambridge, v. XVI, n. 4, inverno, 1999-2000.

16. KYI, A. S. Freedom from Fear Speech, 1990. Disponível em: <http://www.thirdworldtraveler.com/Burma/FreedomFromFearSpeech.html>. Último acesso em: 21 de set. de 2008. Ver Idem. Freedom from Fear and other writings: revised edition [com Vaclav Havel, Desmond Tutu, Michael Aris]. Nova York: The Penguin Books, 1996, p. 416.

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Paulo Sérgio Pinheiro

Paulo Sérgio Pinheiro já ocupou inúmeros papéis como defensor de direitos humanos. Como militante contra a ditadura militar, fundou a Comissão Teotônio Vilela. Como acadêmico, criou o Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP), onde se aposentou recentemente como professor do Departamento de Ciência Política. Também lecionou nas universidades Brown, Columbia e Notre Dame (EUA), Oxford (Reino Unido) e École des Hautes Études en Sciences Sociales (França). No governo brasileiro, Pinheiro foi Secretário de Estado de Direitos Humanos durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso e relator do primeiro Plano Nacional de Direitos Humanos. Mais recentemente, foi membro e coordenou a Comissão Nacional da Verdade.

Original em inglês. Tradução de Thiago Amparo.