Dossiê SUR Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

O caso da alocação indevida

Ann Blyberg

Direitos econômicos e sociais e orçamento público

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RESUMO

O artigo apresenta um breve histórico do desenvolvimento do trabalho sobre orçamento público em direitos humanos e busca explicar o significado desse trabalho. São abordados os diferentes enfoques – incluindo transparência, gênero e direito à alimentação – do trabalho atual e apresenta exemplos de alguns trabalhos realizados por organizações de direitos humanos em diferentes países. Resume também algumas estratégias empreendidas por organizações em seu trabalho sobre orçamento público em direitos humanos. A segunda parte do artigo concentra-se no ambiente no qual o trabalho é realizado e considera as oportunidades de seu desenvolvimento, bem como os desafios enfrentados por organizações na sua atuação. A última parte apresenta recomendações para iniciativas que devem ser implementadas pela sociedade civil, governos, órgãos intergovernamentais e doadores para promover e facilitar o desenvolvimento do trabalho sobre orçamento público em direitos humanos.

Palavras-Chave

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O trabalho sobre orçamento público em direitos humanos é como o de detetive. Como os detetives, analistas de orçamento público em direitos humanos investigam pistas. Como os detetives, eles também trabalham para estabelecer a relação entre as pistas e para compreender o que as pistas, vistas em conjunto, dizem sobre o que aconteceu e sobre “quem-foi-que-fez”. Certamente, analistas de orçamento não atraem o mesmo fascínio dos grandes detetives, nem estão cercados pelo mesmo ar de mistério e aventura. No entanto, seu trabalho é tão sério quanto, pois eles também estão no encalço de contraventores e eles também investigam o que frequentemente acaba revelando-se um crime.

Apesar de sua natureza aparentemente prosaica, o trabalho sobre orçamento público em direitos humanos tem crescido rapidamente em seu escopo, criatividade e impacto, nos últimos cinco anos. O trabalho sobre orçamento publico1 traz novos tipos de instrumentos investigativos para a defesa de direitos. Os resultados da análise orçamentária apresentam dados técnicos importantes para fundamentar demandas de direitos humanos – dados que são particularmente persuasivos pois derivam de números do próprio governo. O trabalho sobre orçamento, quando utilizado de maneira adequada, pode inclusive expor violações de direitos humanos que poderiam permanecer ocultas na complexidade dos relatórios financeiros governamentais. Ademais, uma abordagem de direitos humanos fortalece o trabalho sobre orçamento de organizações da sociedade civil ao incutir tais ações nas demandas morais dos direitos humanos e fundamentá-las em obrigações legais dos governos.

Grupos de diversos países contestaram políticas orçamentárias e gastos que privaram pessoas de sua subsistência, prejudicaram sua saúde, falharam em proporcionar sua educação básica ou afetaram negativamente seus direitos econômicos e sociais fundamentais. Essas organizações que trabalham com orçamento em direitos humanos pressionaram governos para liberar informações orçamentárias essenciais, de tal forma que as evidências pudessem ser examinadas à luz do dia. Elas pressionaram por processos orçamentários abertos, para que as pessoas pudessem descobrir o que acontecia e responsabilizar os violadores por suas ações. Em poucos anos, o trabalho com orçamento público mostrou-se uma ferramenta efetiva na realização dos direitos humanos.

As próximas páginas trazem um histórico do desenvolvimento do trabalho sobre orçamento em direitos humanos e apresentam alguns detalhes acerca dos aspectos práticos do trabalho de “detetive”. Elas explicam os diferentes enfoques e descrevem brevemente o que alguns grupos estão fazendo. Em seguida, o artigo resume algumas estratégias e metodologias utilizadas por organizações, bem como tendências, oportunidades e desafios do trabalho sobre orçamento em direitos humanos. A conclusão do artigo aponta recomendações para trabalhos futuros.

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1. Breve histórico

O trabalho sobre orçamento em direitos humanos é recente, não mais do que cinco a dez anos. Para compreender de onde veio e para onde vai, é necessária uma breve consideração sobre o amplo campo de trabalho sobre orçamento de organizações da sociedade civil, que se considera ter começado em meados da década de 1990. As razões atribuídas para o crescimento do trabalho de organizações da sociedade civil sobre orçamento são:

  • O fim da Guerra Fria e a crescente democratização de países no mundo todo, e particularmente de países do antigo bloco soviético, criaram um ambiente mais favorável ao crescimento e à influência da sociedade civil;
  • Durante o mesmo período, as Nações Unidas, o Banco Mundial e outras agências internacionais dedicaram crescente atenção à “boa governança” e seus componentes, que incluem transparência, redução da corrupção, entre outros. Essa ênfase na “boa governança”, ao mesmo tempo em que foi bem recebida por ativistas de direitos humanos, criou por vezes confusão e serviu como uma distração em relação às questões de direitos humanos. De qualquer forma, isto certamente afetou o desenvolvimento do trabalho sobre orçamento em direitos humanos;
  • Nas últimas décadas, houve uma crescente descentralização de governos em diversos países. Com essa descentralização e com o deslocamento para arranjos de governança e orçamento locais, muitas organizações de direitos humanos sentiram-se habilitadas a abordar questões de orçamento, pois orçamentos e gastos locais são mais facilmente compreensíveis e influenciáveis do que o orçamento central;
  • Nesse período, muitos parlamentares interessaram-se por questões de orçamento e seu papel nos processos orçamentários. Organizações da sociedade civil (OSC) viram uma grande oportunidade de influenciar o orçamento por meio do acesso e pressão aos parlamentares;
  • Houve ainda um significativo avanço tecnológico nas últimas duas décadas, particularmente no uso disseminado do computador. Análises orçamentárias frequentemente demandam muito cálculo. Antes do acesso a computadores, os recursos necessários para realizar cálculos sofisticados estavam simplesmente fora do alcance de boa parte da sociedade civil; e
  • Muitos doadores, em particular a Fundação Ford e, posteriormente, o Open Society Institute e outros, estavam dispostos a apoiar o trabalho de organizações da sociedade civil sobre orçamento.

O trabalho sobre orçamento em direitos humanos começou apenas alguns anos depois que o trabalho sobre orçamento em geral. As razões para o seu desenvolvimento são as mesmas, com um importante acréscimo: com o fim da Guerra Fria e suas disputas ideológicas, o campo dos direitos humanos conseguiu dar significativa atenção aos direitos econômicos e sociais (DESC). Ao passo que os gastos governamentais são necessários à realização de todos os direitos, devido ao papel central do Estado em prover educação, saúde e outros serviços sociais, a conexão entre gastos governamentais e direitos humanos é mais visível no caso dos DESC. Assim, conforme envolveram-se com o trabalho com os DESC, organizações de direitos humanos passaram a se interessar em aprender mais sobre orçamento público.

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2. “Trabalho sobre orçamento público em direitos humanos” — o que é isso?

Antes de abordar o estado atual do trabalho sobre orçamento em direitos humanos, talvez seja útil esclarecer o que a frase “trabalho sobre orçamento em direitos humanos” quer dizer. Muitas outras frases utilizadas para descrever esse trabalho incluem: “trabalho com orçamento desde uma perspectiva de direitos” ou “análise orçamentária e DESC”. Essencialmente, isso se refere ao trabalho que busca relacionar direitos humanos a orçamentos públicos e trabalho sobre orçamento com trabalho em direitos humanos.

Isso soa muito amplo, e atualmente é. Organizações que trabalham em certas áreas têm utilizado uma ou mais dessas frases para descrever seu trabalho, que está focado em:

  • Transparência orçamentária
  • Orçamento participativo
  • Orçamento para questões de gênero
  • Orçamento para defesa dos direitos das crianças
  • Orçamento focado em direitos “substantivos” (em oposição a processuais)
  • “Priorizando” direitos humanos nos orçamentos
  • Políticas macroeconômicas e DESC

Uma descrição mais completa dessas diferentes áreas de atuação pode ajudar a esclarecer quais trabalhos situam-se no âmbito do “trabalho sobre orçamento em direitos humanos”:

Transparência orçamentária: o desafio mais comum enfrentado por organizações da sociedade civil que trabalham com orçamento é acessar informações governamentais necessárias para analisar o orçamento. Assim, muitas organizações, ao menos no início, concentram sua atuação em pressionar o governo a disponibilizar com mais agilidade informações sobre orçamento. Seu trabalho frequentemente inclui um pedido para acesso facilitado a outras informações, tais como, por exemplo, estatísticas sobre frequência escolar ou taxas de imunização ou doença – informações essenciais para compreender as implicações dos números do orçamento. (Dados desagregados, ou seja, dados separados por características centrais como etnia, gênero etc., são particularmente importantes para o trabalho com orçamento em direitos humanos).

Organizações da sociedade civil que trabalham com orçamento estão, sem dúvida, preocupadas em acessar informações para seu próprio trabalho, mas antes de tudo lutam pela transparência e pelo acesso à informação pois acreditam que todas as pessoas no país deveriam ter acesso ao orçamento público. No entanto, transparência não se trata apenas em ter acesso, mas em compreender o orçamento. Considerando a complexidade da maioria dos orçamentos públicos, essa é uma tarefa difícil quando não se dispõe de treinamento e habilidades específicos. Em resposta, esses grupos frequentemente encorajam o governo a desenvolver um formato alternativo de orçamento – comumente chamado de “orçamento cidadão”— que é mais facilmente compreensível pelo público em geral do que o orçamento formal.2

Embora exista uma relação direta entre o trabalho sobre transparência orçamentária e direitos humanos, a maioria das organizações que lidam com transparência não utilizam de maneira explícita uma abordagem de direitos humanos – ainda que garantias nacionais e internacionais relativas ao acesso à informação3 poderiam claramente sustentar e fortalecer potencialmente esse trabalho. Um grupo que lida com questões de transparência utilizando uma abordagem de direitos humanos é o Muslims for Human Rights (MUHURI), organização não-governamental sediada em Mombaça, Quênia. O MUHURI monitora os gastos públicos sob o Constituency Development Fund (CDF) na Província Costeria do Quênia. Sob o CDF, cada membro do parlamento (MP) é autorizado a alocar recursos para apoiar projetos de desenvolvimento em sua base eleitoral. O CDF é muito popular, mas também controverso. Muitas pessoas e organizações estão preocupadas com a corrupção e com a má administração de recursos, já que o gerenciamento do CDF é cercado de segredos, sem um mecanismo efetivo de accountability. No início de sua atuação, o MUHURI teve dificuldade até mesmo em acessar informações de projetos apoiados pelo CDF. Quando finalmente conseguiram obter informações sobre 14 projetos em uma base eleitoral, organizaram uma audiência de um dia inteiro na qual participaram entre 1500 e 2000 pessoas. Organizações da sociedade civil capacitadas pelo MUHURI leram os resultados de sua avaliação dos projetos e convidaram os que ali estavam a formular questões aos representantes do CDF. Essa audiência demonstrou como cidadãos nas comunidades podem demandar maior transparência e accountability no orçamento público e em operações governamentais. ( Ramkumar; Kidambi, 2007).

Orçamento participativo: Esta é uma outra área do trabalho sobre orçamento em direitos humanos. Muitas organizações da sociedade civil estão envolvidas nesse trabalho, que pode ser dividido em duas grandes categorias: 1) trabalho relacionado a processos de orçamento participativo fomentado pelo governo – a experiência mais conhecida é a de Porto Alegre, Brasil;4 e 2) atuação de organizações não-governamentais para estimular o envolvimento da sociedade civil e sua influência na formulação e destinação dos orçamentos públicos (independente de qualquer iniciativa impulsionada pelo governo). Esse último é mais comum. Um exemplo do trabalho da sociedade civil para estimular a participação cidadã no processo de construção do orçamento é o do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE), no Brasil, que atua fomentando a educação pública de longo prazo sobre questões orçamentárias. O Instituto desenvolveu metodologias de formação para o público em geral e para lideranças comunitárias com o objetivo de promover a conscientização sobre orçamento e o fortalecimento da capacidade de monitoramento do orçamento público, inicialmente no Rio de Janeiro e, em seguida, em outros municípios. A organização desenvolveu ainda metodologias de ensino a distância, que alcança 350 participantes por ano (ROBINSON, 2006, p. 23).

Diversas organizações envolvidas em orçamento participativo referem-se ao direito das pessoas em participar dos assuntos governamentais, conforme assegurado tanto pela Constituição Federal e por leis ordinárias, quanto pela normativa internacional.5 Muitos outros grupos, no entanto, não se referem explicitamente às garantias de direitos humanos – e, de fato, os mecanismos internacionais de direitos humanos que defendem a participação são insipientes.

Orçamento para questões de gênero: Um numero significativo de organizações em todo o mundo está envolvido com orçamento de gênero, cujo objetivo principal tem sido dar visibilidade à questão de gênero nos orçamentos públicos.6 Em um exemplo desse trabalho, o Gender Budgeting Initiative (GBI), da Tanzânia, liderado pelo Tanzania Gender Networking Programme (TGNP), realizou pesquisas em equipes de três: um acadêmico (economista ou sociólogo), um ativista de ONG e um funcionário do governo. Utilizando ferramentas participativas, as equipes identificaram barreiras estruturais e sociais ao desenvolvimento de um orçamento progressista e aberto às questões de gênero, bem como a ausência de consciência de gênero dos policy-makers, dos funcionários que trabalham com orçamento e de atores da sociedade civil. Os relatórios foram disseminados a diversos atores da sociedade, incluindo organizações ativistas, órgãos públicos e agências externas. Os resultados foram compartilhados em oficinas e fóruns públicos com a sociedade civil, com doadores, policy-makers e tecnocratas que atuam em áreas de pesquisa, e com grupos de parlamentares, especificamente parlamentares mulheres e aqueles que participam ativamente em comitês como Finanças/Orçamento. Uma estratégia utilizada para a divulgação dos resultados foi a publicação de um conhecido livro chamado Budgeting with a Gender Focus. Além disso, foi iniciado um diálogo com policy-makers estratégicos, legislatura e partidos políticos no intuito de buscar mudanças positivas nas políticas, leis e programas de desenvolvimento discriminatórios, restaurativos e que não consideravam as questões de gênero ( Rusimbi, 2002, p. 119-125).

Ao mesmo tempo em que o trabalho sobre gênero no orçamento é motivado por preocupações acerca de inequidades e discriminação na alocação e despesas orçamentárias relativas à mulher, a maior parte desse trabalho não está explicitamente enquadrada na normativa internacional relacionada à discriminação de gênero, particularmente aquelas contidas na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW). Em 2006, no entanto, foi produzido um importante guia sobre como avaliar a adesão do governo às obrigações previstas no CEDAW por meio da análise orçamentária. Esse guia, Budgeting for Women’s Rights: Monitoring Government Budgets for Compliance with CEDAW (ELSON, 2006, p. 3), faz uma profunda análise da relação entre as obrigações do CEDAW e orçamentos públicos, propõe maneiras pelas quais a Convenção pode ser utilizada no trabalho com orçamento e ressalta o “valor agregado” da utilização de instrumentos internacionais como referência para a avaliação de um orçamento público com impacto nos direitos das mulheres. Espera-se que esse guia amplie o uso da abordagem de direitos humanos no trabalho sobre orçamento para questões de gênero.

Orçamento para defesa de direitos das crianças: Organizações da sociedade civil em muitos países trabalham com “orçamentos para crianças”, que são simulares aos orçamentos para gênero à medida que buscam compreender como e quanto o governo está alocando e gastando com programas que afetam crianças e qual o impacto do orçamento público na área. Uma das iniciativas precursoras sobre orçamento em direitos humanos foi desenvolvida pelo Children’s Budget Unity (CBU) do Institute for Democracy in South Africa (IDASA). Durante muitos anos, o CBU produziu relatórios que faziam uso das garantias de direitos humanos da Constituição sul-africana para analisar os recursos nas áreas de saúde, educação, moradia e desenvolvimento social para crianças com o intuito de oferecer recomendações específicas ao governo sobre como deveria estruturar seus programas e orçamento para cumprir suas obrigações legais em relação às crianças. O CBU trabalhou ainda para desenvolver a capacidade de crianças em monitorar o orçamento e participar da tomada de decisão nas áreas orçamentárias que os afetavam ( Streak, 2003, p. 2-3).

Trabalho com orçamento focado em direitos “substantivos” (em oposição a “processuais”): devido à complexidade das questões econômicas e sociais, como pobreza, fome e analfabetismo, e ao fato dos padrões internacionais de direitos humanos estarem em processo de desenvolvimento, a tarefa conceitual de relacionar direitos “substantivos” econômicos e sociais ao orçamento público é desafiadora. O trabalho com orçamento realizado até agora tem sido baseado em leis e constituições nacionais e na normativa internacional relacionada a direitos específicos. Os principais documentos utilizados são o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) e Comentários Gerais relacionados ao documento emitidos pelo Comitê da ONU para os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Além da complexidade em relacionar direitos específicos ao orçamento público e ao processo orçamentário, alguns trabalhos importantes e inspiradores foram produzidos. Por exemplo:

  • Women’s Dignity, na Tanzânia, trabalha com mortalidade materna no país. A garantia do acesso ao pré-natal e ao atendimento de emergência durante o parto é fundamental para aprimorar os indicadores de mortalidade materna (e, assim, assegurar o direito das mulheres à saúde). Ao analisar informação sobre o acesso das mulheres a esses dois tipos de atendimento, a organização descobriu que mulheres pobres na Tanzânia (como em muitos países) têm significativamente menos acesso a esses serviços do que as mais ricas, o que resulta em um número desproporcionalmente maior de mulheres pobres que morrem ao dar à luz. Women’s Dignity utilizou a análise de orçamento para acompanhar recursos destinados aos equipamentos para o parto utilizados por parteiras e médicos e descobriu que esses equipamentos não estavam disponíveis em todos os centros. A organização passou a pressionar por maior transparência no orçamento de saúde com o objetivo de determinar onde os equipamentos deveriam estar e se os recursos alocados para sua aquisição estavam sendo bem gastos ( Hofbauer; Garza, 2009, p. 11-13).
  • O Centro Internacional para Investigaciones en los Derechos Humanos (CIIDH), na Guatemala, analisou a implementação de um programa de alimentação suplementar, o Vaso de Leche Escolar – VLE (copo de leite escolar), destinado a assegurar o direito à alimentação para os grupos mais vulneráveis no país. O CIIDH descobriu, por meio de informações oriundas das comunidades e da análise dos gastos públicos no programa, que estudantes em áreas com menos problema de alimentação estavam beneficiando-se desproporcionalmente do programa, enquanto aqueles em comunidades mais remotas, que tendiam a ter mais problemas de alimentação, não estavam sendo beneficiadas pelo programa ou, se estavam, a entrega do leite era esporádica e muitas vezes o leite chegava estragado. O governo estava ainda pagando mais pelo leite do que deveria, o que significava que os recursos escassos do programa estavam atendendo a um número ainda menor de comunidades. Quando um novo governo assumiu na Guatemala, foi decidido descontinuar o VLE e substituí-lo por um programa com melhor custo-benefício e mais apropriado culturalmente. Muitos dos atendidos pelo programa pertenciam a comunidades indígenas, que possuíam tendência a intolerância à lactose (FAO, 2009, p. 53).

“Priorizando” os direitos humanos no orçamento: Análises atuais do orçamento em direitos humanos concentram-se no que se tem descrito como análise de “percepção tardia”: identificar as maneiras pelas quais orçamentos públicos e sua implementação falharam em garantir padrões de direitos humanos. Algumas organizações estão tentando desenvolver metodologias para identificar os custos para implementação de direitos humanos específicos com o objetivo de encorajar a inclusão desses custos logo no início na formulação dos orçamentos nacionais.7 Em 2005, por exemplo, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), no Brasil, definiu a implementação de um “orçamento para o direito à alimentação”. Esse projeto encontrou obstáculos significativos na sua tramitação, entre os quais, um dos principais, foi decidir quais aspectos da sociedade e economia estão relacionados ao direito à alimentação e, portanto, quais áreas e linhas orçamentárias no orçamento público são relevantes para o direto à alimentação. No intuito de viabilizar o projeto, o CONSEA decidiu que precisava concentrar-se apenas no orçamento federal e limitar-se à segurança alimentar (em vez do conceito amplo de direito à alimentação). Apesar dessas limitações, em 2008, o CONSEA analisou 43 programas governamentais e 143 atividades relacionadas (FAO, 2009, p. 88-92).

Políticas macroeconômicas e direitos econômicos e sociais: A dimensão, o conteúdo e as prioridades no orçamento público são determinados em grande medida pelas políticas macroeconômicas do governo. Muitas dessas políticas são adotadas em função da demanda de instituições financeiras internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI); outras são resultado de prioridades políticas definidas pelos governos. Já que o orçamento deve ser parte dos esforços governamentais para garantir os direitos das pessoas, este deve priorizar recursos para programas e projetos que assegurem direitos humanos, como o atendimento à saúde, a capacitação e programas de geração de emprego, educação, entre outros. Se as políticas macroeconômicas que definem o orçamento público não são sensíveis aos direitos humanos, isso não irá se concretizar.

O efeito das políticas macroeconômicas sobre os direitos humanos através do seu impacto no orçamento público é uma área de estudo e advocacy relativamente nova. No entanto, tem sido analisado em alguns importantes relatórios recentes. A ActionAid examinou o efeito do “teto de remuneração” na capacidade dos governos de três países africanos em contratar um número suficiente de professores para ajudá-los a cumprir suas obrigações de direito à educação (MARPHATIA et al., 2007). Outro estudo concentrou-se em um conjunto de políticas macroeconômicas e no seu impacto no direito ao trabalho e em outros direitos no México e nos Estados Unidos ( Balakrishnan, 2005).

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3. Abordagens sobre o trabalho sobre orçamento em direitos humanos e estratégias desenvolvidas por organizações

Não é surpresa que até agora a principal preocupação daqueles envolvidos no trabalho sobre orçamento em direitos humanos tem sido o impacto dos orçamentos públicos sobre “grupos vulneráveis”, que incluem os pobres, mulheres, crianças, populações indígenas e grupos minoritários. Apesar de compartilhar tais preocupações, abordagens ao trabalho sobre orçamento variam significativamente, dependendo da capacidade das organizações, das questões específicas abordadas e dos objetivos de advocacy. Em razão do trabalho da sociedade civil sobre orçamento ser recente, muitas estratégias de atuação estão ainda na fase de desenvolvimento. Algumas são atualmente abordadas por apenas algumas organizações da sociedade civil e, considerando o recente trabalho com orçamento público em direitos humanos, é esperado que um número ainda menor de pessoas estejam trabalhando nessa área.

Muitas organizações que trabalham com orçamento buscam influenciar o orçamento público nacional por meio de discussões e lobby junto a ministérios ou secretarias e casas parlamentares. Alguns, de forma cada vez mais frequente, estão levando suas demandas sobre o orçamento nacional para os tribunais. Um exemplo de trabalho com ministérios e casas parlamentares foi realizado pela Fundar – Centro de Análisis e Investigación. Fundar, uma ONG mexicana, foi um dos primeiros grupos a deslocar seu trabalho com orçamento para uma abordagem de direitos humanos e realizou um significativo trabalho sobre questões de saúde no México. Uma iniciativa da Fundar, realizada em parceria com outras organizações, concentrou-se em analisar alocações no orçamento para programas de HIV/AIDS, recursos que pareciam ter sido desviados de sua finalidade inicial pelo Ministério da Saúde. Utilizando a lei de liberdade de informação, a coalizão obteve documentação do Ministério da Saúde que confirmava a suspeita de que os recursos tinham sido desviados para o Provida, organização de direita que luta contra o aborto e o uso de preservativos (ambas campanhas contrárias às políticas do governo). Fundar auxiliou na análise de informações sobre o uso dos recursos pelo Provida e descobriu que aproximadamente 90% tinha sido ostensivamente utilizada de forma irregular. Quando o Ministério da Saúde recusou-se a se reunir com a coalizão para discutir os resultados, a coalizão buscou a mídia, que concedeu extensa cobertura ao assunto. Muitas outras organizações juntaram-se à coalizão e mais de mil organizações pressionaram o governo a investigar o caso. Finalmente, o governo resolveu investigar, confirmou as suspeitas e obrigou o Provida e devolver os recursos.

Outra iniciativa foi realizada na Argentina, onde uma ONG levou o governo à justiça em razão de um caso envolvendo questões de orçamento. Apesar do espírito contencioso que envolve a judicialização de direitos econômicos e sociais, tribunais em diversos países recentemente começaram a adotar postura mais ativa em relação a esses direitos, incluindo aqueles em que a informação sobre orçamento público é parte da evidência. Um desses casos foi conduzido pelo Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS), na Argentina. No caso Mariela Viceconte, organizações argentinas pressionaram o governo para produzir vacina contra a febre hemorrágica argentina, que anualmente ameaça a vida de 3,5 milhões de pessoas que vivem em regiões endêmicas. Em 1998, um Tribunal de Apelações obrigou o governo a produzir as vacinas. Embora a vacina devesse ter sido produzida e administrada à população afetada até o final de 1999, CELS verificou que até julho de 2000 o governo ainda não tinha cumprido a sua obrigação. A organização apresentou uma petição solicitando ao juiz a fixação de um novo prazo razoável e apresentou números orçamentários e informações demonstrando que recursos suficientes haviam sido alocados no orçamento para a fabricação da vacina, embora não tinham sido utilizados. O juiz definiu um novo prazo, que foi novamente descumprido pelo Ministério. O juiz, então, ordenou que os recursos orçamentários alocados para a produção da vacina fossem congelados, de tal forma que impedisse o governo de gastá-lo em outras atividades (IHRIP; Forum-Asia, 2000, p. 42).

Enquanto algumas organizações, como Fundar e CELS, atuam em nível internacional, outras focam sua pesquisa e advocacy no orçamento do estado ou em nível local. Com a descentralização de diversos governos e muitas organizações da sociedade civil trabalhando em uma única província ou estado, ou mesmo em nível local, há um número significativo de organizações desenvolvendo trabalho com orçamento com foco nos orçamentos estaduais ou locais. A Asociación Civil por la Igualdad y la Justicia (ACIJ), na Argentina, por exemplo, tem atuado em uma iniciativa significativa sobre direito à educação, dedicada particularmente à igualdade na educação em diversos bairros da capital, Buenos Aires. Um de seus projetos educacionais (envolvendo um trabalho próximo a comunidades afetadas) documentou o uso pela secretaria de educação de containers de carga como salas de aula extras para aliviar a superlotação em escolas de bairros pobres. ACIJ descobriu informações que demonstraram que a superlotação nas escolas era um problema maior em bairros pobres, e que os containers eram utilizados apenas nesses bairros. A partir da análise orçamentária da educação da cidade, concluíram que o aluguel dos containers era na realidade mais caro anualmente do que construir salas de aula adicionais. A partir da publicação desses resultados, as autoridades educacionais de Buenos Aires tomaram medidas para substituir alguns dos containerspor novas salas de aula.

Enquanto a ACIJ analisava documentos e relatórios financeiros de orçamentos públicos para conhecer mais sobre os gastos da cidade em educação, outras organizações que atuavam em nível local envolveram comunidades de diferentes maneiras para acompanhar os gastos. Um exemplo bem documentado foi uma “auditoria social” realizada por Mazdoor Kisan Shakti Sangathan (MKSS), junto com outras organizações da sociedade civil na Índia. A auditoria envolveu esforços de cerca de 800 pessoas, que analisaram recursos gastos sob o National Rural Employment Guarantee Act (NREGA), que concedia a moradias rurais 100 dias por ano de emprego público pelo salário mínimo. Os 800 participantes da auditoria visitaram todas as aldeias em Dungarpur, distrito de Rajasthan, onde havia programas do NREGA, encontrando aproximadamente 140 mil pessoas que havia trabalhando no programa. A auditoria revelou um grande número de irregularidades e as preocupações acerca dessas irregularidades foram, consequentemente, levadas aos administradores distritais em uma audiência pública ( Ramkumar, 2008, p. 21-23).

Antes de considerar uma outra abordagem ao trabalho sobre orçamento (medir impacto), é importante lembrar que, a partir de uma perspectiva de direitos humanos, não é suficiente que o governo “faça a coisa certa”, o que remete a suas obrigações de conduta. O governo tem ainda uma “obrigação de resultado”, isto é, de garantir que suas ações – políticas, planos, orçamentos, programas – resultem efetivamente no aumento da garantia de direitos da população. O trabalho realizado por organizações para medir o impacto dos gastos públicos é uma maneira importante de analisar a adesão a essa obrigação de resultado. Em 1993, por exemplo, o Public Affairs Centre (PAC), na Índia, implementou um “questionário cidadão” com o objetivo de medir a satisfação com serviços públicos municipais (água, coleta de lixo, manutenção de parques, etc.) em Bangalore, uma das maiores cidades do país. A pesquisa mediu não apenas o grau de satisfação, mas buscou também apontar quais aspectos dos serviços foram implementados de uma maneira mais ou menos satisfatória. A pesquisa também analisou os custos dos serviços. Os resultados – muito negativos na prestação de serviços – foram publicados pela mídia e em audiências públicas. Apesar de posteriores pesquisas e da publicidade negativa, os serviços não melhoraram de maneira significativa por alguns anos – até 2003, quando a pesquisa daquele ano demonstrou aumento significativo na satisfação da população em relação aos serviços públicos municipais ( Ramkumar, 2008, p. 75-77).

Finalmente, é importante ressaltar que devido à complexidade de boa parte do trabalho com orçamento, ele é mais efetivo quando desenvolvido a partir de coalizões ou alianças formais e informais. Por meio de coalizões e alianças, organizações podem adquirir conhecimento e habilidades técnicas sobre, por exemplo, análise orçamentária e estatística. Organizações que fazem pesquisas e análises técnicas podem se certificar que o seu trabalho está ancorado na realidade e são funcionais às necessidades das pessoas aliando-se com instituições que atuam junto à comunidade na prestação de serviços. Tais coalizões e alianças são também importantes para o desenvolvimento de advocacy efetivo sobre orçamento. Por exemplo, organizações que não possuem experiência em trabalhar com ministérios ou lobby com parlamentares podem trabalhar com organizações experientes nessas áreas. Fazendo uso de seu conhecimento, habilidades e capacidades, eles podem influenciar o orçamento nacional. Instituições que fazem lobby com parlamentares podem, por sua vez, maximizar o impacto de sua ação se trabalharem aliados a grupos com capacidade de mobilizar um grande número de pessoas no intuito de pressionar políticos e agências governamentais.

Um exemplo significativo de trabalho em coalizão pode ser encontrado no Right to Food Campaign, na Índia. Em 2001, o People’s Union for Civil Liberties (PUCL) propôs uma ação para obrigar o governo a utilizar reservas de alimento para prevenir a fome durante uma seca generalizada. Até então, a Suprema Corte Indiana havia emitido uma série de decisões relacionadas ao caso que, de fato, transformaram programas governamentais em obrigações legais – direitos. A Corte nomeou Comissários para monitorar a implementação das decisões por parte do governo. Como parte do trabalho, os Comissários monitoraram a alocação do orçamento público e os gastos com programas. A Campanha, que já envolve mais de 1000 organizações em todo país, coordena uma série de atividades a partir das decisões da Corte. Essa atuação inclui a realização de auditorias sociais para avaliar a efetividade da implementação dos programas e das decisões da Corte por parte do governo. Organizações parceiras realizam análises independentes dos gastos públicos nos programas e trazem seus resultados de volta aos Comissários. A Campanha organiza ainda manifestações e protestos públicos para atrair a atenção da sociedade para a questão e para exercer pressão sobre o governo (FAO, 2009, p. 82-88).

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4. Tendências, oportunidades e desafios

O trabalho da sociedade civil sobre orçamento está em rápida expansão, com foco significativo (mas não exclusivo) em grupos que atuam com questões de transparência, bem como na participação popular nos processos orçamentários. Um número significativo de organizações da sociedade civil também desenvolveu habilidades impressionantes em analisar alocação orçamentária e em atrair a atenção da mídia e de parlamentares para suas conclusões, enquanto outros desenvolveram a capacidade de monitorar gastos e mobilizar a comunidade em torno de questões orçamentárias. O “trabalho sobre orçamento em direitos humanos” pode ser considerado um subgrupo desse desenvolvimento mais amplo e está se expandindo no mesmo ritmo.

O trabalho sobre orçamento em direitos humanos reflete a maneira pela qual o trabalho em direitos humanos tem se transformado e se tornado mais complexo. A emergência do trabalho sobre direitos econômicos e sociais já foi mencionado. Essa emergência não significa apenas que as organizações de direitos humanos têm atuado em um leque mais amplo de temas do que tradicionalmente, mas que estes têm apresentado desafios diversos. Em decorrência, por exemplo, de algumas metodologias utilizadas para monitorar o respeito aos direitos civis e políticos não serem adequadas ao monitoramento de direitos econômicos e sociais, a busca por metodologias e ferramentas de monitoramente tem acompanhado o crescimento de organizações engajadas no trabalho com direitos econômicos e sociais. Análise orçamentária e outras formas de trabalho com orçamento são talvez as “novas” metodologias mais mencionadas.

Além da identificação e da adoção de novas metodologias, organizações que lidam com direitos econômicos e sociais frequentemente falam sobre outras maneiras de relacionamento com órgãos e agências governamentais, ressaltando a diferença entre a abordagem tradicionalmente mais contestadora dos grupos que trabalham com direitos civis e políticos. A diferença está fundada parcialmente no fato de que o trabalho com direitos econômicos e sociais lida necessariamente com políticas, planos e orçamentos governamentais. Trabalhar com esses documentos governamentais estratégicos exige discussões com ministros, departamentos, agências e representantes do governo – mesmo que seja apenas para obter copias das políticas, planos e orçamentos. Essa abordagem mais afirmativa, no entanto, é apenas metade do relacionamento com o governo, já que organizações que trabalham com orçamento em direitos humanos também atuam no papel mais tradicional quando confrontam governos com documentação sobre falhas e violações, identificadas a partir de suas análises orçamentárias, e demandam respostas e soluções.

O relacionamento entre governo e organizações que trabalham com orçamento em direitos humanos não tem apenas um único sentido, com as organizações demandando algo do governo. Ministérios das áreas de saúde e educação, por exemplo, têm, por vezes, valorizado e encorajado o trabalho de organizações da sociedade civil que demandam mais orçamento para saúde e educação. Além disso, parlamentares não são sempre os únicos alvos de advocacy, mas frequentemente se beneficiam da assistência de organizações que trabalham com orçamento. Devido ao fato de os parlamentares terem a responsabilidade de aprovar o orçamento do Executivo, mas muitas vezes não possuírem conhecimento técnico para compreender o conteúdo do orçamento em detalhe, eles valorizam as análises da sociedade civil sobre o orçamento, a medida que fornecem aos parlamentares informações que os ajudam a desempenhar seu trabalho de uma forma mais qualificada.

O ambiente atual também contém uma série de outros fatores úteis ao desenvolvimento dos trabalhos sobre orçamento em direitos humanos. Devido ao crescimento do trabalho da sociedade civil sobre orçamento em um grande número de países, organizações de direitos humanos com menos experiência com trabalho orçamentário podem aprender e potencialmente colaborar com grupos mais experientes. Muito do trabalho realizado por essas outras organizações é relevante para o trabalho em direitos humanos, mesmo que a abordagem seja distinta. Além das organizações da sociedade civil, há também indivíduos (incluindo economistas que atuam em think tanks ou em universidades) com habilidades técnicas importantes, que por vezes se dispõem a auxiliar organizações de direitos humanos com análises orçamentárias. O desafio para as organizações de direitos humanos é identificar esses indivíduos e desenvolver com eles um relacionamento colaborativo. Também há importantes recursos sobre o trabalho de organizações da sociedade civil sobre orçamento em nível internacional. O International Budget Partnership (IBP) e o Revenue Watch, por exemplo, desempenham papéis fundamentais ao permitir que grupos de direitos humanos conheçam o trabalho desenvolvido por outras organizações em seus próprios países ou fora deles.

Iniciativas no campo dos direitos humanos para desenvolver e disponibilizar recursos complementares à análise orçamentária e ao acompanhamento de gastos são também úteis ao crescimento do trabalho sobre orçamento. Uma iniciativa nesse sentido, desenvolvida pelo Center for Economic and Social Rights,8 inclui o desenvolvimento de outras metodologias para o monitoramento dos “recursos disponíveis” e a “implementação progressiva”, por meio de análises estatísticas, indicadores etc. A American Association for the Advancement of Science (AAAS) desenvolveu uma base de dados de “cientistas ‘por demanda’”, que inclui os nomes de muitos cientistas (incluindo cientistas sociais e estatísticos) que gostariam de voluntariar seu tempo para o trabalho em direitos humanos.9

Apesar dos fatores circunstanciais favoráveis e de oportunidades disponíveis para o trabalho sobre orçamento em direitos humanos já mencionadas, as organizações que realizam esse trabalho (ou aquelas que gostariam) ainda enfrentam desafios significativos. O maior e mais comum desafio é a ausência de acesso a informações governamentais – seja esta informação o próprio orçamento, a política ou outros documentos que sustentam o orçamento, ou população e outros dados necessários para compreender os números do orçamento. Como resultado, organizações interessadas no trabalho com orçamento frequentemente vêem seu trabalho concentrar-se em pressionar por maior abertura no governo, em tornar o orçamento mais acessível para a sociedade civil e em encorajar o governo a reunir e publicar dados desagregados que permitam uma análise do impacto do orçamento sobre grupos específicos.

Para a maioria das organizações de direitos humanos, trabalhar com orçamento público exige também o desenvolvimento de novas ferramentas. Ler orçamentos e documentos relacionados, e fazer análise orçamentária, não fazem parte das tradicionais “ferramentas” utilizadas por essas organizações. Mesmo que esses grupos contem com outros para fazer a análise orçamentária, eles ainda assim precisam ter certo grau de compreensão de orçamentos para serem capazes de formular as perguntas adequadas para os analistas, compreender as implicações dos resultados e dialogar com governos e outros sobre tais resultados.

Um desafio adicional enfrentado por essas organizações refere-se à complexidade, já mencionada, de relacionar padrões de direitos humanos (particularmente aqueles que garantem direitos “substantivos”, como moradia, alimentação e água) ao orçamento público, ao processo orçamentários e à análise de orçamento. Ademais, o conhecimento sobre direitos econômicos e sociais ainda não é tão desenvolvido quanto deveria. Isto é relevante, pois se os grupos não possuem noções sobre padrões de direitos econômicos e sociais – o que são e como determinar a adequação às garantias nacionais e internacionais –, eles não conseguirão fazer o melhor uso do monitoramento e da análise orçamentárias em sua atuação. Apesar de o trabalho com orçamento ter relevância direta para o trabalho com direitos civil e políticos, trata-se de um instrumento mais importante para aqueles que trabalham com direitos econômicos e sociais.

Além disso, o desenvolvimento do trabalho da sociedade civil sobre orçamento tem sido, de maneira geral, freado por um “gargalo” – uma escassez de indivíduos em organizações da sociedade civil com experiência e habilidades no trabalho com orçamento e que podem fornecer assistência técnica a grupos e indivíduos que buscam aprender o trabalho. O trabalho sobre orçamento em direitos humanos será inicialmente barrado por esses mesmo motivos. Até que se crie capacidade em um maior número de organizações, o trabalho sobre orçamento em direitos humanos irá depender da mesma estrutura dos analistas de orçamento.

Há ainda uma complexidade adicional: ao mesmo tempo em que há considerável atividade relacionando orçamento público e os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs) e os Planos Estratégicos de Redução da Pobreza (PERPs), ambos ODMs e PERPs possuem seus próprios padrões e jargões. A relação entre esses padrões e jargões aos padrões e terminologia de direitos humanos é frequentemente imprecisa – o que pode ser uma fonte de confusão para aqueles que buscam aprender sobre o trabalho de grupos dedicados aos ODMs e PERPs.

Finalmente, um desafio ao rápido desenvolvimento do trabalho sobre orçamento em direitos humanos é o acesso a recursos para viabilizá-lo. Apesar de alguns doadores estarem direcionando recursos ao trabalho com orçamento, o financiamento é ainda inadequado se comparado à enorme promessa apresentada por essa ação.

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5. Recomendações ao olhar para o futuro

Como já mencionado, o trabalho sobre orçamento em direitos humanos é novo. Como conseqüência, muitos dos passos necessários para garantir sua sustentabilidade e sua efetividade ainda precisam ser tomados. Os parágrafos seguintes descrevem algumas atividades que poderiam contribuir significativamente para o avanço desse trabalho.

Primeiro, a “curva de aprendizado” no trabalho sobre orçamento em direitos humanos é muito acentuada. Ter acesso ao trabalho já produzido – o que grupos já fizeram, como abordaram o trabalho, desafios e soluções encontrados e sucessos obtidos – ajudaria a todos a aprender mais rapidamente. Organizações de direitos humanos poderiam, por exemplo, buscar e aprender a partir da experiência de outras organizações que trabalham com orçamento público em seu país e fora dele. O IBP e outras organizações produzem muita informação sobre o tema. Mesmo que boa parte do trabalho descrito nos materiais do IBP não lide com uma abordagem de direitos, há muito sobre o qual organizações de direitos humanos podem aprender. Ao mesmo tempo, outras organizações estão trabalhando na criação de uma base de dados centralizada na Internet para o trabalho sobre orçamento em direitos humanos, que irá responder diretamente aos desafios específicos de integrar o trabalho com orçamento e a atuação em direitos humanos.10

Segundo, existe a necessidade do desenvolvimento da pesquisa sobre temas relacionados aos direitos humanos e as orçamento, por exemplo:

  • Paul Hunt, o último Relator Especial para o Direito à Saúde, analisou a relação entre orçamento público e direito à saúde. A Unidade de Direito à Alimentação da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) fez o mesmo com relação ao direito à alimentação. Organizações que trabalham com direitos específicos, como moradia, educação e água, deveriam adotar medidas similares.
  • O trabalho sobre orçamento realizado sobre temas específicos, como indústrias extrativistas, poderia explorar como relacionar direitos humanos às questões abordadas pelo seu trabalho sobre orçamento – e considerar a adoção de uma abordagem de direitos. De fato, um número crescente de organizações da sociedade civil que trabalham com orçamento estão adotando uma abordagem de direitos, já que acreditam que ela apresenta tanto um fundamento legal para o seu trabalho quanto um conjunto de prioridades acordadas em relação a temas específicos, como saúde e educação.
  • Há necessidade de mais trabalho, tal como o realizado pelo Center for Economic and Social Rights, no desenvolvimento de sólidos instrumentos e metodologias (relacionados à análise estatística, indicadores, etc.) para investigar e documentar violações de direitos econômicos e sociais. Tais instrumentos e metodologias são frequentemente uma complementação necessária à efetiva análise orçamentária, pois fornecem informações que ajudam a compreender os números do orçamento.

Terceiro, em uma pesquisa elaborada pelo International Network for Economic, Social and Cultural Rights (ESCR-Net) há dois anos, organizações que realizavam trabalho sobre orçamento em direitos humanos identificaram a capacitação como uma de suas principais demandas. Há muitas abordagens possíveis sobre capacitação e muitas delas podem ser utilizadas. Organizações relataram, por exemplo, que materiais como Dignity Counts: A guide to using budget analysis to advance human rights( Fundar; International Budget Project; IHRIP, 2004) são úteis e que mais guias sobre diferentes aspectos do trabalho sobre orçamento em direitos humanos, bem como o trabalho em áreas correlatas (trabalho da sociedade civil sobre orçamento em geral, trabalho sobre estatística a análise de dados), deveriam ser desenvolvidos e amplamente disseminados. Além desses recursos impressos, algumas organizações desenvolvem programas de aprendizado sobre o trabalho sobre orçamento em direitos humanos,11 que necessitam ser oferecidos com mais freqüência e, a medida em que mais organizações passam a se envolver, devem abordar um leque mais amplo de temas.

Organizações da sociedade civil normalmente valorizam assistência técnica fornecida por analistas de orçamento capacitados e que possuem, ao mesmo tempo, conhecimento sobre o trabalho em pesquisa e advocacy de organizações da sociedade civil. O trabalho sobre orçamento em direitos humanos poderia beneficiar-se significativamente de mais assistência técnica. Programas de intercâmbio, em que um integrante de uma organização passa algum tempo em outra mais experiente, é também um formato importante para a capacitação. Esses intercâmbios permitem que esses profissionais aprendam habilidades necessárias ao trabalho com orçamento por meio de treinamento prático – o tipo de capacitação em profundidade que não é possível em programas de aprendizado de curta duração.

Quarto, como já mencionado, há muitas organizações realizando diversas formas de trabalho com orçamento que poderiam ser considerados “de direitos humanos”, mas que não utilizam explicitamente uma abordagem de direitos. Esses grupos, incluindo aqueles que trabalham com transparência e com orçamento participativo, deveriam ser encorajados a utilizar mecanismo nacionais e internacionais de direitos humanos de acesso à informação e participação para desenvolver e apresentar seu trabalho. Além disso, organizações que trabalham com orçamento sobre gênero deveriam ser estimuladas a utilizar o CEDAW e outros mecanismos de direitos humanos internacionais e regionais para desenvolver e apresentar seu trabalho.

Finalmente, organismos e mecanismos internacionais com responsabilidade de monitorar e denunciar violações de direitos humanos diante das obrigações legais deveriam considerar a relevância dos orçamentos públicos às questões que abordam e utilizar análises orçamentárias relevantes na busca de dados e na elaboração de relatórios. Especificamente, o Committee on Economic, Social and Cultural Rights (CESCR) deveria considerar exigir certas informações orçamentárias básicas de governos que submetem seus relatórios periódicos ao Comitê e encorajar a sociedade civil a incluir análises orçamentárias nos relatórios alternativos levado ao CESCR.

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6. Conclusão

Muitas violações de direitos humanos são fundadas na desigualdade de distribuição de riqueza e recursos de uma sociedade. O trabalho sobre orçamento em direitos humanos pode ser um instrumento muito efetivo para identificar e documentar algumas dessas desigualdades – e suas motivações. Ao fornecer informações sobre alocação e despesas governamentais, e ao desenvolver recomendações especificas para realocação e sugerindo diferentes alvos para os gastos, o trabalho sobre orçamento em direitos humanos pode permitir que cidadãos e organizações afiem suas demandas e articulem pedidos específicos para melhorar a situação.

O orçamento público é um documento chave e um processo essencial para administrar a riqueza financeira e de recursos de uma sociedade. Os governos, se tiverem vontade política, podem moldar seus orçamentos e executá-los de maneira a garantir uma distribuição e um uso mais equitativo da riqueza da sociedade. Ao fazê-lo, eles podem garantir que ao menos os recursos sob seu controle sejam utilizados de maneira a maximizar o acesso de cada pessoa no país aos recursos básicos essenciais à dignidade humana. Isso é o governo na sua melhor forma.

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Notas

1. Nesse artigo, o termo “trabalho sobre orçamento” é utilizado para referir-se a diversas possibilidades de trabalho relacionado ao orçamento público, incluindo, particularmente, análise orçamentária, monitoramento de gastos, precificação, análise de impacto orçamentário e advocacysobre orçamento.

2. O International Budget Partnership (IBP) tem uma página na Internet que disponibiliza informações mais detalhadas sobre iniciativas da sociedade civil sobre transparência (http://www.internationalbudget.org/themes/BudTrans/index.htm). Além disso, IBP, em parceria com outras organizações no mundo, desenvolveu um “Índice de Orçamento Aberto”, que avalia o grau de transparência do processo orçamentário em 85 países (http://www.openbudgetindex.org/). Último acesso em: 5 de agosto de 2009.

3. A UNESCO produziu um ótimo documento que fornece uma análise aprofundada sobre esses padrões ( Mendel, 2003).

4. Para uma descrição completa do processo, ver ( Wagle; Shah, 2003).

5. Por exemplo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo 21(1), e o Pacto Internacional de Direitos Civil e Políticos, artigo 25.

6. Um site, hospedado pelo Fundo das Nações Unidas para as Mulheres (UNIFEM), fornece ampla informação e referências sobre “Orçamento Alinhado a Gênero” em todo o mundo: . Último acesso em: 5 de agosto de 2009.

7. Uma dessas iniciativas, iniciada em 2006 pelo APRODEV Rights and Development Group, está agora hospedada pelo Equalinrights. Para mais informações sobre essa iniciativa, ver: . Último acesso em: 25 de junho de 2009.

8. O site do Center for Economic and Social Rights é < http://www.cesr.org/>. Último acesso em: 25 de junho de 2009.

9. O site da iniciativa é . Último acesso em: 25 de junho de 2009.

10. O International Human Rights Internship Program (IHRIP) está desenvolvendo esse site.

11. Uma parceria entre quatro organizações, IHRIP, IBP, Fundar e ESCR-Net, financia um programa de aprendizado de 10 dias, principalmente em nível regional, oferecido regularmente.

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Referências

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Ann Blyberg

Ann Blyberg é Diretora-Executiva do International Human Rights Internship Program (IHRIP), organização sediada em Washington D.C. que busca fortalecer organizações de direitos humanos situadas em países do sul global. Ela também coordena a iniciativa Human Rights Budget Group (HURIBUG).

Email: ablyberg@iie.org

Original em inglês. Traduzido por André Degenszajn.

Recebido em Agosto de 2009. Aceito em Novembro de 2009.