Dossiê SUR Segurança Cidadã e Direitos Humanos

A agenda atual de segurança e direitos humanos na Argentina11. Por Paula Litvachky, Marcela Perelman e Victoria Wigodzky.

CELS

Uma análise do centro de estudos legais e sociais (CELS)

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RESUMO

O artigo propõe um balanço da agenda de segurança pública na Argentina no contexto regional. Neste sentido, a análise do primeiro ano da gestão do Ministério de Segurança (criado em dezembro de 2010) e a reflexão sobre algumas experiências específicas dialogam com a definição de um panorama regional em matéria de segurança e direitos humanos, com aspectos contrastantes. Embora as mudanças atuais no âmbito da política de segurança na Argentina possuam suas próprias características e ajustes, elas são marcadas por e estão ligadas a algumas tendências regionais. Esta avaliação leva em consideração tanto os avanços positivos referentes ao exercício do controle político em questões de segurança, quanto o impacto da agenda internacional de “novas ameaças” à segurança. Algumas dessas medidas aprovadas alertam para a maneira pela qual tendências menos democráticas em matéria de segurança aceitas internacionalmente permeiam decisões políticas locais.

Palavras-Chave

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Recentemente, os temas relativos à agenda de segurança cidadã e direitos humanos têm adquirido uma nova centralidade na Argentina. Duas experiências locais recentes podem ser destacadas como marcos que influenciaram fortemente o estado do debate no país.

Por um lado, organizações de direitos humanos como o Centro de Estudios Legales y Sociales(CELS) têm se envolvido cada vez mais no debate sobre políticas de segurança, contribuindo para a expansão e o enriquecimento da agenda tradicional de violência policial. Uma das estratégias tem sido promover, a partir de uma perspectiva de direitos e liberdades dos cidadãos, o Acordo de Segurança Democrática (ASD),1 criado em dezembro de 2009, que reúne diversos atores sociais e políticos que promovem soluções políticas eficientes para os problemas criminais.

Por outro lado, a criação do Ministério de Segurança da Nação (Ministerio de Seguridad de la Nación), em dezembro de 2010,2 deu início a uma nova etapa do governo civil, que gerou mudanças na histórica opção dos governos argentinos de delegar a questão da segurança aos próprios órgãos policiais.3

Neste artigo,4 analisamos algumas condutas adotadas pelo Ministério em seu primeiro ano de gestão, as quais supõem uma estratégia particularmente formulada com o objetivo de recuperar o controle político das forças de segurança e intervir em centros de poder autônomos, em especial a Polícia Federal Argentina (PFA). Situamos esta análise no marco de certas tendências regionais sobre segurança cidadã e descrevemos algumas das tensões que surgem entre segurança e direitos humanos a partir das discussões regionais e sua manifestação no âmbito interno. Por fim, descrevemos o ASD como um espaço de incidência e interlocução em políticas públicas de segurança que respeitam os direitos humanos.

A título introdutório, consideramos importante distinguir, na análise a seguir, o controle da segurança do controle das instituições de segurança. Trata-se de uma distinção analítica que enriquece a avaliação da agenda governamental – esta política, ao reforçar o controle institucional sobre forças de segurança, implica devolver a tomada de decisões operacionais sobre segurança para a esfera política.

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1. Controle da segurança e controle das instituições de segurança

A renúncia das autoridades políticas em exercer, na prática, o controle da segurança na Argentina se prolongou por muito tempo e atingiu diversas jurisdições, embora do ponto de vista normativo e hierárquico as forças policiais estivessem subordinadas às autoridades democraticamente eleitas desde a redemocratização em 1983. Isto significa que, em geral, o termo “autogoverno” advém da renúncia das autoridades políticas em se envolver na administração da segurança, seja porque acreditam que os próprios policiais possuem o conhecimento apropriado, ou porque creem que esta renúncia é uma condição para a governabilidade, dado o poder desestabilizador que as forças policiais têm exercido e a elas é atribuído.

Este “modelo delegatório” pressupõe uma renúncia dupla: tanto abdicação de exercer o controle sobre a segurança, quanto sobre as instituições policiais. Embora na prática ambas as questões estejam intimamente ligadas, vale a pena, na presente análise, distinguir o caráter duplo desta delegação. Por um lado, todo governo possui a responsabilidade de exercer a gestão civil e estratégica das polícias, o que pressupõe o controle pleno desta instituição. Por outro lado, a prevenção e sanção do crime e da violência, de modo eficiente e dentro dos limites legais, devem ser exercidas por meio de prioridades e estratégias de política criminal – entre outras questões – estabelecidas e conduzidas por autoridades governamentais, levando em consideração as problemáticas e os conflitos da sociedade.

A relação entre estas duas esferas se dá, em primeiro lugar, pelo fato de que a renúncia em controlar as forças policiais implica abdicar de estabelecer critérios de recrutamento, formação, controle, alocação de recursos, entre muitas outras questões sem as quais é impossível defender uma agenda de segurança que não seja aquela que emerge, de maneira automática, da própria organização policial. Em segundo lugar, porque a delegação favorece a cumplicidade e a participação policial em redes de crime organizado, responsáveis pelos problemas criminais de maior gravidade.

Embora o governo civil e político da segurança seja uma exigência fundamental dos organismos de direitos humanos e daqueles que defendem a democratização da segurança na Argentina, o fato das autoridades políticas assumirem o papel que lhes cabe na gestão da segurança é somente o primeiro passo para a promoção de políticas democráticas de segurança. Faz-se necessário analisar as políticas concretamente implementadas, as práticas policiais e seus efeitos para fazer uma avaliação substantiva da administração policial, com base em como as relações entre segurança e direitos humanos estão articuladas na prática, e não somente no plano discursivo.

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2. Primeiro ano do Ministério de Segurança da Nação: o exercício do controle da segurança

O Ministério de Segurança da Nação completou seu primeiro ano de gestão, cujo aspecto mais marcante tem sido a decisão de resgatar o controle da segurança para as autoridades políticas, antes de reformar o marco legal aplicável às polícias. Vale destacar que o novo Ministério tem adotado diversas ações que confirmam sua decisão de exercer o controle civil da segurança e das forças policiais federais, por meio da qual pôs fim à opção historicamente consolidada de delegar o controle da segurança e das instituições policiais às próprias polícias, especialmente a PFA. O conjunto de operações e de planos levado a cabo pelo Ministério compõe um novo padrão de políticas de segurança que promovem maior controle do território, da população e das forças de segurança.

No que diz respeito ao controle das forças de segurança, destaca-se, em primeiro lugar, a alteração das competências da PFA. Isto foi obtido, principalmente, por meio de quatro medidas de forte impacto simbólico e operacional. Em primeiro lugar, a transferência da administração dos passaportes da PFA, órgão que esteve historicamente a cargo da gestão deste documento crucial, para o âmbito do Ministério de Interior. Em segundo lugar, o deslocamento da PFA dos bairros do sul de Buenos Aires, nos quais seu envolvimento com redes locais de crime organizado constituía uma das principais características da criminalidade na região – onde a PFA foi substituída pela Gendarmería5 e a Prefectura,6 outras duas forças de segurança federais. Em terceiro e quarto lugares, a intervenção em duas questões outrora definidas de maneira autônoma pela PFA como parte da distribuição dos serviços de segurança, com frequência por meio de acordos legais ou não entre a polícia e particulares ou comerciantes da região, a saber: a gestão discricionária dos “serviços adicionais”7 e a centralização política da decisão sobre de que forma são distribuídos os serviços policiais nas ruas. Estas medidas, por sua vez, permitem realocar recursos da área de segurança para melhorar o serviço na Cidade Autônoma de Buenos Aires e, quando analisadas como um todo, mostram a intervenção em espaços-chave em que a PFA tradicionalmente havia exercido sua influência de maneira arbitrária, ilegal e altamente lucrativa.

Em segundo lugar, o conjunto de ações e diretrizes voltadas a moldar o perfil das instituições policiais e de seus agentes levou à intervenção em instâncias críticas da carreira policial e ao controle da atuação policial, incluindo medidas de reconhecimento de direitos dos policiais. Esta junção do controle com o “bem-estar policial”, nas áreas de atuação do Ministério, representa uma peculiaridade da atual administração – e vai ao encontro do reconhecimento regional de sua importância – que poderia fundamentar novos acordos entre as forças que apoiam um modelo oposto ao delegatório.8

No âmbito das medidas tomadas nas áreas críticas para a agenda de direitos humanos, destacam-se os projetos de regulamentação da atuação policial, um reconhecimento inédito do papel das forças federais de segurança durante o terrorismo de Estado praticado na Argentina durante a última ditadura militar, entre 1976 e 1983, bem como a inclusão de uma perspectiva de gênero em diferentes aspectos da administração.

Não obstante, as mudanças impulsionadas pelo Ministério têm alcançado um grau de institucionalidade ímpar e ainda são muito recentes para permitir uma avaliação de seu verdadeiro impacto em segurança e direitos humanos. Por exemplo, o marco legal aplicável às forças de segurança não foi reformado, situação que coexiste com a reforma incipiente das normas internas por meio de resoluções ministeriais. Durante seu primeiro ano e no contexto da campanha eleitoral que ocupou o ano de 2011, o Ministério não buscou reformar as leis orgânicas e estatutos das instituições federais de segurança, mudanças consideradas necessárias para elevar o sistema federal de segurança a um novo patamar. A estratégia de intervenção tem concentrado esforços mais em retomar as decisões operacionais e de gestão institucional das polícias do que em reformar as leis anacrônicas que estruturam sua atuação. No entanto, em relação às normas internas, uma série de resoluções ministeriais foi editada para reformar e dar mais transparência aos diversos regulamentos que as instituições haviam aprovado com significativo grau de discricionariedade e obscuridade.

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3. Tensões locais em segurança democrática e direitos humanos

O Ministério tem realizado um inédito envio em massa de gendarmes e membros da Prefecturapara as ruas da capital e da província de Buenos Aires. Especificamente, poucos dias após a sua criação, o Ministério deu início à Operação Sentinela, que ordenou o envio de 6 mil gendarmes a 24 distritos da Grande Buenos Aires. Por sua vez, a Operação Cinturão Sul intensificou a segurança e a vigilância nos bairros do sul de Buenos Aires, por meio do envio da GendarmeríaNacional e Prefectura, o que, como mencionado anteriormente, gerou a transferência imediata do poder territorial da PFA das regiões onde ela historicamente mantinha laços de cumplicidade com o crime e a violência.

Ambas as operações, ao lado do anúncio recente de criação da Polícia Preventiva de Bairro [Policía de Prevención Vecinal], constituem intervenções terrorialmente circunscritas nas áreas pobres, onde privações de direitos ocorrem com mais frequência. Entre os aspectos positivos destas medidas destaca-se, em primeiro lugar, a decisão das autoridades de segurança de priorizar a inclusão dessas áreas. Em segundo lugar, o envolvimento dos vizinhos dessas comunidades e assentamentos como interlocutores das autoridades políticas e beneficiários das políticas de segurança e não apenas – como historicamente tem-se construído – como ameaças a serem controladas.9 Em terceiro lugar, diferentes indicadores concordam que essas operações foram bem recebidas pela população beneficiada.10

No entanto, os efeitos dessas intervenções territoriais, diferentes em cada parte da cidade, levantam questões particularmente sensíveis em matéria de direitos humanos, por pressupor uma análise das relações entre pobreza e crime, problemática ainda não pacificada no debate local, mesmo entre aqueles que defendem políticas democráticas de segurança.11 A relação entre crime e pobreza tem sido um espaço complicado para o discurso de direitos humanos, entre outras razões, porque os pobres são as principais vítimas dos aparatos repressivos do sistema penal, e o simples fato de expô-los a essas instituições tem causado sérios riscos para seus direitos fundamentais.

Durante a campanha eleitoral de 2011, a necessidade de implementar “políticas preventivas integrais” que tratassem das causas da insegurança se tornou praticamente um lugar comum, ao longo de todo o espectro político. Os candidatos com diferentes visões sobre segurança, inclusive aqueles que defendem os programas mais autoritários, concordaram neste ponto. Assim, o argumento da relação entre desigualdade e insegurança – sem análises mais profundas – fundamenta, por um lado, programas protetores dos direitos de setores empobrecidos e, por outro, intervenções que criminalizam e geram ainda mais violência para os mesmos setores que se queria proteger. Com frequência, no entanto, a retórica politicamente correta sobre “o social” gera novas formas de criminalização da pobreza.

Em face das políticas atuais e da homogeneidade da retórica dominante em debates sobre segurança – seja ela investida de feições democráticas ou autoritárias -, faz-se necessário contribuir com elementos analíticos e empíricos para identificar critérios de avaliação de políticas que intervenham nestas questões; em caso contrário, o diagnóstico permanece, em geral, implícito. Estes critérios permitem que se avalie como essas políticas de envio de forças de segurança para certos territórios afetam os direitos de pessoas, em sua maioria pobres, que habitam esses locais.

Buscamos aqui chamar atenção para a necessidade de fortalecer os controles de todo tipo – políticos, judiciais e parlamentares, por parte de órgãos externos de controle e organismos de proteção de direitos – sobre as operações de segurança com uma abordagem territorial. As diferentes intervenções territoriais exigem controles específicos sobre elementos críticos da relação entre as forças de segurança e habitantes de regiões afetadas. Por exemplo, algumas práticas abusivas, como detenções informais e não registradas em vias públicas, escapam com frequência aos olhares dos controles tradicionais e, portanto, requerem a formulação de mecanismos especiais de controle.

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4. O caso argentino dentro do contexto regional

As reformas que têm ocorrido na Argentina nos últimos anos – e que se intensificaram a partir do início de 2011 – integram uma tendência regional que valoriza e prioriza, ao menos no plano discursivo, o foco na prevenção e responsabilização.12 Sem dúvida, a implementação, no âmbito local, destes conceitos é realizada de forma díspare e esporádica nos diversos países da região. Em geral, a retórica política e os avanços acadêmicos não têm sido suficientemente acompanhados por estratégias de segurança que priorizem, apliquem e defendam esses valores a médio e longo prazo.

Contudo, como descrito por diversos autores (UNGAR, 2011, p. 4-6; DAMMERT; BAILEY, 2005), na última década vários países da região incorporaram em suas políticas o modelo de “polícia orientada à solução de problemas” (ou problem-oriented policing); esta perspectiva concentra esforços na solução de conflitos frente a um contexto específico, priorizando a prevenção da criminalidade e a investigação de suas causas. Trata-se de uma política de segurança na qual, ao invés de agir de maneira somente reativa e em geral por meios repressivos, a polícia desempenha um papel proativo. No entanto, seu impacto em direitos humanos não tem sido suficientemente debatido e avaliado.

Embora as atuais mudanças na política de segurança na Argentina revelem suas próprias características e ajustes, eles se inserem no marco de algumas tendências regionais neste sentido com as quais dialogam. No entanto, tal como descrevemos na seção anterior, estas mudanças geram certas tensões em matéria de direitos humanos com as quais o poder político deveria lidar e que a sociedade civil deveria fiscalizar.13

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5. Tensões regionais sobre segurança democrática e direitos humanos

Os debates sobre segurança realizados no âmbito regional em diferentes fóruns multilaterais também têm permeado, de outra forma, o discurso e as políticas na esfera nacional. Nas últimas décadas, tem havido uma tensão crescente entre diferentes paradigmas de segurança na América Latina. Por um lado, alguns defendem que, para enfrentar problemas relativos à criminalidade e à violência, é necessário articular políticas que tenham como forte componente a capacidade de administração civil e política das instituições de segurança, sem sua militarização. O Relatório sobre Segurança Cidadã e Direitos Humanos, elaborado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2009)14 apresenta essa visão. Por outro lado, argumenta-se que a insegurança e a violência decorrem de “novas ameaças”,15 a partir das quais se define que certos atores ou grupos sociais devem ser controlados por meios políticos, pelo uso da força ou por meio de uma combinação de ambos. Esta visão opera essencialmente dentro de uma lógica amigo-inimigo, que permite duras intervenções com base na ideia de que os problemas ligados à segurança interna constituem uma ameaça à institucionalidade e até mesmo à estabilidade regional. A partir dessa perspectiva, afirma-se também a necessidade de profissionalizar as forças policiais, mas, na prática, isto é feito, com frequência, como a principal forma de “combater a insegurança”, dentro de uma lógica fundada na militarização.

Nos últimos anos, esses referenciais analíticos têm transparecido nos processos de negociação e discussão regionais.16 Em geral, as “novas ameaças” ainda ocupam papel central na definição de políticas de segurança e nas explicações para a criminalidade e violência na região. Em muitos casos, apela-se à articulação político-militar como resposta a problemáticas ou preocupações de caráter político, econômico ou social, referente à saúde pública ou ambiental (CHILLIER; FREEMAN, 2005). A referência a “novas ameaças”, tais como terrorismo, narcotráfico, tráfico de pessoas ou de bens, pretende expandir a definição tradicional de defesa nacional ao ponto de sobrepor este conceito a questões pertinentes à segurança interna, consideradas ameaçadas por aqueles conflitos supostamente novos e não convencionais. Tal perspectiva tem direcionado o debate na região nos últimos anos e tem feito com que o tema de segurança se torne uma questão crucial nas agendas políticas e sociais dos Estados.

Na Argentina, a separação entre segurança e defesa nacional tem sido uma questão institucional central no período de redemocratização.17 Com exceção de algumas conjunturas políticas e declarações isoladas feitas em contextos eleitorais, em geral, há um sólido consenso político sobre a necessidade de que esta separação seja mantida (CENTRO DE ESTUDIOS LEGALES Y SOCIALES, 2011, cap. II).18 No entanto, o debate na região sobre as novas ameaças questiona esta diferenciação, cujo histórico remete aos fortes processos de militarização da segurança interna em diversos países (particularmente no México e na América Central, mas também, de diferentes formas, no Brasil, Venezuela e Colômbia) (COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2009, p. 42-44).19

Neste campo, a posição do governo argentino é contraditória. Por um lado, o governo deixou claro em diferentes encontros regionais em 2011 que não apoia a tendência de militarização e de imposição de parâmetros regressivos em matéria de direitos humanos para políticas de segurança. Por outro lado, neste ano o governo argentino promoveu duas iniciativas preocupantes que, em certa medida, contradizem os discursos e posturas anteriormente adotados pelo governo.

A medida que mais contradiz os princípios do programa governamental tem sido a aprovação da chamada “lei antiterrorismo”.20 A lei reforma o código penal e dobra as penas aplicáveis a todos os delitos se for considerado que esteve presente “o objetivo de aterrorizar a população ou obrigar as autoridades públicas nacionais, governos estrangeiros ou agentes de uma organização internacional a agir ou deixar de fazê-lo” (ARGENTINA, 2011b).21

Há diversas críticas a essa iniciativa. Por meio de uma péssima técnica legislativa, essa reforma introduz um agravante em todos os crimes do código penal, com uma linguagem muito vaga que deixa a critério dos juízes a interpretação dos possíveis “objetivos terroristas” ou de extorsão de autoridades.22 Além disso, a reforma gera inconsistências internas no código penal. Por exemplo, altera-se a gradação das penas para permitir que crimes de menor gravidade, se cometidos “com objetivo terrorista”, sejam punidos com penas maiores em relação àquelas aplicáveis a tipos penais mais graves. Embora possam parecer detalhes técnicos, estas questões levam a refletir com serenidade os efeitos de reformas punitivas impensadas, que alimentam a “voracidade” dos sistemas penais.

Mais importante ainda, esta lei alinhou a Argentina com o processo regional de endurecimento da legislação penal em resposta ao terrorismo. Do ponto de vista da política internacional, a Argentina parecer ter atendido a uma demanda da Força-Tarefa de Ação Financeira (FATF, sigla original)23 – um organismo internacional, criado por ordem do G7, que reúne as principais economias do mundo -, sob ameaça de ser excluída do G20. No entanto, perdeu-se uma oportunidade de discutir a melhor forma de cumprir com as obrigações internacionais, sem enfraquecer as garantias constitucionais.

O segundo tema preocupante é a utilização de recursos militares para melhorar a vigilância e o controle das zonas fronteiriças do país. Em meados de 2011, o Executivo nacional lançou a Operação Escudo Norte (ARGENTINA, 2011a)24 para reagir, por meio do uso de radares e recursos militares, de maneira articulada com as forças policiais e de segurança, aos problemas transnacionais de segurança relacionados com narcotráfico, tráfico de pessoas e contrabando de bens. Em algumas províncias, essa medida foi divulgada como uma iniciativa para aumentar a capacidade de controle dos espaços aéreos, fluviais e terrestres.25

A operação prevê a atuação conjunta e coordenada entre o Ministério de Segurança da Nação e o de Defesa, muito embora o Executivo nacional tenha decidido, de maneira explícita no marco regulatório destas operações, manter a política de não intervenção das Forças Armadas em assuntos de segurança interna. Ela também esclarece que as operações decorrentes da identificação de ações ilícitas serão conduzidas pelas forças de segurança interna. Não obstante, esse tipo de intervenção contradiz esses princípios e deixa muitas perguntas. Em primeiro lugar, nota-se a assimilação dos problemas de segurança regional como “novas ameaças” e, portanto, a tendência de envolver (embora de maneira instrumental, para apoio tecnológico) as Forças Armadas em operações de segurança relativas a estes temas. Essa fragilidade da distinção entre defesa nacional e segurança interior preocupa, especialmente em um contexto regional de maior intervenção das Forças Armadas em conflitos internos, como mencionamos anteriormente.

Uma segunda questão relevante é a necessidade de estabelecer de que forma o controle político e civil da Operação Escudo Norte será garantido, uma vez que esta iniciativa inclui várias tarefas nas quais militares e policiais atuam em parceria. Neste sentido, pergunta-se como ocorre o controle do fluxo de informação de inteligência produzida neste tipo de operação de controle e vigilância, que, além da coleta de informação, envolve em muitos casos a criação de dinâmicas próprias de trabalho, o que viola a Lei de Inteligência Nacional 25.520.26 Desde 2008, informação obtida pelas Forças Armadas como parte dos “Trânsitos Aéreos Irregulares” (sigla original, TAIs)27 deve ser transmitida às autoridades civis do sistema de segurança interna. Em outras palavras, os operadores militares dos radares não podem desenvolver atividades de inteligência a partir dos dados obtidos, uma vez que não possuem o mandato para sistematizar ou analisar a informação. Embora uma resolução aprovada posteriormente em conjunto pelos Ministérios de Segurança e de Defesa estabeleça limites normativos compatíveis com a lei de inteligência nacional, isso ainda é preocupante, porque ali não está previsto expressamente que a condução e o controle sobre a transferência desta informação às forças de segurança serão tarefas realizadas exclusivamente na esfera civil.

Procuramos refletir aqui de maneira crítica sobre a influência na política local das agendas regionais e internacionais de segurança. A questão das “novas ameaças” tem influenciado as políticas governamentais na área de segurança – com a complexidade adicional de terem sido propostas por países com governos progressistas. A adoção da Lei Antiterrorismo, uma das principais medidas promovidas pela FATF, serve de alerta sobre a aceitação pela classe política local das tendências menos democráticas sobre segurança derivadas do âmbito internacional.

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6. A experiência do Acordo de Segurança Democrática

Como mencionamos anteriormente, a agenda de segurança e direitos humanos na Argentina foi renovada com a criação do Acordo de Segurança Democrática (ASD), no final de 2009. Diferentes atores sociais e políticos da Argentina uniram-se para identificar e promover acordos mínimos sobre estas questões. Neste sentido, o ASD surgiu como uma aliança entre diversos setores com o objetivo de formular e executar medidas de promoção de políticas eficientes que respeitem os direitos humanos, considerando a demanda pública por mais segurança. Assinado por mais de 200 políticos, personalidades do meio cultural, acadêmicos, representantes de organizações sociais e não governamentais e especialistas de diferentes áreas e alinhamentos políticos, o Acordo tem como fundamento um documento de dez princípios divididos em três eixos principais: as forças de segurança, o poder judicial e o sistema penitenciário.

6.1  A resposta do Estado ao problema do crime

Na Argentina, a ação do Estado frente ao aumento da violência e do crime, em sua maioria, tem sido limitada a respostas simplistas e autoritárias que consolidam ainda mais a ineficácia policial, judicial e penitenciária. Nos últimos anos, alguns processos de reforma das instituições de segurança tiveram resultados positivos, porém foram interrompidos com o retrocesso a políticas que haviam outrora fracassado.

6.2  O erro de políticas linhas-duras

As políticas linhas-duras não reduziram o crime; ao contrário, aumentaram a violência e, em alguns casos, ameaçaram a governabilidade democrática. Os aspectos recorrentes destas políticas linhas-duras incluem delegação do controle sobre a segurança à polícia, aumento das penas, enfraquecimento das garantias legais e políticas de encarceramento em massa com base no amplo uso da prisão preventiva. Os reiterados fracassos dessas políticas têm sido utilizados como justificativa para insistir nas mesmas receitas, em um ciclo irresponsável pelos resultados que geram. Essa sucessão de intervenções equivocadas dificulta a profissionalização das políticas de segurança e promove a ação de redes de crime organizado com a participação de agentes públicos.

6.3  A responsabilidade do Estado

O Estado possui a responsabilidade de assegurar à população o livre exercício e gozo de seus direitos. A construção de uma cidadania com respeito à lei é o ideal, mas, no caso de violação da lei, o Estado deve prover os meios necessários para identificar os responsáveis e puni-los.

Uma política criminal e de segurança adequada requer: uma polícia preventiva eficaz; alto grau de profissionalismo e remuneração adequada; justiça criminal que investigue e julgue em tempo oportuno aqueles que infringem a lei; garantia do pleno respeito às regras do devido processo e de defesa em juízo; e um sistema penitenciário que garanta condições dignas de encarceramento e execução da pena com vistas à ressocialização.

6.4  Uma concepção integral de segurança

Enfrentar de maneira eficaz o problema requer tratar das causas do crime e das redes de crime organizado com o objetivo de reduzir a violência em todas as suas formas. Uma concepção integral de segurança envolve tanto a prevenção da violência física, quanto a garantia das condições dignas de vida para toda a população, o que requer estratégias que tratem do problema como um todo, ligando as políticas de segurança a outras políticas públicas, e que complementem as ações do sistema penal com intervenções de todas as áreas do Estado. Estes recursos públicos devem ser distribuídos de forma igualitária e propiciar uma maior proteção para todos os setores excluídos, de modo a não agravar ainda mais os níveis de desigualdade.

Para avançar em uma abordagem integral e efetiva do problema de segurança, a formulação e execução de políticas democráticas deve surgir de diagnósticos baseados na informação precisa e acessível ao público em geral. Produzir esta informação é também de responsabilidade intransferível do Estado.

6.5  A gestão democrática dos órgãos de segurança

Todo governo possui a responsabilidade de exercer a gestão civil e estratégica das polícias, o que pressupõe o controle total da instituição. A prevenção e punição do crime, de modo eficiente e dentro dos limites da lei, requer um sistema policial estritamente subordinado às diretrizes de segurança pública, formuladas por autoridades governamentais. A experiência recente revela que a delegação desta responsabilidade permitiu a formação de “unidades policiais” autônomas, responsáveis por amplas redes de corrupção, a ponto de ameaçar, inclusive, a governabilidade democrática.

As diretrizes básicas para a modernização e gestão democrática dos órgãos de segurança são: a junção dos esforços policiais de segurança preventiva e investigação criminal; a descentralização institucional da organização policial ao nível distrital e comunitário; a integração da polícia com a comunidade e administração locais no que diz respeito à prevenção social da violência e do crime; o controle interno civil e o controle externo do desempenho e da legalidade; o sistema de formação e capacitação policial não militarizado e ancorado em valores democráticos; e o regime profissional baseado em um escalonamento único e levando em consideração especialidades policiais.

6.6  O desmantelamento das redes criminosas para reduzir a violência

As medidas estritamente repressivas adotadas a cada nova crise de insegurança concentram esforços em processar crimes de menor gravidade e acusados mais jovens, com base na falsa crença de que, desta forma, pode-se diminuir os níveis de criminalidade. No entanto, a realidade sugere que uma grande porcentagem dos crimes comuns está associada à ação de influentes redes criminosas e a um mercado ilegal de armas que põe em risco a vida e a integridade das pessoas.

Portanto, reduzir a violência que deixa a nossa sociedade em estado de choque requer direcionar os recursos de prevenção e investigação penal para desmantelar redes criminosas e mercados ilegais. O Ministério Público Fiscal, juntamente com autoridades do governo, desempenha um papel fundamental neste sentido. Uma polícia judiciária, sob o Ministério Público Fiscal, propiciará mais transparência para a investigação criminal preparatória.

6.7  A gestão policial não violenta no espaço público

A gestão democrática da segurança deve assegurar o controle sobre as ações policiais em operações realizadas em espaços públicos, como em eventos esportivos, concertos musicais, protestos e operações de desalojamento de pessoas. Isto requer que sejam estabelecidos parâmetros normativos aplicáveis à atuação policial em espaços públicos, de modo a assegurar o uso proporcional, racional e subsidiário da força, bem como pôr fim a práticas policiais contrárias a estes critérios.

6.8  O papel do sistema judiciário

O Poder Público e o Ministério Público são ambos responsáveis principais por promover políticas de segurança democráticas, para investigar de maneira rápida e eficaz os delitos e controlar o uso da prisão preventiva, as condições de detenção e a violência institucional.

6.9  O cumprimento das penas em um Estado de Direito

Na Argentina, há cerca de sessenta mil pessoas privadas de liberdade. Os centros de detenção apresentam condições desumanas; índices elevados de superpopulação em prisões, delegacias policiais e unidades de detenção juvenil; baixa reinserção social; prática sistemática de tortura e violência; e grande maioria de presos provisórios. Uma política de segurança democrática deve assegurar que o cumprimento da prisão preventiva e da pena ocorra em condições dignas que possibilitem a readaptação do condenado, e não contribuam ainda mais para a perpetuação e agravamento dos graves problemas de violência, injustiça e crime que essas penas se propõem a solucionar.

6.10   A necessidade de um novo acordo para promover  segurança em um contexto democrático

Para cumprir com a obrigação do Estado de propiciar segurança aos cidadãos no contexto desses princípios democráticos, é imprescindível construir um consenso político e social amplo que permita avançar na formulação e execução de políticas de curto, médio e longo prazos, voltadas a encontrar soluções imediatas e duradouras para as demandas sociais em matéria de segurança.

Em suma, consideramos que o ASD é uma iniciativa que abre oportunidades e espaços de diálogo que há poucos anos não existiam. Ele visa estabelecer um alicerce sobre o qual é possível construir propostas concretas de política pública em matéria de segurança que sejam eficientes e condizentes com os direitos humanos, com os princípios democráticos e com o Estado de Direito.28 O ASD ajuda a coordenar o trabalho e as visões de diferentes setores políticos, especialistas na área e organizações da sociedade civil, além de contribuir com um discurso alternativo à demagogia punitiva presente tanto no âmbito dos princípios normativos, quanto da formulação de políticas públicas.

Sem dúvida, o ASD enfrenta uma série de desafios futuros. Um deles diz respeito à necessidade de descer do plano macro, discursivo, para a esfera de propostas concretas de segurança, e eventualmente a uma reforma estrutural do sistema de segurança.29 Este esforço traz outro desafio: a necessidade de ampliar os acordos obtidos, “baixá-los” às diferentes esferas no país (províncias, governos locais/municipais, etc.), e compartilhar tais acordos com as diferentes instituições estatais relevantes. Desta forma, com base na avaliação realizada ao longo deste artigo, deve-se continuar a fortalecer e cooperar com o Ministério de Segurança, por meio do reconhecimento e apoio a medidas promissoras, promoção de uma estratégia de política pública, bem como monitoramento e questionamento em relação a aspectos preocupantes do ponto de vista da agenda de direitos humanos.

Em todas estas áreas, trata-se de fortalecer o conteúdo dessas políticas e manter um discurso que respeite os direitos humanos, sem deixar de ser propositivo e prático em assuntos relacionados à segurança cidadã. Considerando as complexidades políticas deste tema, é fundamental que atores políticos e sociais cheguem a um consenso mínimo, a partir do qual seja possível desenvolver propostas concretas que sirvam de alternativa para discursos retrógrados e linhas-duras que podem levar a retrocessos no campo dos direitos fundamentais.

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7. Notas sobre o novo período político e as prioridades para uma segurança democrática

Na Argentina, o ano de 2012 teve início com medidas para renovar e fortalecer a legitimidade de todas as esferas do governo e um horizonte livre, no médio prazo, de eleições. O caso do Ministério de Segurança demonstra que é possível intervir em esferas autônomas de poder policial – até mesmo na PFA – sem gerar grandes reações corporativas que ameaçem a célebre governabilidade. A degradação da Polícia Federal havia chegado a tal ponto que não somente esta instituição estava envolvida em atividades ilegais, como também havia abandonado quaisquer parâmetros de formação, avaliação ou profissionalismo. Este dado não é menos importante, uma vez que desafia o suposto realismo político local, segundo o qual fazer acordos com as polícias seria um prerrequisito para governar.

Neste sentido, analisar e avaliar as políticas de segurança sob a perspectiva do exercício do governo político pressupõe ser capaz de estabelecer o elo entre os aspectos normativos (os desenhos institucionais, mecanismos, leis e regulações), a cultura institucional com base na qual as autoridades políticas influenciam o exercício diário das forças policiais e, por fim, o possível impacto real nas práticas policiais. Do ponto de vista analítico, é comum ouvir que um processo de reforma, em geral, tem início no âmbito normativo, por ser mais difícil modificar a prática policial – a conhecida separação entre normas e práticas. No entanto, este raciocínio linear decrescente, que parte da reforma normativa para a prática, não necessariamente se aplica ao caso argentino atual.

O primeiro ano do Ministério de Segurança Nacional suscita dúvidas no que diz respeito ao arranjo normativo, à cultura institucional e às práticas policiais. A estratégia adotada pelo Ministério buscou recuperar o controle político da segurança e das forças dentro do marco legislativo já existente. Uma quantidade importante de resoluções ministeriais tem formado um novo marco regulatório para questões críticas. A partir desta análise, verifica-se que a reforma tem ocorrido principalmente no nível intermediário, gerando condições para mudanças de cultura institucional. O conjunto de decisões e medidas tomadas deixa claro para as forças policiais e para a comunidade em geral que o modelo histórico de autogoverno das forças de segurança na esfera federal está com os dias contados. No entanto, para que seja possível uma reforma profunda no sistema federal de segurança, a convivência deste novo estilo de gestão com as normas anacrônicas que regem as forças policiais deve dar vazão a um ordenamento normativo democrático. Isso requer uma estratégia de afirmação da autoridade política de segurança construída a partir da cultura e práticas policiais, para a realização da reforma necessária dos marcos legais.

Assim, para avançar nessa direção, é importante que o novo contexto inclua o compromisso de legisladores de diferentes inclinações políticas para com o programa proposto pelo ASD. No entanto, alguns acordos políticos multipartidários, obtidos no âmbito nacional no contexto do ASD, não correspondem ainda ao clima interno dos partidos, e são ainda mais fracos ou até mesmo inexistentes nas esferas provinciais e locais. Portanto, há a necessidade de medidas que fortaleçam o fundamento de acordos mínimos em torno da segurança em uma democracia, em especial para evitar que o tema seja manipulado e banalizado pelos meios de comunicação por representantes dos mesmos partidos políticos que, no âmbito nacional, apoiaram o ASD. Como um todo, o novo contexto apresenta condições favoráveis para avançar na reforma das leis que, desde a ditadura, regem as forças de segurança e na adoção de normas que estabeleçam um novo marco para o funcionamento institucional e a atuação das forças federais de segurança.

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Notas

1. Para mais informações, ver: . Último acesso em: 15 Jan. 2012.

2. A criação do Ministério foi uma das principais recomendações do ASD, embora uma série de fatores tenha contribuído para tanto.

3. Na Argentina, os ciclos reformistas do sistema de segurança da Província de Buenos Aires (1998- 2001 e 2004-2007) constituem a principal exceção ao modelo de delegação do controle das forças de segurança, acompanhada pela experiência de transferência do controle da Polícia Aeronáutica Nacional [Policía Aeronáutica Nacional – PAN] da esfera militar para a civil, o que resultou na criação da Polícia de Segurança Aeroportuária [Policía de Seguridad Aeroportuaria – PSA] em 2005. Em ambos os casos, o contexto de reforma institucional, que implicava a reformulação das normas e desenhos estruturais das respectivas forças de segurança, foi o impulsor do controle político.

4. A análise deste artigo se baseia no capítulo sobre segurança publicado em maio de 2012 (CENTRO DE ESTUDIOS LEGALES Y SOCIALES, 2012).

5. NT: Força de segurança, de natureza militar.

6. NT: A Prefectura argentina cumpre o papel da Guarda Costeira brasileira, mas se diferencia desta por ser uma força civil e não militar.

7. Os “serviços adicionais” são conhecidos localmente como a contratação da polícia para serviços de segurança em um local determinado, o qual constitui uma enorme fonte de renda administrada de maneira autônoma pela própria PFA.

8. Estas políticas coincidem com uma tendência na região em matéria de accountability policial, profissionalização e direitos dos policiais. Ver, por exemplo, a discussão sobre a Ouvidoria da Polícia no Peru [Defensoría de la Policía] no capítulo “Medidas para Enfrentar la Corrupción en la Policía Nacional del Perú: Logros, Dificultades y Lecciones” (COSTA; ROMERO, 2008).

9. Na Capital Federal, estes envios de forças de segurança têm sido acompanhados de debates sobre segurança com as comunidades locais. Nota-se que os resultados destes debates têm influenciado decisões operacionais, o que indica que o envio de forças de segurança para esses locais não visa somente conter o crime em áreas mais privilegiadas da cidade, mas busca especialmente reforçar a própria segurança nos bairros afetados por tais operações.

10. Esta conclusão é resultado dos debates participativos, de reclamações de moradores de bairros próximos para que estes sejam beneficiados pelo plano de segurança, de informações fornecidas por oficiais que trabalham no terreno, além de decorrer dos resultados obtidos em municípios afetados pela Operação Cinturão Sul, fato que é interpretado por especialistas como decorrência direta de operações de segurança nestas localidades.

11. Nos âmbitos regional e global, há vários estudos estatísticos que avaliam e analisam a relação entre fatores socioeconômicos e criminalidade. No entanto, em geral, estes estudos não consideram os impactos e as tensões em matéria de direitos humanos. Ver, por exemplo, Mark Ungar (2011, p. 95-99).

12. Estas tendências têm sido amplamente estudadas. Ver, por exemplo, Hugo Frühling (2006, 2007, 2011).

13. “Deve ser aceso um sinal de alerta quanto às leituras simplistas das experiências das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) nas favelas do Rio de Janeiro e à forma com que este modelo tem sido exportado para outros Estados do Brasil e também para a Argentina. A intervenção das UPPs – uma força de segurança especificamente criada para as favelas do Rio, no contexto da próxima Copa do Mundo de futebol e dos Jogos Olímpicos – é complexa, formulada especificamente para situações de crime e violência de maior magnitude do que aquelas encontradas na Argentina, tanto em termos quantitativos (em número de mortos, feridos e armas), quanto qualitativos. Defensores de direitos humanos têm criticado fortemente os impactos do controle social exercido pelas polícias pacificadoras nas favelas afetadas. No entanto, esta experiência está permeando o discurso político local, com poucas nuances.” (CENTRO DE ESTUDIOS LEGALES Y SOCIALES, 2012, p. 127-128).

14. O relatório reúne declarações e jurisprudência anteriores do Sistema Interamericano de Direitos Humanos e propõe parâmetros para os Estados em relação à formulação de políticas públicas de segurança. Um dos aspectos mais importantes é que tais documentos não se limitam apenas a ressaltar as obrigações negativas dos Estados, mas também tratam de obrigações positivas sobre a atenção a ser dada às vítimas de violência e crime, a prevenção, a investigação judicial (direito a garantias processuais e à proteção judicial), a governabilidade democrática da segurança, a profissionalização e modernização das forças policiais, os princípios de ação e protocolos sobre uso da força, o desenvolvimento de controles internos e externos e a divisão entre defesa nacional e segurança interna, entre outras obrigações.

15. Como explica Marcelo Saín (2001), “O termo ‘novas ameaças’ refere-se ao conjunto de riscos e situações conflitivas não tradicionais, isto é, não decorrentes de conflitos interestatais sobre fronteiras territoriais ou de concorrência por seu domínio estratégico, sujeitos em particular à solução por via militar com o emprego ou ameaça de emprego das Forças Armadas dos países beligerantes. Estas ‘novas ameaças’ têm gerado uma série de questões e assuntos que compõem a chamada ‘nova agenda de segurança’, a qual ressalta o narcotráfico, as guerrilhas, o terrorismo, os conflitos étnicos, raciais, nacionalistas, religiosos, etc., ou seja, questões que, de acordo com o marco institucional argentino, constituem problemáticas claramente sob o âmbito da segurança interna.”

16. Na região latino-americana, o ano de 2011 foi marcado por importantes discussões sobre segurança regional, com destaque para dois eventos hemisféricos em particular. Em junho de 2011, a Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) comemorou seu quadragésimo primeiro período de sessões em El Salvador, com o tema central “Segurança Cidadã nas Américas”. Em novembro de 2011, a OEA realizou a Terceira Reunião de Ministros de Segurança Pública das Américas [MISPA III, na sigla original], em Trinidad e Tobago, com foco em assuntos relacionados à gestão policial. Entre outros espaços onde temas de segurança regional são discutidos, pode-se mencionar a XIX Reunião de Altas Autoridades em Direitos Humanos e Chancelarias do MERCOSUL e Estados associados (RAADDHH), realizada em Assunção, Paraguai, entre os dias 15 e 17 de abril de 2011, onde foi realizado um seminário sobre Segurança Cidadã e Direitos Humanos. Nesta ocasião, o Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do MERCOSUL (IPPDH) e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) sugeriram que, na próxima reunião da RAADDHH, fossem discutido temas referentes à agenda de segurança cidadã e direitos humanos que poderiam ser levados adiante em um diálogo com os Ministros do Interior em conjunto com os Ministros de Justiça de diferentes Estados-Membros, com vistas a avançar na formulação de políticas para a região. Por outro lado, também foi realizada a XXI Cúpula Ibero-americana de Chefes de Estado e Governos, ocorrida em Assunção, Paraguai, de 28 a 29 de outubro de 2011, cujo tema central foi a “Transformação do Estado e desenvolvimento”. Os Chefes de Estado e de Governo emitiram um comunicado conjunto, público e especial sobre segurança pública cidadã, ressaltando, entre outras coisas, a importância da aplicação de políticas sobre Segurança Cidadã em seus respectivos territórios para avançar no processo de integração e segurança regionais. Além disso, eles enfatizaram que “o fortalecimento da capacidade dos Estados de prevenir e lidar com a delinquência e a violência deve ser necessariamente acompanhado do respeito irrestrito de suas instituições aos direitos humanos, dentro dos marcos legais nacionais e internacionais” (CUMBRE IBEROAMERICANA, 2011).

17. Muitas vezes, no debate local, algum candidato busca adotar essa visão e apresenta como solução aos problemas do crime o envolvimento das Forças Armadas na segurança interna. Em sua forma mais pura, estas propostas envolvem a ideia de pôr o Exército nas ruas, mas também poderiam ser mencionadas aqui abordagens militarizadas ao trabalho das polícias.

18. Ver também Marcelo Saín (2001), que expõe o consenso político existente para manter esta separação e as tentativas durante os anos 90 de intervenções pelas Forças Armadas em questões envolvendo narcotráfico.

19. Em seus artigos 100-105, o Relatório da CIDH refere-se especificamente a esta questão. Segundo este dispositivo: “Uma das principais preocupações da Comissão em relação às medidas adotadas pelos Estados-Membros no âmbito de política de segurança cidadã é a seguinte: o envolvimento das Forças Armadas em tarefas profissionais que, por natureza, deveriam ser de competência exclusiva das forças policiais. A Comissão tem enfatizado, em várias ocasiões, que cabe à força policial civil, eficiente e respeitosa de direitos humanos, combater a insegurança, deliquência e a violência no âmbito interno, dada a falta de treinamento adequado das Forças Armadas no que diz respeito à segurança cidadã.” (COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2009, art. 100, p. 42). “Na região, muitas vezes se sugere, ou até é mesmo colocado em prática, a transferência da responsabilidade pela segurança interna a oficiais militares, diante da escalada da violência ou da criminalidade. A Comissão tem também tratado desta questão, afirmando que argumentos deste tipo confundem ‘os conceitos de segurança pública e segurança nacional, embora não reste dúvida de que a criminalidade comum – por mais aguda que seja – não constitui uma ameaça militar à soberania do Estado.’” (COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2009, art. 103, p. 43). Em suas recomendações, a CIDH sugere: “prever nas normas jurídicas internas uma clara distinção entre as competências de defesa nacional, a cargo das Forças Armadas, e as funções referentes à segurança cidadã, sob a responsabilidade da polícia. Neste contexto, deve-se deixar claro que, em razão da natureza das situações que a polícia deve enfrentar, a instrução e treinamento especializados que as forças policiais recebem, e o histórico negativo na região de intervenção militar em questões de segurança interna; cabe exclusivamente às forças policiais a responsabilidade pelas funções vinculadas à prevenção, dissuasão e repressão legítima da violência e do crime, sob direção superior das autoridades legítimas do governo democrático.” (COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2009, p. 106).

20. O projeto de lei foi enviado pelo Poder Executivo à Câmara de Deputados em outubro de 2011, e incluído na pauta de sessões extraordinárias, e, portanto, foi objeto de apenas um breve debate parlamentar.

21. A Lei 26.734, sancionada em 22 de dezembro de 2011, promulgada em 27 de dezembro de 2011 e publicada no diário oficial no dia 28 de dezembro de 2011: 3o Artigo: “Quando algum dos crimes previstos neste Código tiver sido cometido com o objetivo de aterrorizar a população ou obrigar as autoridades públicas nacionais, governos estrangeiros ou agentes de uma organização internacional a agir ou deixar de fazê-lo, considerarse- ão as penas mínima e máxima em dobro.” (ARGENTINA, 2011b).

22. Este tipo de redação viola o princípio constitucional de legalidade que exige que os tipos penais sejam os mais precisos possíveis, para reduzir a margem de discricionariedade e arbitrariedade na aplicação da lei penal.

23. Veja as 40 recomendações da Força-Tarefa de Ação Financeira (FATF) em: <http://www.fatf-gafi.org/dataoecd/38/53/34030987.pdf>. Último acesso em: 15 Jan. 2012.

24. Decreto PEN 1091/11 (ARGENTINA, 2011a), prorrogado por um ano, segundo o Decreto 296/2011, de 30 de dezembro de 2011 (ARGENTINA, 2011c).

25. De acordo com o decreto PEN 1091/11, “as fronteiras nordeste e noroeste da REPÚBLICA ARGENTINA apresentam características montanhosas que facilitam a incursão no território nacional de organizações criminosas dedicadas ao tráfico ilegal de drogas, tráfico de pessoas, e contrabando de bens (ARGENTINA, 2011a, cons. 4). A operação foi estabelecida com o objetivo de “aumentar a vigilância e o controle do espaço terrestre, fluvial e aéreo dentro da jurisdição nacional nas fronteiras nordeste e noroeste da REPÚBLICA ARGENTINA, bem como a captura e entrega às autoridades judiciais dos invasores ilegais” (ARGENTINA, 2011a).

26. A Lei 25.520 estabelece em seu artigo 2º, inciso 4º, o escopo do trabalho de produção de inteligência pelas Forças Armadas: “Inteligência Estratégica Militar – entende-se por inteligência o conhecimento das capacidades militares e deficiências do potencial militar dos países relevantes do ponto de vista da segurança nacional, bem como da geografia das áreas operacionais estratégicas determinadas no planejamento estratégico militar.” (ARGENTINA, 2001).

27. Resolução conjunta MD 1517 e ex MJSy DH 3806, de 16 de dezembro de 2008.

28. Aliás, muitos deles reconhecem os parâmetros e o espírito do Relatório da CIDH mencionado anteriormente.

29. Um exemplo é a necessidade urgente de modificar as leis orgânicas e estatutos dos órgãos federais de segurança, bem como suas normas referentes a estas instituições, para estabelecer e acompanhar os processos de reforma e modernização da segurança pública, de acordo com princípios constitucionais e de proteção de direitos humanos. Por sua vez, isso pressupõe construir uma liderança política eficiente sobre o sistema policial que pode levar a uma mudança profunda de suas estruturas organizacionais e formas tradicionais de funcionamento. Ver CENTRO DE ESTUDIOS LEGALES Y SOCIALES (2011, p. 84 e seguintes).

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Referências

Bibliografia e outras fontes

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CELS

O Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS)* é uma organização que trabalha para a proteção e promoção dos direitos humanos. Desde a sua criação em 1979, em plena ditadura militar, o CELS tem lutado contra violações sistemáticas de direitos humanos na Argentina, por meio da pesquisa, documentação, denúncia e litígio em prol dos direitos fundamentais. Com a redemocratização em 1983, o CELS deu início ao seu trabalho com a consolidação do papel do Estado na proteção dos direitos humanos, influenciando a formulação e execução de políticas públicas. O CELS combate a impunidade em casos de graves violações de direitos humanos no período da ditadura, bem como em instâncias de violações estruturais de direitos humanos, cometidas na fase democrática, com vistas a fortalecer a vigência do Estado de Direito. Atualmente, o CELS trabalha com temas fundamentais sobre segurança cidadã, violência policial, condições de detenção, incluindo tortura; direitos econômicos, sociais e culturais; fortalecimento dos órgãos judiciais; expansão do acesso à Justiça a grupos vulneráveis; e democratização das Forças Armadas. Entre as estratégias de intervenção do CELS, estão pesquisa, ações de incidência e litígio estratégico com o objetivo de denunciar os padrões estruturais de violações de direitos humanos, questionar o conteúdo, orientação e execução de políticas públicas e demandar a proteção jurídica a pessoas e grupos vulneráveis.

* Para mais informações acesse http://www.cels.org.ar. Último acesso em maio de 2012.

Original em espanhol. Traduzido por Thiago Amparo.