Ensaios

Os direitos humanos na implementação dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio11. Texto editado a partir da palestra proferida pelo autor no IV Colóquio Internacional de Direitos Humanos. São Paulo,  12 de outubro de 2004.

Fateh Azzam

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RESUMO

Este artigo discute a implementação dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio sob a perspectiva legal e de defesa dos direitos humanos, caracterizando o hiato existente entre as abordagens que focalizam os direitos humanos e as que se concentram mais nas necessidades de desenvolvimento. Apresenta uma nova interpretação do litígio de interesse público e da análise orçamentária, requerendo uma cooperação mais estreita entre os ativistas de direitos humanos e as organizações especializadas em desenvolvimento. Defende também a adoção de estratégias que articulem a participação da sociedade civil com as ações do governo, incluindo planos nacionais de ação voltados para aspectos específicos dos Objetivos do Milênio – por exemplo, a redução da pobreza –, nos quais se atribua um papel de liderança aos “conselhos nacionais”. Finalmente, faz um apelo para a inclusão dos refugiados e de outros migrantes forçados, populações que estão entre as mais marginalizadas e que, com freqüência, são excluídas dessas preocupações.

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O IV Colóquio Internacional de Direitos Humanos teve por tema a análise do paradigma dos direitos humanos como conceito legal e a importância de seu papel no cumprimento da Declaração e dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM).1  Ocorreu no momento em que se aproximava a fase de avaliação intermediária desses Objetivos. Conforme os organizadores do colóquio observaram, o documento sobre os ODM faz apenas ligeiras referências aos direitos humanos e ao Estado de Direito, mas não contém mecanismos que garantam justiciabilidade aos cidadãos e não adota, de forma geral, uma linguagem jurídica. Ao contrário, é elaborado como um “pacto entre nações”, um documento de estrutura ampla que utiliza indicadores econômicos e demográficos como medidas de progresso; um exercício numérico baseado em necessidades, por assim dizer; e uma lista de intenções sobre o que precisa ser feito. A premissa é que essa é com certeza a função dos governos responsáveis pelo bem-estar de seus cidadãos.

Entretanto, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em sua visão geral dos Objetivos, considera a responsabilidade conjunta das nações, dos cidadãos e da comunidade internacional para sua implementação. Promove atribuições para os movimentos sociais e a sociedade civil mobilizada pressionarem os governos a agir, embora pouco ofereça em termos de mecanismos para tanto.2

A prática tem demonstrado com freqüência que a pressão da sociedade civil e as enérgicas reivindicações de direitos podem certamente ser bem-sucedidas, apesar da relutância dos governos. Afinal, o próprio regime de direitos humanos deve muito de seu desenvolvimento e de seu crescimento às organizações não-governamentais. Também nessa arena, os ativistas de direitos humanos, os advogados e as organizações não-governamentais têm um importante papel a desempenhar nos esforços para alavancar os ODM, mas é um papel pelo qual precisam lutar por si mesmos, e que requer uma visão mais ampla, para levá-los além dos estreitos limites dos padrões de ativismo estabelecidos. Devem testar sua criatividade e reavaliar algumas de suas estratégias, inclusive as de litígio, tornando-as mais pertinentes à tarefa específica, além de buscar novas estratégias mais apropriadas e eficazes. Os Objetivos oferecem oportunidade e também um conjunto de objetivos de certa forma concretos, que podem desafiar o ativismo em direitos humanos para que ingresse em novas áreas de atuação.

Caracterizando os hiatos

A existência de uma controvérsia, ou de um perceptível desligamento entre a linguagem de direitos humanos e a dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, é sintoma de uma diferença maior entre as abordagens baseadas em direitos e aquelas baseadas em necessidades de desenvolvimento. Apesar do compromisso de universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos, originalmente apresentado de modo formal na Declaração de Viena e no Programa de Ação de 1993,3  poucas organizações de direitos humanos articularam de fato estratégias eficazes para a defesa e a promoção de direitos econômicos, sociais e culturais, além de apresentar relatórios alternativos à Comissão de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Existem, obviamente, exceções notáveis de iniciativas bem-sucedidas em matéria de prática jurídica; estratégias e tentativas de desenvolver ações jurídicas envolvendo direitos econômicos, sociais e culturais vêm crescendo aos poucos.4  De fato, vários programas interessantes têm sido articulados em diferentes regiões do mundo, em especial nas Filipinas, na Nigéria, em Bangladesh e em diversos países da América Latina.5  No conjunto, entretanto, o compromisso com a indivisibilidade de direitos permanece mais no campo verbal. Firmemente dedicados a estratégias de demandas judiciais diretas no trabalho com direitos civis e políticos, os advogados de direitos humanos têm apresentado maior dificuldade em lidar com os padrões menos rígidos e, talvez, menos claros, dos direitos expressos no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC).

Certamente é injusto caracterizar a divisão entre as abordagens pelos direitos e pelo desenvolvimento como uma falta de interesse, ou uma visão estreita por parte dos advogados. Da mesma forma que os direitos são interdependentes e indivisíveis, assim também são os gigantescos problemas do mundo em desenvolvimento, que se encontram tão interconectados a ponto de ficarmos desnorteados, sem saber por onde começar. Os problemas de desenvolvimento deficiente resultariam simplesmente de falhas na liderança, de corrupção e falta de acesso político para os cidadãos isolados do contexto global? A democratização na esfera nacional traria soluções, ou a democratização na esfera internacional traria uma distribuição mais eqüitativa da riqueza global? Seria o sistema econômico mundial tão injusto e iníquo que manteria o Sul em um patamar inferior, ou isso decorreria apenas da má utilização nacional dos recursos disponíveis em cada país e do predomínio de conflitos armados? Os direitos civis e políticos trarão desenvolvimento sustentável, ou a democratização resultará de melhores condições econômicas e da garantia de direitos econômicos, sociais e culturais? O que vem primeiro: a galinha ou o ovo?

Um exemplo é minha região, no Oriente Médio e na África Setentrional, onde a maioria dos países padece com regimes autoritários e uma quase total negação dos direitos políticos e econômicos dos cidadãos, devido à falta de participação democrática nos processos de decisão em políticas que afetam nosso cotidiano. Regimes autoritários também indicam uma relativa fraqueza dos sistemas jurídicos e falta de independência do Judiciário, resultando principalmente em um “direito do Estado” em vez de um “Estado de Direito”. Adicionando-se um pouco de corrupção em vários níveis, torna-se dificílimo para o Estado e suas instituições lidarem de modo eficaz com os problemas da pobreza, ainda que o queiram. Esse fato tem levado a maioria dos ativistas a priorizar os direitos civis e políticos em detrimento dos direitos econômicos, sociais e culturais, na crença de que sem democracia e respeito aos direitos políticos humanos – amplamente definidos – nenhum dos outros direitos pode ser alcançado. Dessa forma, assistimos nos últimos tempos a uma proliferação de apelos por reformas políticas, econômicas, jurídicas e outras, por maior participação dos cidadãos comuns na tomada de decisões e na elaboração de políticas e, em menor grau, por descentralização. Em nossa região, muitos desses apelos por reformas são efetuados pela elite política local, incluindo as organizações de direitos humanos – e na maioria das vezes permanecem circunscritos a elas. Repetem a mesma lógica do statu quo ao supor que, uma vez ocorrida a mudança no topo, tudo o mais virá em seu devido tempo.

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A busca de estratégias criativas

Então, como prosseguir na elaboração de estratégias de direitos humanos que possam ser relevantes para os Objetivos do Milênio? Seriam nossos métodos usuais – documentação e relatórios, denúncia pública, assistência judicial e litígio em casos individuais – relevantes e eficazes nessas circunstâncias? Deveríamos tentar desenvolver novos enfoques, mais condizentes com a abordagem baseada em necessidades dos ODM e acrescentar além disso uma visão fundamentada em direitos? A seguir, apresentamos algumas reflexões sobre oportunidades que podem estar disponíveis para advogados e ativistas de direitos humanos. Cada uma delas, claro, exigiria maiores reflexões e planos estratégicos antes de se tornar viável.

Litígio de interesse público

Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio não são compromissos legais nem individualizados e não possuem mecanismos para sua implementação, salvo uma exigência sucintamente explicitada para que a Assembléia Geral avalie o andamento e para que o Secretário-Geral da ONU “divulgue relatórios periódicos a serem considerados pela Assembléia Geral, que sirvam de base para futuras ações”.6  Esses relatórios são de natureza abrangente, atuando mais como apelos e estímulos à comunidade internacional do que como um conjunto de direitos. No entanto, talvez seja possível, e mesmo vantajoso, recorrer ao litígio de interesse público para que avance a implementação dos Objetivos do Milênio.

Esse tipo de litígio em geral aparece sob a forma de ações coletivas e ações contra o Estado e seus organismos, ou contra cidadãos e empresas, “em favor do interesse público”. Entretanto, nem todos os países contam com o dispositivo legal de ações coletivas, e a lei de interesse público em geral não é individualizada, ou seja, baseada em reivindicações de uma pessoa específica contra o Estado – embora processos judiciais individualizados possam ser utilizados para estabelecer precedentes e com isso contestar ou confirmar determinados princípios ou exigências de interesse público. Ações judiciais de interesse público são sempre um assunto arriscado, pois não se podem prever as decisões dos tribunais, ou esperar que sejam sempre a favor da percepção individual de “interesse público”.7

Com tais advertências em mente, podemos ainda considerar que as ações de interesse público podem representar uma estratégia viável para realizar avanços nos Objetivos do Milênio. Seria interessante adotar indicadores, já que os ODM podem oferecer uma medida relativamente clara do desempenho de um Estado e, em particular, de sua vontade política de implementar ao menos algumas de suas obrigações nas esferas de direitos sociais e econômicos. A dificuldade, todavia, está na definição da natureza das obrigações do Estado em relação a seus cidadãos, além do quadro em geral subentendido de realizações progressivas dentro do “máximo dos recursos disponíveis”. Podem os advogados de direitos humanos buscar obrigações legais mais claras e específicas, transferindo-as ao Estado para que possam formar a base para o litígio de interesse público?

Uma abordagem possível talvez consista na utilização do Projeto da Comissão de Direito Internacional sobre Responsabilidade dos Estados, que – embora primordialmente centrado nas relações entre Estados – dispõe de uma análise útil e interessante que pode ser adaptada a nossas necessidades. Nesse projeto, a Comissão apresentou uma análise das obrigações legais dos Estados segundo a lei de tratados. Dependendo da obrigação em questão, a Comissão definiu dois tipos inter-relacionados: obrigação de “resultado” (impõe um dever de assegurar que um resultado específico seja alcançado); e obrigação de “meios” ou “conduta” (o dever legal de continuar a atuar para alcançar um resultado, quer este seja ou não definitivamente alcançado).8  Com base nessa análise, pode-se dizer que a natureza da obrigação dos Estados de implementar a maioria dos direitos garantidos pelo Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais é um compromisso de conduta. O Estado-Parte do Pacto, com seu Executivo, seus ministérios e outras instituições e órgãos, precisaria mostrar que todos os meios disponíveis estão sendo empregados dentro do “máximo dos recursos disponíveis”, até que se possa demonstrar que está havendo progresso na implementação dos direitos definidos no Pacto.

Os Objetivos do Milênio oferecem patamares intermediários e de longo prazo para ajudar a avaliar esse progresso. Utilizando-se, por exemplo, uma análise comparativa do número de crianças no curso primário (Objetivo 2) ou do número de meninas em cursos primários e secundários (Objetivo 3) em 2000, em comparação com as matrículas em 2005 e 2010, teremos um indicador para avaliar se o empenho do Estado tem sido consistente para cumprir ao menos parcialmente os Objetivos, e se ele está obtendo êxito ou, pelo menos, alcançando alguns resultados. A utilização do conceito de “obrigação estatal” pode fortalecer os argumentos legais relativos ao alcance progressivo dos direitos econômicos e sociais com base nos parâmetros definidos pelos Objetivos aos quais um Estado está comprometido em virtude de sua filiação à ONU.

Análise orçamentária

Outra estratégia desenvolvida em algumas regiões refere-se ao uso da análise orçamentária como ferramenta para medir o comprometimento do Estado com direitos econômicos, sociais e culturais, em geral, que com certeza pode ser útil para implementar os Objetivos do Milênio.9  A destinação anual de verbas orçamentárias pelos Estados fornece excelentes indicadores de seu comprometimento com o progresso em diversas áreas, especialmente quando se faz a comparação com os dispêndios militares. Um exemplo impressionante foi apresentado pela Oxfam em 2000, ao prever que se fossem adicionados 8 bilhões de dólares anuais ao orçamento atual – quantia equivalente a algo em torno de quatro dias da despesa militar global –, seria possível universalizar a educação básica.10

Recorrendo mais uma vez às referências dos Objetivos do Milênio, um estudo das destinações orçamentárias estatais em saúde, educação e revitalização econômica forneceria indicadores das tentativas realizadas pelos Estados para atingir os Objetivos. Admite-se que é difícil um julgamento definitivo do sucesso ou do fracasso de estratégias estatais específicas pela simples análise das verbas reservadas a cada programa. Investir dinheiro em um problema não significa, em princípio, resolvê-lo, e se o orçamento estatal para educação ou saúde tiver sido duplicado, não significa que o índice de mortalidade infantil foi automaticamente reduzido pela metade. Entretanto, combinar a revisão de estratégias e seus efeitos intermediários com o acompanhamento do orçamento contribui para avaliar os esforços feitos e indicar se está havendo progresso nessas áreas, no âmbito dos ODM.

Devemos observar que os processos de análise orçamentária variam muito – alguns são elementares, outros extremamente complexos. E quanto mais complexo é o processo, maior a capacitação necessária para sua implementação. Desnecessário dizer que essa capacitação não costuma fazer parte da qualificação dos ativistas de direitos humanos, pois são mais afinadas com o campo de trabalho de economistas, demógrafos e estatísticos. Quando a análise orçamentária é necessária em áreas específicas, como saúde ou educação, os especialistas é que estarão capacitados para analisar os dados. A essa altura, é essencial que os ativistas de direitos humanos envolvidos na implementação dos Objetivos façam alianças com organizações e especialistas em desenvolvimento e serviços.

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Construindo pontes com organizações de desenvolvimento

O fato de os ativistas e as organizações de direitos humanos não serem especialistas em todos esses campos explica de alguma forma por que há tão poucos trabalhos que tratem de direitos econômicos, sociais e culturais, em relação aos estudos jurídicos sobre a análise e o escopo dos direitos humanos. Educadores, organizações de desenvolvimento, prestadores de serviços médicos e cientistas sociais, de modo geral, possuem as habilidades necessárias para analisar dados em suas respectivas áreas de trabalho, e é por isso que devemos procurar construir pontes e alianças entre eles e os advogados de direitos humanos. Os ativistas dedicados aos direitos humanos e os que estão fora dessa área específica devem apoiar reciproca-mente suas ações, pela troca mútua de uma abordagem baseada em direitos, com os dados e conhecimentos necessários para avaliar os avanços, fortalecer os argumentos legais e conduzir a defesa dos direitos humanos a partir do conhecimento claro e especializado da situação real no setor.

Apresso-me a acrescentar que têm havido tentativas de unir os paradigmas de direitos humanos e os de desenvolvimento. Algumas organizações de desenvolvimento e de atendimento social já realizaram essa união, com crescente uso da linguagem de direitos. Por exemplo, organizações dedicadas à promoção das mulheres ganharam nova vida com a promulgação da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. A Convenção propiciou-lhes um conjunto claro de padrões e patamares mínimos que de imediato começou a ser utilizado em todos os trabalhos, desde atividades de geração de renda para mulheres até educação, batalhas contra a violência doméstica e pela participação política. De maneira equivalente, as ONGs de atendimento social não tardaram em se apropriar dos dispositivos da Convenção sobre os Direitos da Criança e a utilizá-los; vimos proliferarem os programas educacionais sobre os direitos da criança e as novas reivindicações de verbas para a educação e a assistência infantis.

Também é possível construir pontes no contexto da estratégia para as ações de interesse público e de seu impacto. Ativistas de direitos humanos podem encarar as organizações que prestam serviços sociais como clientes para trabalharem juntos pela realização de um ou mais dos Objetivos do Milênio, ou colaborar com essas organizações de maneira mais genérica, aderindo a estratégias legais e outros tipos de atuação na busca de mudanças reais. Além disso, funcionários dessas organizações podem ser treinados para atuar como paralegais, com participação mais direta em estratégias judiciais e na prestação de serviços jurídicos e aconselhamento a seus clientes, identificando eventualmente processos que estabeleçam precedentes para casos semelhantes, e abrindo caminho para novas idéias e abordagens para o trabalho jurídico de interesse público.

Em suma, o ativismo em direitos humanos teria muito a ganhar com um relacionamento mais estreito entre advogados e especialistas de áreas como saúde, educação, desenvolvimento etc. A especialização em ciências sociais, se combinada com conhecimentos de direitos humanos e utilizando os Objetivos do Milênio como critério e padrão de comparação, possibilitaria pressionar o Estado, dentro do sistema jurídico, para a obtenção de mudanças e para a implementação dos Objetivos.

É importante observar que a implementação dos Objetivos do Milênio pode agregar força e argumentos significativos para atividades em andamento, de acordo com o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Os relatórios alternativos preparados pelas organizações de direitos humanos para a Comissão de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais ganham força quando existe cooperação entre organizações de desenvolvimento e outras organizações relevantes nessa área. Já observamos o claro impacto dos relatórios do Índice de Desenvolvimento Humano e como os significativos dados e informações que fornecem têm ajudado os ativistas de direitos em suas demandas públicas e privadas por mudanças.

Planos nacionais de ação

Diversos países estão adotando “planos nacionais de ação” com relação a vários temas: crianças, mulheres, direitos humanos etc. Essa estratégia compromete o Estado e seus cidadãos com uma série de medidas de âmbito nacional para aperfeiçoar o desempenho e promover as necessárias melhorias na qualidade de vida, a fim de atingir as metas desses planos. Trata-se de uma estratégia especialmente viável e reconhecida, na qual o plano nacional tem sido estruturado como resultado de um amplo processo consultivo, envolvendo o governo, a sociedade civil, organizações não-governamentais, acadêmicos e, algumas vezes, órgãos internacionais como as agências intergovernamentais da ONU. Por definição, os Objetivos do Milênio são de longo prazo e requerem um esforço plurianual e pluripartidário, sujeito a avaliação e revisão constantes. Conforme o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) reitera: “A participação nacional – por governos e comunidades – é a chave para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. De fato, os Objetivos podem promover o debate democrático, e os líderes ficam mais propensos a praticar os atos necessários para atingi-los quando são pressionados pelas populações envolvidas”.11

Dessa forma, um plano de ação nacional deve ser o mecanismo para a implementação dos Objetivos do Milênio. Trabalhando com organizações da sociedade civil, inclusive as de desenvolvimento e serviço social, mas também com órgãos governamentais, as organizações de direitos humanos podem exercer uma liderança jurídica para a articulação de um Plano Nacional que se destine a promover a firme implementação de tais objetivos.

Está crescendo a ação dos chamados “planos e estratégias para redução da pobreza”, com o objetivo de desenvolver planos nacionais coerentes para reduzir a pobreza e, por conseqüência, implementar os Objetivos do Milênio. Cada vez mais, esses planos têm sido cobrados dos governos e Estados – pelos países doadores e pelas instituições financeiras internacionais – como precondição para a ajuda ao desenvolvimento. Entretanto, surgem debates cáusticos em torno do comércio internacional e do protecionismo de mercado praticado por países desenvolvidos, das políticas de instituições financeiras internacionais, das exigências de privatização e reformas de base, como também das políticas tarifárias. Tudo isso tem um efeito direto e freqüentemente nocivo em relação à pobreza global. A esse respeito, o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas aponta as políticas das nações desenvolvidas como fomentadoras – se não causadoras diretas – da pobreza e esclarece que, se for para implementar os ODM, será necessária uma cooperação em nível mundial para reavaliar tais políticas.12

A maneira de desenvolver os planos e estratégias para redução da pobreza é tão importante para a eficácia e a legitimidade potenciais de um plano nacional de ação quanto a existência desse tipo de programa. Há consenso em relação ao fato de que as perspectivas de êxito são maiores quando o plano é elaborado em conjunto, de maneira participativa e como resultado de um esforço nacional de colaboração, envolvendo todos os setores da sociedade. Um esforço nacional unificado e coerente a esse respeito eliminaria diversas lacunas. Ampliaria a cooperação entre as organizações de direitos humanos e as de desenvolvimento, e entre elas e o governo. Tal empenho também ajudaria a abrandar as linhas de confronto  – que em geral resultam de conflitos sobre direitos civis e políticos  – entre os Estados autoritários e os ativistas de direitos humanos. Os ativistas de direitos humanos podem encontrar uma causa comum com seus governos, ajudando, por meio do plano nacional, a fortalecer os esforços oficiais para ter voz e negociar um espaço na ordem econômica internacional.

Ainda assim, é também importante os ativistas de direitos humanos se assegurarem de que os planos nacionais (de redução da pobreza ou de implementação dos ODM) sejam de sua alçada e estejam de fato embasados em garantias de padrões mínimos, segundo as leis internacionais de direitos civis, políticos, econômicos, sociais e de outras frentes. Alguns trabalhos importantes já foram realizados nesse sentido e podem ser úteis. Por exemplo, é possível obter esclarecimentos junto ao Gabinete do Alto Comissariado para os Direitos Humanos, que em 2002 patrocinou uma ampla e detalhada discussão sobre um conjunto de projetos de diretrizes para redução da pobreza sob uma abordagem de direitos humanos. Esses projetos de diretrizes incluem, inter alia, definições, exigências e critérios para ações em direitos humanos na área de direitos econômicos, sociais e culturais, bem como debates sobre o âmbito de cada um desses direitos e, por fim, importantes questões relativas a mecanismos de controle e responsabilidade pela prestação de contas.13  Outra boa fonte é o trabalho completo e excelente que está sendo realizado sobre direito a moradia e, de forma mais ampla, sobre direitos econômicos, sociais e culturais pela Habitat International Coalition.14

Conselhos nacionais

Com ou sem planos nacionais de ação, alguns Estados adotaram modos alternativos de atuar em determinadas áreas, ou em torno de temas específicos. O Egito, por exemplo, conta com um Conselho Nacional para a Infância e a Maternidade, órgão semi-oficial que tem como responsabilidade principal promover o bem-estar de famílias e crianças. Recentemente houve intensa cooperação desse conselho com organizações de direitos da criança que agregaram a dimensão de direitos humanos a sua atuação, e também com outras organizações da sociedade civil e instituições intergovernamentais como o PNUD, o UNICEF e o ACNUR. Destaca-se ainda a atividade do Conselho Nacional da Mulher, que enfatiza em sua agenda os direitos das mulheres estabelecidos na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e está aberto ao recebimento de queixas, à prestação de assistência jurídica e à orientação para reparação de danos.

Esses organismos, inclusive os comitês nacionais de direitos humanos, nos lugares em que existem, podem desempenhar um papel de liderança, centralizando os esforços da sociedade para melhorar a qualidade de vida em seus grupos-alvo. No Egito, tais organismos podem muito bem assumir as propostas dos Objetivos do Milênio relativas a educação, e a meninas e mulheres, por exemplo. Com seu caráter semi-oficial, têm condições de incentivar e promover a cooperação entre o governo e a sociedade civil na articulação e na implementação de planos nacionais de ação, e avaliar os avanços, mesmo sem a existência de um plano nacional. No entanto, deve haver pressão para que ocorram tais ações, especialmente porque a eficácia desses comitês nacionais ainda não teve uma avaliação completa. Os ativistas de direitos humanos desempenham aqui um importante papel como catalisadores e instigadores, atuando, de modo geral, como sentinelas do trabalho dos comitês nacionais.

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Uma nota sobre refugiados e outros migrantes forçados

Refugiados e outros migrantes forçados constituem uma categoria negligenciada em nossos conceitos de direitos humanos, e com freqüência os relegamos ao regime jurídico de refugiados, excluindo-os da arena jurídica de direitos humanos, mais ampla e mais completa. De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, havia 17,1 milhões de pessoas refugiadas e internamente deslocadas no final de 2003.15  Mais de 66% dos refugiados mundiais se encontram em países em desenvolvimento e metade deles nos 49 países menos desenvolvidos.16  Esses percentuais alcançariam patamares mais elevados se fôssemos considerar as vítimas de deslocamentos internos, os trabalhadores migrantes, os trabalhadores domésticos e o crescente número dos chamados “migrantes irregulares” e de vítimas de tráfico de pessoas.

O empenho para implementar os Objetivos do Milênio, que focaliza primordialmente os mais pobres dos pobres em todo o mundo, precisa incluir essas populações marginalizadas, devido às dificuldades específicas encontradas por elas, como a falta de acesso a certos privilégios concedidos unicamente aos que gozam do status de cidadãos. Refletindo sobre o fato de os direitos econômicos, sociais e culturais serem universais, e sabendo que a maioria deles não se aplica apenas aos cidadãos, mas também a todos que vivem dentro da jurisdição de um Estado, os ativistas de direitos humanos devem procurar assegurar a inclusão de refugiados e outros migrantes forçados. Permitir que os migrantes forçados sejam excluídos das estatísticas ou dos esforços nacionais e globais de defesa ao se promover e implementar os Objetivos do Milênio seria o mesmo que criar uma mera ilusão de progresso. Além disso, essa inclusão pode muito bem contribuir para melhorar suas condições e as principais causas de sua privação e da migração forçada, nas esferas política, econômica e de segurança.

Conclusão

As diversas estratégias e modalidades de ação sugeridas acima são reflexões iniciais sobre o papel dos direitos humanos na implementação dos ODM. Ativistas de direitos humanos, advogados e organizações têm, potencialmente, o importante papel de catalisadores, ao estimular as ações que têm os Objetivos do Milênio tanto como referência quanto como critério, reunindo diferentes atores sociais com base nos direitos humanos. Com os direitos humanos no foco central do “interesse público”, os ativistas podem analisar as políticas orçamentárias e incumbir-se de questões legais para controlar a obrigação estatal de utilizar todos os meios dentro dos recursos disponíveis para implementar os ODM e os direitos econômicos e sociais de modo mais amplo. A clara interdependência de direitos é um trunfo importantíssimo para esses ativistas, e sua dinâmica participação para acionar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio seria vantajosa para o desenvolvimento de novas estratégias voltadas à promoção dos direitos econômicos, sociais e culturais, bem como para realimentar seus trabalhos em direitos civis e políticos.

Aos ativistas de direitos humanos, os Objetivos do Milênio também oferecem uma oportunidade de encontrar uma causa comum com seus governos, na confrontação com poderosas forças econômicas e políticas mundiais. Mas mesmo onde os governos estão menos dispostos a adotar estratégias colaborativas, os esforços de cooperação de ativistas com outros atores da sociedade civil, local, regional ou global podem gerar estratégias e causar pressão significativa nas esferas local e nacional, para minorar as condições de pobreza.

Para realizar tudo o que foi acima exposto, deve-se adotar uma visão abrangente e estratégias inclusivas, com a perspectiva de integrar direitos e atores em todas as esferas.

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Notas

1.Ver Resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas, A/RES/55/2 de 18 set. 2000.

2. “Millennium Development Goals: A compact among nations to end human poverty”. UNDP, Human Development Report 2003. Disponível em http://www.undp.org/hdr2003/pdf/hdr03_overview.pdf. Acesso em 31 jan. 2005.

3. Resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas, A/Conf. 157/23 de 12 jul. 1999.

4. Para uma discussão mais abrangente das estratégias adotadas em diversas regiões do mundo ver: International Human Rights Internship Program, “Ripple in Still Water: Reflections by Activists on Local and National-Level Work on Economic, Social and Cultural Rights”. Washington: IIE-IHRIP, 1997. Para sugestões e propostas de estratégias, ver também “Circle of Rights”. Washington: IIE-IHRIP, 2000.

5. Ver Willem Van Genugten & Camilo Perez-Bustillo, The Poverty of Rights: Human Rights and the Eradication of Poverty. Londres/Nova York: Zed Books, 2001.

6. “Millennium Development Goals […]”, parágrafo 31 (op. cit., nota 2).

7. Para uma visão mais abrangente das diversas estratégias jurídicas de interesse público, ver Mary M. McClymont & Stephen Golub (eds.), Many Roads to Justice: The Law Related Work of Ford Foundation Grantees around the World.Nova York: The Ford Foundation, 2000.

8. Artigos 20 e 21 de “Draft Articles on State Responsibility”. Yearbook of the International Law Commission, vol. 11, Parte 1, 1977.

9. Ver Maria Socorro Diokno, A Rights-Based Approach to Budget Analysis. Washington: Institute for International Education/International Human Rights Internship Program, 2000.

10. “Education-Africa: Calls for Global Campaign to Abolish Primary School Fees”. Inter Press Service, 6 dez. 2000. Disponível em http://www.aegis.com/news/ips/2000/IP001209.html. Acesso em 31 jan. 2005. Ver, ainda, o interessante quadro apresentado em Duties sans Frontières: Human Rights and Global Social Justice. Genebra, International Council on Human Rights Policy, 2003, p. 5. Disponível em http://www.ichrp.org/ac/excerpts/137.pdf. Acesso em 31 jan. 2005.

11. Ver “Millennium Development Goals […]”, p. 1 (op. cit., nota 2).

12. Idem, pp. 11-13, para a visão do PNUD sobre o papel da dívida, dos recursos e de outras políticas internacionais que afetam a implementação dos ODM.

13. Ver “Poverty Reduction Strategies”, documento do Alto Comissariado para Direitos Humanos. Genebra, 2002. Disponível em http://www.unhchr.ch/development/povertyfinal.html. Acesso em 31 jan. 2005.

14. Ver especialmente a minuta do documento: “Holding Donors Accountable: An interactive training program for southern NGOs and grassroots organizations” e outros instrumentos e metodologias sobre moradia e demais direitos econômicos e sociais em Habitat International Coalition, Housing and Land Rights Network – Middle East and North África. Disponível em http://www.hic-mena.org. Acesso em 31 jan. 2005.

15. “Global Refugee Trends”. Genebra, UNHCR, jun. 2004, p. 1.

16. Core Group on Durable Solutions, “Framework for Durable Solutions for Refugees and Persons of Concern”. Genebra, UNHCR, maio 2003, p. 9.

Fateh Azzam

Fateh Azzam é diretor do Asfari Institute for Civil Society and Citizenship e Senior Policy Fellow do Issam Fares Institute for Public Policy and International Relations, ambos da Universidade Americana de Beirute. Ele atuou anteriormente como Representante Regional do Oriente Médio do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, foi diretor do Programa de Estudos sobre Migrações Forçadas e Refugiados da Universidade Americana do Cairo, oficial de Programa de Direitos Humanos da Fundação Ford em Lagos e no Cairo e diretor da organização palestina Al-Haq. Ele liderou o processo de criação do Arab Human Rights Fund (www.ahrfund.org) e é mestre em Direito Internacional dos Direitos Humanos pela Universidade de Essex.

Original em inglês. Tradução: Célia Korn.