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Experiências de litígio estratégico no Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos

Sandra Carvalho e Eduardo Baker

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RESUMO

Este artigo busca discutir o litígio estratégico em direitos humanos a partir da experiência de uma organização brasileira no Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. Parte-se da conceituação de litígio estratégico e como ele pode ser pensado no contexto interamericano, tendo a realidade brasileira como pano de fundo. A elaboração teórica sobre o litígio se vincula à forma como uma organização se agencia com os demais atores do campo e, principalmente, com aqueles no território das violações, propondo-se uma tipologia dual para a questão e esboçando duas linhas gerais de dois estudos de caso.

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1.  Considerações iniciais sobre litígio estratégico

Partiremos do seguinte problema: como ponderar atuações de curto e longo prazo no campo dos direitos humanos, principalmente em relação à incidência via sistemas internacionais de proteção de direitos humanos. A ponderação entre urgência e impactos de longo prazo é uma difícil equação, que pode ser trabalhada das mais diferentes formas. Neste artigo parte-se do trabalho de uma organização brasileira de direitos humanos, a Justiça Global, mais especificamente de sua experiência com o litígio internacional em direitos humanos no Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos (SIDH).

Para este fim, não foram considerados relevantes aspectos teóricos e construções jurisprudenciais dos sistemas internacionais. Poderíamos discutir as diferentes formas de reparação e prevenção ordenadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e como foram processadas pelos diferentes Estados. Este texto, porém, não é uma análise da eficácia dos sistemas internacionais de proteção. Foca-se na forma como ocorre o desenrolar do lado de cá – das organizações e movimentos que se valem desses instrumentos.

Qual é ou pode ser a atuação desses atores em um sistema internacional de proteção? Quais visões podemos ter sobre o tema e como isso aparece no litígio perante esse mecanismo multilateral de proteção de direitos? Alguns pontos serão importantes neste debate, como a seleção de casos e a maneira como se dá a triangulação entre peticionários ou representantes das vítimas, órgão internacional e Estado responsável.

É evidente que toda resposta é provisória. Todo dia aprendemos muito sobre quais são as possibilidades e as limitações deste tipo de trabalho e, muitas vezes, as limitações parecem superar em muito as possibilidades. Contudo, talvez sejam precisamente a busca dessas brechas e a criação de novas aberturas uma das principais tarefas de uma organização de direitos humanos. Mais do que usar o direito internacional dos direitos humanos, criar a partir dele e com ele.

Ao considerar como principal foco de análise as possibilidades de incidência junto ao SIDH, um primeiro ponto importante é a interdisciplinaridade. O litígio na Comissão e na Corte Interamericanas não exige a inscrição profissional como advogado ou advogada. A inscrição regular na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), no caso brasileiro, não é requisito para se postular ou atuar perante o Sistema Interamericano. O artigo 46 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que trata dos requisitos mínimos de uma petição para que ela tenha sua tramitação admitida; o artigo 23 do Regulamento da Comissão Interamericana, que trata da apresentação de petições; e o artigo 28 do Regulamento da Corte, que trata da apresentação de escritos, são alguns dos artigos que deixam clara essa desnecessidade.

Isso não significa que a atuação no sistema interamericano não exija conhecimentos específicos na área do Direito – estes são, de fato, indispensáveis –, mas aponta para outra exigência da advocacia nessa área: o trabalho integrado e interdisciplinar. Violações de direitos humanos envolvem sempre outras questões além da quebra objetiva de uma norma jurídica internacional. Se este é um mínimo para que se possa falar em responsabilidade internacional do Estado, em direitos humanos não é possível tratar adequadamente do ilícito internacional sem uma compreensão holística do problema. A violação de direitos humanos se insere em um contexto político, histórico, econômico, social e cultural que deve ser estudado para que a incidência por meio destes mecanismos possa render os frutos desejados.

Por exemplo, no debate sobre empresas e direitos humanos, um desafio importante é entender o lugar das agências governamentais e internacionais de fomento, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), no financiamento de megaprojetos que impactam os direitos humanos. Quando discutimos a política do recolhimento compulsório voltada para o usuário de crack, o olhar da área da saúde mental não poderia ser dispensado para que se compreendesse como essa prática viola direitos.

Para dar conta desses debates, é necessário um diálogo diversificado. Psicólogos, sociólogos, jornalistas e economistas são exemplos de profissionais que podem contribuir em muito para o litígio em direitos humanos. Sem essa diversidade, o trabalho pode ser bastante prejudicado e até inviabilizado, a depender do caso concreto.

Não existe, ou não deveria existir, “advocacia pura” nesses espaços. A discussão sobre como se dá e o que é a militância pela via do Direito em temas de direitos humanos pode ser vista como um diálogo com uma estratégia mais ampla, comumente chamado de litígio estratégico.

No Brasil, infelizmente, temos muito pouca literatura e prática sobre o tema. O litígio estratégico está intimamente ligado à educação jurídica e ao surgimento das chamadas “clínicas” de direitos humanos na Europa, nos Estados Unidos da América e em alguns países da América Latina como Chile, Argentina e Colômbia.1

O Brasil deu início nos últimos anos a algumas iniciativas ainda tímidas em algumas instituições de ensino superior. Por outro lado, algumas organizações da sociedade civil já trabalham há mais de uma década com o litígio estratégico, ainda que o termo em si raramente apareça expressamente.

Uma possível definição de litígio estratégico encontra-se no Litigation Report (SKILBECK, 2013) da Justice Initiative, um braço da organização de fomento Open Society que foca seu incentivo especificamente na área de litígio estratégico. Segundo o documento: “O litígio estratégico em direitos humanos busca, por meio do uso da autoridade da lei, promover mudanças sociais em prol dos indivíduos cujas vozes não seriam ouvidas” (SKILBECK, 2013, p. 5, tradução livre). Nos Estados Unidos da América, também é utilizado o termo high impact litigation ou public interest litigation.

Em livro editado pela School of Law da Universidade de Columbia:

Primeiro, o litígio de interesse público persuade o sistema de justiça a interpretar a lei; o litígio de interesse público clama às cortes para que concretizem ou redefinam direitos previstos em constituições, estatutos e tratados para melhor tratar de ilícitos do governo e sociedade e ajudar aqueles que sofreram com eles. Ademais, o litígio de interesse público influencia as cortes para aplicar leis e regras favoráveis existentes, mas, de outra forma, subutilizadas ou ignoradas.
(REKOSH; BUCHKO; TERVIEZA, 2001, p. 81-82, tradução livre).

A ênfase no aspecto jurídico por vezes é relativizada. Por exemplo, em artigo que analisa tipologias do conceito de litígio estratégico nas Américas encontramos quatro formas de definição do termo: centrando-se na defesa judicial dos direitos humanos; a partir dos resultados de alto impacto do litígio estratégico; de acordo com o momento de intervenção (preventivo ou corretivo); ou de acordo com os direitos humanos a serem protegidos (CORAL-DÍAZ; LONDOÑO-TORO; MUÑOZ-ÁVILA2010, p. 49-76).

O litígio estratégico deve ser capaz de chamar a atenção para os abusos e violações de direitos humanos e ressaltar a obrigação do Estado em cumprir com suas obrigações nacionais e internacionais. Isso não significa que toda violação de direitos possa, ou deva, ser tratada pela via do litígio estratégico. Em virtude de seu caráter polivalente, entre litigância jurídica e incidência política, a Comissão Mexicana de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos, por exemplo, elenca as quatro situações nas quais seria aplicável a estratégia:

1. O direito não é observado (em seu caráter substantivo e em seu caráter procedimental); 2. Há discordância entre o direito interno e os parâmetros internacionais; 3. Não há clareza acerca do direito existente; 4. A lei é aplicada reiteradamente de maneira inexata e/ou arbitrária.
(CONTRERAS, 2011, p. 25, tradução livre).

A partir dessa caracterização surge uma dificuldade, exemplificada no tema da tortura em unidades prisionais. Sabemos que no Brasil a prática é reiterada, não sendo respeitado o direito das pessoas privadas de liberdade à sua integridade física e psicológica. Não é clara a linha diferencial entre maus-tratos e tortura na aplicação da lei pelos tribunais e tampouco é possível ver nessa atuação um diálogo com as fontes de direito e jurisprudência internacionais. A lei que trata da tortura é pouquíssimo utilizada na prática dos inquéritos e ações penais. Assim, em tese, o tema se encaixa em qualquer uma das quatro situações citadas anteriormente.

Surgem, porém, dois problemas: por que litigar esse tema em vez da não demarcação do território de povos tradicionais, por exemplo? Afinal, seria igualmente possível justificar o enquadramento desse outro tema nas categorias mencionadas. E qual caso escolher para fazer o embate?

O mesmo texto, ao tratar da escolha do caso paradigmático, levanta as seguintes considerações:

a oportunidade, a qualidade probatória do caso, a relação com a(s) vítima(s), o esgotamento dos recursos internos da jurisdição interna, a soma dos fatores anteriores, ou qualquer outra situação que, uma vez avaliada, permita-nos identificar uma possível situação que, por sua transcendência, mereça litígio nacional ou internacional.
(CONTRERAS, 2011, p. 31, tradução livre).

A construção não parece dar conta do problema colocado. O motivo principal é que, nessa forma de trabalhar o litígio estratégico, quem realiza toda essa reflexão e ponderação de meios e resultado aparece como relativamente em posição externa ao problema. Por isso, o importante é a relação com a vítima, e precisamos atuar em benefício daqueles indivíduos sem voz. A tarefa daquele que litiga parece ser empoderar o outro.

A distância entre quem litiga e esse outro fica mais clara ainda quando encontramos, na bibliografia especializada, recomendações para quem fará o litígio, como: “Sempre é recomendável estar atento à necessidade do ‘mercado’ para os serviços oferecidos” (EUROPEAN ROMA RIGHTS CENTER; INTERIGHTS; MIGRATION POLICY GROUP. 2004, p. 38) e “a necessidade percebida do ponto de vista dos clientes potenciais (a ‘clientela’) é uma consideração-chave” (EUROPEAN ROMA RIGHTS CENTER; INTERIGHTS; MIGRATION POLICY GROUP. 2004, p. 37). Do mercado de clientes logicamente passamos para um mercado de financiadores, e o litígio em direitos humanos começa a ganhar contornos de administração de empresas. No mundo corporativo-jurídico de direitos humanos, nosso papel seria, por exemplo, identificar stakeholders. Nossas “antigas” análises de conjuntura desaparecem do jargão.

Antes de aprofundarmos este debate, faz-se necessário um desvio. Relacionada ao tema do litígio estratégico, mas por vezes oculta na discussão, está a questão da agenda política dos financiadores. Primeiro, é importante distinguir entre um caso a ser litigado de atividade lato sensu e um a ser executado no bojo de um projeto. Quando se busca financiamento, não é incomum que o financiador colabore na construção da sua agenda de atividades. O simples fato de abrir uma linha de financiamento para um tema e não outro já sinaliza um posicionamento ético-político do financiador.

Sabemos, também, que isso não é privilégio do mundo das organizações de direitos humanos. Não são raras as universidades, por exemplo, que abrem oportunidades de bolsas específicas por temas, a partir de aportes financeiros de empresas e agências de fomento. Sem o intuito de alongar o debate sobre política científica, basta apenas ressaltar que essa é uma realidade com a qual todos nós, de uma forma ou de outra, convivemos.

A partir dessa constatação, podemos pensar em dois modelos de seleção de casos. O primeiro segue a linha reta: financiador => entidade => vítima. O segundo, a via de mão dupla: parceiros <=> entidade <=> financiador; sendo que este último elemento, o financiador, nem sempre está presente.

No primeiro modelo, o financiador fornece uma linha de financiamento para abordar determinado tema, utilizar determinado mecanismo internacional ou pesquisar certa temática. A partir da obtenção do fundo, a entidade procura casos e/ou vítimas que se encaixem no perfil da linha de fomento ou rejeitam ou acolhem aqueles que lhes apresentam seus casos a partir deste filtro. A partir disso, constrói-se a estratégia de litígio.

No segundo caso, a organização possui parceiros com os quais ela construiu sua trajetória institucional e trabalha regularmente. Por meio da atuação conjunta entre os atores, surge a proposta de se trabalhar determinada temática e/ou caso através do litígio, por exemplo, usando o sistema interamericano de proteção de direitos humanos. Construída a pauta conjunta, se possível, procura-se financiamento para dar conta da demanda, encaixa-se a proposta em algum financiamento já existente ou, em alguns casos – ou até muitos, age-se independentemente da obtenção de apoio direto.

Claro que os modelos são exagerados e reducionistas. O importante é termos clara a distinção de perspectiva, da forma de se abordar o trabalho em direitos humanos. O problema é o ponto de partida. Se tem-se como base a mobilização com a materialidade das lutas sociais ou não.

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2.  Duas experiências de incidência

Na organização na qual autor e autora do presente artigo atuam, há um exemplo recente de incidência no sistema interamericano neste sentido, em relação à luta dos Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul pelo acesso à terra e ao território. Neste caso, nosso trabalho partiu de uma articulação com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), com o qual temos uma parceria de longa data.

Em novembro de 2011, o cacique Nísio Gomes, líder da aldeia Guaiviry, foi assassinado. Após conversas com advogados e membros da entidade, saiu a proposta de um pedido de medida cautelar junto à Comissão Interamericana. Devido à urgência e ao risco de novos ataques, aquela parecia ser a medida mais adequada aos objetivos traçados.

A intenção era dar visibilidade ao que estava acontecendo no Estado do Mato Grosso do Sul, o que não era nada de novo. Há muitos anos os Guarani-Kaiowá e Terena daquele território são vítimas da negligência estatal e da ação de pistoleiros da região, sendo a falta de demarcação de seus territórios a principal razão da violência, inclusive interna. As taxas de suicídio e homicídio entre indígenas é altíssima no Mato Grosso do Sul. Entre os anos de 2004 e 2010, o estado concentrou 55,5% dos assassinatos de indígenas no país e 83% dos suicídios.2

Pela via da medida cautelar, pretendíamos debater precisamente o problema do acesso ao território, que não poderia ser o objeto direto da medida cautelar. O Sistema Interamericano possui duas formas principais de litigância: tramitação de casos individuais e solicitação de medidas cautelares e provisórias. Esta segunda categoria ocorre quando há uma situação de urgência e gravidade na qual um dano irreparável pode se produzir. A gravidade, urgência e irreparabilidade do dano estariam provadas, assim argumentamos, com a morte de Nísio e o quadro amplo de ameaças, atentados e violências que aquelas comunidades vinham sofrendo nos últimos anos.

No pedido, tentamos mostrar a relação, para nós indissociável, entre a violação do direito ao acesso ao território tradicional e as ameaças, a violência e as mortes que o povo Guarani-Kaiowá vinham e ainda vem sofrendo. O material produzido pelo Cimi ao longo dos anos foi essencial neste debate, pois continha uma análise cuidadosa e extensa sobre essa relação e outros impactos gerados pela privação da terra.

A junção entre o argumento jurídico e a contextualização histórica e social cumpre um papel muito importante nos pedidos de medida cautelar. É necessário mostrar, o que ao menos auxilia na persuasão da Comissão, como a gravidade, a urgência e o dano se inserem em uma estrutura mais ampla de violação de direitos e como a medida cautelar, ainda que obviamente não solucione o problema estrutural, pode cumprir um papel vital na preservação de alguns direitos que são essenciais nessa luta maior. Neste caso, a luta maior pelo acesso ao território tradicional.

Essa dimensão política, porém, surge pelos dois lados. A relação entre a Comissão Interamericana e o Brasil, naquele momento, não era das melhores. O incidente em Belo Monte tinha ocorrido há relativamente pouco tempo e a Comissão talvez não quisesse abrir outro flanco de possíveis ataques. Ambos os casos tratavam de povos indígenas, ainda que sob perspectivas muito diferentes. Após diversas trocas de informações, o andamento do pedido pareceu travar.

Por outro lado, a tramitação do pedido criou um fluxo entre os atores envolvidos, fortalecendo a parceria, e pressionou o Estado a se movimentar, ainda que de forma muito incipiente, por exemplo, formulando e aprovando um Plano de Segurança para parte do Estado do Mato Grosso do Sul para a proteção de algumas aldeias indígenas, ainda pendente de implementação efetiva.

Durante esses meses, outros atores se somaram ao processo e passaram a compor essa frente de direito internacional dos direitos humanos na proteção do povo Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul. De forma temporária ou permanente, a Advogados Sem Fronteira, a Associação de Juízes pela Democracia, a Anistia Internacional e a Fian atuaram, ou atuam, nesta direção. Esta última organização, a Fian Brasil e a Internacional, aproximou-se mais fortemente na construção dessas iniciativas, principalmente pelo fato de que já desenvolviam há anos um trabalho junto aos Guarani-Kaiowá sob outra perspectiva, a da segurança alimentar. Passamos a formular outras estratégias de incidência internacional.

No âmbito do Sistema Interamericano, passamos a apostar nas audiências temáticas como outra possível forma de pressão. Além da tramitação de casos individuais e da concessão de medidas cautelares, que poderíamos chamar de tutela protetiva direta da Comissão Interamericana, o órgão também possui a função de promoção e monitoramento dos direitos humanos nas Américas. Uma das formas pelas quais a Comissão desempenha este papel é por meio de audiências temáticas concedidas durante seus períodos de sessões. Qualquer organização ou grupo pode solicitar uma audiência sobre o tema de direitos humanos que lhe pareça especialmente relevante. A Comissão recebe estes pedidos e escolhe aqueles que lhe parecerem mais relevantes naquela conjuntura – ao menos em tese, pois parece que, na prática, há outros fatores políticos que influenciam a decisão da Comissão de outorgar ou não uma audiência.
Solicitamos no final de 2012 uma audiência temática para tratar do acesso à terra dos povos Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul. Se por um lado a medida cautelar seria uma forma indireta de abordar o assunto, pois seria difícil conseguir uma cautelar que lidasse diretamente com o acesso à terra, por outro a audiência temática nos dava essa liberdade. Ocorre que a audiência não nos foi concedida.

A leitura das organizações envolvidas no pedido foi a de que poderia ser complicado para a Comissão trabalhar o tema do acesso ao território de povos indígenas diretamente, até mesmo em uma audiência temática. Da mesma forma que havíamos trabalhado a medida cautelar como meio indireto de atacar o problema, pensamos em lidar com a solicitação de audiência temática da mesma forma e pedimos, para o último período de sessões, que ocorreu em outubro e novembro de 2013, uma audiência sobre a situação dos defensores de direitos humanos no Brasil, sendo que, no próprio pedido, indicávamos que trataríamos especificamente daqueles defensores e defensoras que atuam na temática terra e território.

Desta vez, a audiência foi concedida e conseguimos tratar da violência contra os Guarani-Kaiowá e da falta de uma política e prática diligentes na demarcação de terras pelo Estado brasileiro. Não entraremos nos detalhes da audiência – ela está disponível na íntegra na página da Comissão Interamericana.3 O importante deste relato é notar como um aparente fracasso, do ponto de vista técnico-jurídico, pode levar a resultados positivos, e talvez um dos mais importantes seja, precisamente, a melhor articulação entre as organizações e os movimentos que se unem para incidir e litigar acerca do tema.

Um segundo exemplo de litígio estratégico mostra outro campo de possibilidade: o caso Urso Branco, também em sede de medidas cautelares. O Presídio Urso Branco, oficialmente chamado de Casa de Detenção José Mário Alves da Silva, foi inaugurado em 1996 em Porto Velho, Rondônia, com o intuito inicial de abrigar apenas 360 presos provisórios.

Em dezembro de 2001, o Juiz da Vara de Execuções Penais, Arlen Silva de Souza, ordenou ao então diretor do presídio, Weber Jordiano Silva, “que todos os apenados da denominada ‘Cela Livre’4 sejam recolhidos nas celas, até ulterior deliberação deste Juízo, sob pena de responsabilidade. Que a partir desta data não está autorizado nenhum apenado a ficar na condição de ‘cela livre’”.5

A equipe responsável por cumprir a ordem, no dia 31 de dezembro de 2001, decidiu por retirar dos pavilhões os presos considerados como mais perigosos, principalmente por colocarem em risco a vida dos presos encarcerados no chamado “seguro”, onde se internam os detentos ameaçados de morte. Na noite do dia seguinte, 01 de janeiro de 2002 – devido ao fato de que presos de grupos criminosos rivais foram colocados na mesma cela – deu-se início a uma longa rebelião que resultou em dezenas de mortos.
Uma semana depois, quarenta e sete dos presos sobreviventes ao massacre e ameaçados de morte foram transferidos para celas e, novamente, presos de facções distintas foram agrupados. No dia 18 de fevereiro do mesmo ano três presos foram assassinados enquanto eram transferidos para o “seguro”.

Como medida protetiva, a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Porto Velho e a Justiça Global enviaram um pedido de medidas cautelares à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e solicitaram a transferência dos quarenta e sete sobreviventes ameaçados de morte para outra unidade prisional6 e a reforma do presídio. Como resultado, no dia 14 de março de 2002 a CIDH outorgou medidas cautelares a favor dos internos de Urso Branco.

Em razão do descumprimento das medidas outorgadas, a Comissão solicitou à Corte Interamericana de Direitos Humanos que emitisse medidas provisórias para proteger a vida e a integridade pessoal dos internos. A medida foi concedida no dia 18 de junho de 2002, requerendo medidas similares àquelas anteriormente solicitadas em relação ao sistema prisional, como a adoção de “todas as medidas que sejam necessárias para proteger a vida e integridade de todas as pessoas recluídas”, porém incluindo uma requisição mais concreta: “a apreensão das armas que se encontram em poder dos internos” (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2002). Essa diferença de tratamento em relação a Urso Branco é um ponto marcante que se replica em resoluções posteriores da Corte.

Em sua segunda resolução acerca do caso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos solicitou ao Estado e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos que tomassem as medidas necessárias para a criação de um mecanismo de coordenação e supervisão do cumprimento das medidas provisórias. A decisão da Corte fugia de seu padrão usual no tratamento à questão penitenciária.

Devido à inércia estatal, a Corte Interamericana de Direitos Humanos reiterou suas anteriores requisições através da sua terceira resolução, no dia 22 de abril de 2004, destacando a necessidade do Estado e da Comissão tomarem providência para “coordenar e supervisionar o cumprimento das medidas provisórias ordenadas pela Corte” (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2004).

Apenas em 2006 foi constituído um instrumento responsável por esta supervisão, a Comissão Especial Urso Branco. Composta por representantes do Estado – nível federal e estadual – e pelas organizações que peticionaram junto ao Sistema Interamericano, seu trabalho foi alvo de severas críticas por estas últimas. Sua ineficácia inicial fica evidenciada pela repetição de sua pauta ao longo dos seus primeiros dois anos de funcionamento, culminando com o desligamento das organizações peticionárias do espaço em 2008.

No mesmo ano, por outro lado, tivemos a apresentação de um pedido de intervenção federal, perante o Supremo Tribunal Federal, pelo Procurador-Geral da República, após provocação pelas organizações que litigavam o caso no SIDH, levando à decretação de estado de emergência no Estado de Rondônia. O pedido foi feito em outubro daquele ano. Em resposta, o governador do Estado de Rondônia decretou estado de emergência e a consequente interdição parcial do presídio em dezembro por decisão da 1ª Vara de Execuções e Contravenções Penais de Porto Velho.

A respeito dos processos de natureza administrativa e judicial relativos à penitenciária Urso Branco, em 2009 ocorreram os dois primeiros avanços mais significativos. Foi prolatada sentença de pronúncia acerca da chacina de 2002 e sentença favorável em uma Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público do Estado de Rondônia em 2000 requerendo a realização de reformas e contratação de pessoal para os presídios Ênio Pinheiro e Urso Branco.

Em 2010, após o primeiro julgamento acerca da chacina de 2002 que resultou na morte de pelo menos vinte e sete pessoas, resultando em dez absolvições e oito condenações, as entidades peticionárias voltam a participar das reuniões da Comissão Especial, e em agosto de 2011 a Corte emitiu uma de suas mais importantes resoluções, decidindo pelo levantamento das medidas provisórias em 25 de agosto de 2011. Seu pano de fundo foi a audiência pública realizada durante o 92º Período Ordinário de Sessões da Corte Interamericana, que ocorreu no mesmo dia.

No dia anterior, representantes da União, do Governo do Estado de Rondônia, do Ministério Público, da Defensoria Pública e do Poder Judiciário do Estado de Rondônia assinaram o Pacto para Melhoria do Sistema Prisional do Estado de Rondônia e Levantamento das Medidas Provisórias Outorgadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, com a interveniência da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Porto Velho e da Justiça Global.

O acordo traz cinco eixos de atuação que elencam aproximadamente cinquenta ações. Os eixos são: investimentos em infraestrutura; dimensionamento e qualificação do quadro de pessoal; apuração dos fatos e responsabilização; aperfeiçoamento dos serviços, mobilização e inclusão social; e combate à cultura da violência.

Em tese sobre o caso Urso Branco, Camila Serrano Giunchetti trata da efetividade do Sistema Interamericano, começando por uma análise da interrelação entre este e as instâncias nacionais. Segundo a autora, a Corte operou como uma esfera de influência, não se sobrepondo às instâncias nacionais, mas tampouco aceitando a atitude omissiva por parte do Estado (GIUNCHETTI, 2010, p. 184), o que ficaria expresso pela criação da Comissão Especial. A autora destaca uma das contribuições do caso como sendo a criação de um mecanismo de supervisão, o que aparece em apenas dois outros casos: a sentença no caso do Massacre de Mapiripán e a medida provisória do Centro Penitenciário da Região Centro Ocidental (Cárcel de Uribana), casos, respectivamente, da Colômbia e da Venezuela.

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3.  Considerações finais

Na ponderação entre urgência e impacto de longo prazo, que forma de atuação nos sistemas internacionais de proteção pode ser pensada a partir dessas experiências? Talvez uma primeira contribuição seja a percepção de que o longo prazo é algo dado. Nas relações construídas ao longo das diferentes histórias institucionais, incluindo organizações da sociedade civil e movimentos sociais, essas metas surgem naturalmente dos debates e trocas antes do surgimento de uma possível emergência.

A realidade imediata do presídio Urso Branco e o assassinato da liderança Guarani-Kaiowá apenas evidenciam problemas de fundo que já eram visualizados pelas organizações envolvidas nas temáticas: o superencarceramento e o abandono dos presídios e a não demarcação de terras indígenas e o incremento da violência contra povos originários. O litígio estratégico começa a ser desenhado em um espaço onde os compromissos finais – uma nova política de segurança e penitenciária e a demarcação das terras Guarani-Kaiowá – não são negociáveis ou discutíveis.

Atentar para a urgência não é deixar para um segundo momento o estabelecimento de metas de longo prazo. Pelo contrário, é uma oportunidade para se problematizar e impulsionar medidas na direção dessa meta, ao menos dentro da visão do que é um trabalho em direitos humanos defendida neste artigo.

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Notas

1. Para uma discussão mais aprofundada destas raízes: Coral-Díaz, Londoño-Toro e Muñoz-Ávila (2010).

2. Para mais informações, consultar o relatório “As Violências contra os Povos Indígenas em Mato Grosso do Sul” (CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO, 2011).

3. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/audiencias/hearings.aspx?lang=es&session=132. Último acesso em: Fev. 2014.

4. “Cela livre” é o nome dados aos presos que trabalham nas dependências da unidade, como na limpeza, e são de confiança da administração da unidade prisional. O nome pode variar de acordo com o Estado. Por exemplo, em Pernambuco se usa o termo “chaveiro”.

5. Ofício nº 4794/01/VEP, de 20 de dezembro de 2001.

6. Nesse momento, o pedido de medida cautelar se referia a um elenco determinado de indivíduos.

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Referências

Bibliografia e outras fontes

CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. 2011. As Violências contra os Povos Indígenas em Mato Grosso do Sul. E as resistências do Bem Viver por uma Terra Sem Males. Dados: 2003-2010. Mato Grosso do Sul: CIMI/CNBB. Disponível em: http://www.cimi.org.br/pub/MS/Viol_MS_2003_2010.pdf. Último acesso em: jun. 2014.

CONTRERAS, Juan Carlos G. (Coord.). 2011. Modelo para armar: litigio estratégico en derechos humanos. México D.F.: Comisión Mexicana de Defensa y Promoción de los Derechos Humanos A.C.

CORAL-DÍAZ, Ana Milena.; LONDOÑO-TORO, Beatriz; MUÑOZ-ÁVILA, Lina Marcela. 2010. El concepto de litigio estratégico en América Latina: 1990-2010. Vniversitas, Bogotá, Colombia, n. 121, p. 49-76, jul./dic.

COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (CIDH). 2002. Caso da Penitenciária Urso Branco. Medidas Provisórias solicitadas pela Comissão Interamericana De Direitos Humanos a Respeito da República Federativa do Brasil. Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos, 18 jun., ponto resolutivo 1. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/medidas/urso_se_01_portugues.pdf. Último acesso em: jun. 2014.
______. 2004. Caso da Penitenciária Urso Branco. Medidas Provisórias a Respeito da República Federativa do Brasil. Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos, 22 abr., ponto resolutivo 2. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/medidas/urso_se_03_portugues.pdf. Último acesso em: jun. 2014.

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GIUNCHETTI, Camila Serrano. 2010. Globalização e direitos humanos. Estudo acerca da influência da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre as instituições domésticas: o caso do presídio “Urso Branco” (RO). 195 f. Tese (Doutorado em Relações Internacionais) – UnB, Instituto de Relações Internacionais, Brasília.

REKOSH, Edwin; BUCHKO, Kyra A.; TERVIEZA, Vassela (Ed.). 2001. Pursuing the public interest: a handbook for legal professionals and activists. New York: Columbia Law School.

SKILBECK, Rupert. 2013. Litigating in the Public Interest. In: OPEN SOCIETY JUSTICE INITIATIVE. Litigation report: Global Human Rights Litigation. New York, Oct. p. 1-46. Disponível em: http://www.opensocietyfoundations.org/sites/default/files/global-litigation-report-12102013.pdf. Último acesso em: 5 fev. 2013.

Sandra Carvalho

Sandra Carvalho é Coordenadora-Geral e Pesquisadora na organização de direitos humanos Justiça Global.

Email: sandra@global.org.br

Original em português.

Recebido em março de 2014.

Eduardo Baker

Eduardo Baker é Advogado na organização de direitos humanos Justiça Global, Mestre em Direito Penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Doutorando em Direito pela PUC-Rio.

Email: eduardo@global.org.br

Original em português.

Recebido em março de 2014.